DISCURSO DE ÓDIO: LIBERDADE OU LIBERTINAGEM DE EXPRESSÃO?

Por Cleópatra Costa
A internet, assim como o consequente surgimento das redes sociais, revolucionou o mundo moderno ao possibilitar a comunicação e a disseminação de ideias de forma mais célere e universal. Não obstante seus inúmeros benefícios que o presente texto não se inclinará a esgotar, “likes”, compartilhamentos, perfis falsos e anônimos têm facilitado o enraizamento do narcisismo e a disseminação de pensamentos extremistas e preconceituosos, comumente “justificados” com o direito à liberdade de expressão.
Seja no âmbito político – com discursos negacionistas históricos e culturais, com o menosprezo às dores de minorias sociais e religiosas, ou mesmo com a polarização de ideologias que não estão abertas ao debate -, seja no âmbito social – com insultos e ameaças contra o que é “diferente”; tais crescentes manifestações urgem o debate acerca do binômio “discurso de ódio – liberdade de expressão”.
Entende-se por “discurso de ódio” como sendo as palavras de insulto, intimidação ou assédio de pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião. E nesse conceito incluem-se aquelas que têm capacidade de instigar a violência, o ódio ou a discriminação.
Aliás, muito além de mero discurso que externaliza uma antipatia, implica na hostilização contra determinado grupo por meio de ações tanto imediatas como mediatas. No que diz respeito às imediatas, pode-se citar o insulto, o assédio e a intimidação; e, quanto aos mediatos, a instigação à violência e à discriminação. Ou seja, compreende o insulto ou a intimidação de pessoas em função de raça, cor, credo, sexo ou nacionalidade, de modo a aviltar a dignidade da pessoa – ou do grupo de pessoas – alvo do ataque.
Discursos dessa característica não são de hoje, e, historicamente, foram utilizados para que se atingisse um objetivo ainda mais cruel por meio da manipulação social através do uso da palavra, como se viu com a propaganda nazista de Joseph Goebbels. Reforça-se, portanto, a importância do tema para os dias atuais, evitando-se, assim, a comum confusão também de liberdade com libertinagem.
Desenhado o conceito acima, incumbe decifrar a extensão do princípio da liberdade de expressão, que, de tamanha importância ao sistema democrático, trouxe a Constituição Federal brasileira sua previsão no inciso IX do artigo 5. Em âmbito internacional, traz a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu inciso XIX, que “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
A respeito, normativiza também o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, no entanto com a possibilidade de restrição de sua aplicação em prol da proteção da segurança coletiva e do respeito a outros direitos individuais. ​Também traz ressalvas a Convenção Americana de Direitos do Homem, de 1969, ao limitar o exercício desse direito com a proibição de propagandas em favor da guerra, bem como à “apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.
Ou seja, embora figure o instituto como característica fundamental ao livre exercício da democracia, não é a liberdade de expressão um direito absoluto, sendo tal afirmação reforçada no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em seus artigos 19 e 20. Claro, com a ressalva de que tais restrições tão somente podem acontecer após proferido o discurso, e não de forma prévia; e observados os seguintes requisitos: 1. Previsão taxativa em lei; 2. Finalidade legítima e adequada a uma democracia; 3. Necessidade social; 4. Proporcionalidade.
Adotou também o Conselho da Europa a Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime, em seu Protocolo Adicional Relativo à Incriminação de Atos de Natureza Racista e Xenofóbica Praticados Através de Sistemas Informáticos, a orientação para a criminalização das condutas que envolvam conteúdos racistas e xenofóbicos praticados na internet. A afirmativa encontra-se, principalmente, nos artigos 3, 4 e 5.
Por essa razão, amparada pelos documentos internacionais, não obstante ao exercício da liberdade de expressão, prescreve a legislação brasileira punições a determinados discursos que têm em seu núcleo o ódio, como bem o fez a Lei 7.716/89, ao proibir a prática, o induzimento ou a incitação a discriminação ou ao preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Na esfera do Direito Penal brasileiro, embora inexista tipificação específica de “discurso de ódio”, atualmente aplicam-se à matéria os artigos 138 (calúnia), 139 (difamação) e 140 (injúria); assim como a lei de crime racial, Lei 7.716/89. Dessa forma, quanto às condutas raciais, temos a tipificação do crime de racismo como sendo aquele dirigido a um determinado grupo ou coletividade. É considerado de maior gravidade pelo legislador e, por essa razão, é imprescritível e inafiançável.
Por sua vez, injúria racial – também denominada preconceituosa ou discriminatória – ​ofende a honra da vítima de forma individual. Geralmente, associa-se ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima, embora não se restrinja a tais aspectos. A respeito, em 2017, decidiu o STF pela imprescritibilidade e inafiançabilidade desse crime e a ação penal.
Nesse viés, almejando a proteção social contra excessos, trouxe o artigo 187 do Código Civil o instituto do “abuso de direito”. Isto é, seja no mundo virtual ou no mundo físico, o ordenamento jurídico pátrio não aceita comportamentos que extrapolam a esfera individual em nítida invasão aos direitos de outrem. Recentemente, inclusive,

decidiu o Supremo Tribunal Federal que a liberdade de expressão comporta limitações, embora direito fundamental consoante expressamente prevê a Constituição Federal. Não abrange o referido princípio, portanto, o “direito ao discurso de ódio”; definindo a Corte, inclusive, a amplitude do termo “racismo”, como se vê:
(…) a Corte Suprema já decidiu que a liberdade de expressão comporta limitações, não estando em sua esfera de abrangência o hate speech ou discurso de ódio, devendo ser punidas as condutas de discriminação e preconceito publicamente proferidas, não podendo ser reconhecida como livre a expressão de posições claramente racistas. Além disso, o STF definiu que raça e racismo não se tratam de termos ligados meramente à cor ou etnia, mas sim de critérios sociais e históricos.
Tramita no Senado, ademais, o Projeto de Lei 236/2012, que almeja a Reforma do Código Penal – projeto esse bastante interessante quanto aos crimes cometidos com a utilização de ferramentas digitais. Traz, dentre outras propostas, a inclusão do artigo 472 que tipifica os atos resultantes de preconceito e discriminação; além da prática, do induzimento ou incitação à discriminação ou o preconceito cometidos tanto por meios de comunicação como pela internet.
Não são os direitos fundamentais, por si só, absolutos, como se vê. Isso ocorre para que se evite a ameaça e a violação de outros direitos previstos no mesmo ordenamento, impondo-se, então, certos limites no uso da manifestação do pensamento. Então a vedação ​ao discurso de ódio ​não fere ao princípio da liberdade de expressão, uma vez que compreende ferramenta de resguardo do sistema democrático. Sistema esse que hoje sofre, apesar do que nos ensina a dolorosa história da humanidade, com uma crescente e sufocante onda de xenofobia e rejeição à pluralidade.
Tal limitação – desde que não arbitrária – mostra-se essencial para que condutas opressoras de aprisionamentos da mente (ou formas de intimidação do discernimento psíquico) não maculem os princípios que regem o Estado de Direito e o pacífico convívio social; e não massacrem as minorias sociais e religiosas que historicamente sofrem e clamam por proteção.
Por fim, apropriando-me de uma frase recentemente veiculada no jornal “El Pais”, “uma sociedade democrática pode administrar populações misturadas e destinadas a conviver com suas contribuições mútuas à civilização humana, desde que sejam estabelecidas diretrizes seculares para todos”.

BIBLIOGRAFIA:
AgRg no AREsp 686.965/DF, Rel. Ministro Ericson Maranho (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 18/08/2015, DJe 31/08/2015.
BENTO, Leonardo Vales. ​Parâmetros internacionais do direito à liberdade de expressão​. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/522900/001073192.pdf?sequence =1>. Acesso em: 08 nov. 2020.
BITTAR, Carlos Alberto. ​Os direitos da personalidade​.​ Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2001.
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. ​Código Penal.​ In: Diário Oficial da República dos Estados Unidos do Brasill,Rio de Janeiro, RJ, 7 dez. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 09 nov. 2020.
BRASIL. Decreto-Lei 592 de 06 de julho de 1992. ​Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos​. ​In: Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 06 jul. 1992.​ Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em 08 nov. 2020.
BRASIL. Lei n. ​7.716, de 5 de janeiro de 1989​. ​Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. In: Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 jan. 1989. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm>. Acesso em: 09 nov. 2020.
BRUGGER, Winfried.​ Proibição ou proteção do discurso do ódio?: algumas observações sobre o direito alemão e o americano. ​Direito Público, Porto Alegre, ano 4, 2007.
CONSELHO DA EUROPA. ​Protocolo Adicional à Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime relativo à incriminação de actos de natureza racista e xenofóbica praticados através de sistemas informáticos​. Estrasburgo, 28.I.2003. Disponível em: <https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?docu mentId=09000016802ed8cd>. Acesso em: 11 nov. 2020.
DALMOLIN, Aline Roes. ​A legislação do ódio e os limites à liberdade de expressão: enfoques contemporâneos na mídia e no direito​. In: 3 Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/congressodireito/anais/2015/3-1.pdf>. Acesso em: 09 nov. 2020.

EL PAIS.​ O que está por trás do discurso de ódio​. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/07/internacional/1544180778_836431.html>. Acesso em: 08 nov. 2020.
JESUS, Damásio de; MILAGRE, José Antonio. ​Manual de Crimes Informáticos​. São Paulo: Saraiva, 2016.
ONU. ​Declaração Universal dos Direitos Humanos​. Disponível em: <https://www.ohchr.org/en/udhr/documents/udhr_translations/por.pdf>. Acesso em 08 nov. 2020.
PANAZZOLO, Pedro de Vilhena. ​Racismo cibernético e os direitos de terceira dimensão.​ Disponível em: <http://www.memorial.mpf.mp.br/nacional/vitrine-virtual/publicacoes/crimes-ciberneticos -coletanea-de-artigos>. Acesso em: 10 nov. 2020.
PRADO, Luiz Regis. ​Comentários ao Código Penal​. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2007.
SAFER NET. ​Discurso de Ódio​. Disponível em: <http://saferlab.org.br/o-que-e-discurso-de-odio/>. Acesso em: 08 nov. 2020.

Scroll to top