Reivindicações constitucionais dos povos aborígenes

Reivindicações constitucionais dos povos aborígenes

Texto por Carlos Perini

Os povos originários que habitaram a Austrália pré-colonial contavam com cerca de 320.000 membros, professando aproximadamente 150 línguas e dialetos, distribuídos de maneira homogênea pelo continente de 13.000.000 Km². Estima-se que os povos aborígenes tenham habitado lá cerca de 65.000 a 75.000 anos antes da chegada dos colonos ingleses, em 1788.

Assim como todas as experiencias de primeiro contato entre europeus e povos indígenas em territórios potencialmente lucrativos para expedições coloniais, as hostilidades entre os aborígenes e os colonos ingleses resultou em violência prolongada, uma drástica diminuição populacional e uma história marcada pela segregação racial.

Na região de Moorundie, na cidade de Adelaide, atual capital da Austrália Meridional, o
colono britânico John Eyre adquiriu, da Coroa, 1.411 hectares de terras que eram habitadas pelo povo Ngaiawong. Em 1841, com a finalidade de “limpar o território”, um grande massacre foi perpetrado pelos habitantes europeus que residiam na região. Eyre, com a intenção de cessar as hostilidades, passou a adotar políticas paternalistas e prover os Ngaiawong com farinha e açúcar.

Entretanto, e à óbvia negligência dos colonos, doenças e infecções provocadas pel contato com os europeus, em poucas décadas, fez com que todo o povo Ngaiawong desaparecesse por completo, assim como sua tradição e sua língua, que hoje permanecem absolutamente incógnitas, como se jamais tivessem existido.

Este é apenas um dos inúmeros exemplos de povos que suportaram a catástrofe do extermínio. Em 1930, o número de indígenas já havia caído para cerca de 80.000. Em um censo de 2016, entretanto, foram identificados aproximadamente 798.400 indígenas vivendo em solo australiano, divididos entre aborígenes continentais e povos que habitam as Ilhas do Estreito de Torres, o que corresponde a 3,3% de toda a população da Austrália.

O desenvolvimento histórico do país foi profundamente marcado pelo distanciamento e pela marginalização dos povos indígenas, por um lado, e por uma intensa organização social de reivindicação de direitos, por outro. Os povos originários foram reconhecidos como cidadãos apenas no século XX, adquirindo o direito ao voto apenas em 1967.

As ilhas do Estreito de Torres, localizadas na faixa marítima entre o nordeste da Austrália e o sul de Papua-Nova Guiné, são habitadas por uma proporção ainda maior de povos indígenas. Estes são geralmente referidos de maneira apartada dos aborígenes continentais porque possuem características biológicas e culturais mais próximas dos povos da Melanésia.

Os povos e os territórios das Ilhas do Estreito de Torres foram objeto de disputa internacional entre a Austrália e Papua-Nova Guiné e, em 1975, se iniciaram as negociações para o que viria a ser o Tratado das Ilhas do Estreito de Torres, ratificado apenas em 1985.

O objetivo do tratado, precipuamente, foi o de delimitar as fronteiras marítimas entre a Austrália e Papua-Nova Guiné (que havia recém conquistado a independência, em 1975), a divisão da soberania das ilhas e a exploração de petróleo da região. Nele, as comunidades tradicionais são descritas no artigo 12¹ (que reconhece aspectos do direito consuetudinário dos povos originários) e o artigo 20² (que exclui das determinações sobre pesca as comunidades tradicionais, que poderão exercer a atividade sem as limitações impostas pelo Tratado). Nenhuma medida impositiva de políticas públicas à proteção cultural e linguística desses povos pode ser identificada no instrumento internacional.

Desde então, as reivindicações dos povos aborígenes e das Ilhas do Estreito de Torres estão concentradas, sobretudo, em seu reconhecimento expresso na constituição australiana, desta maneira, buscando maior participação política e a garantia de seus direitos fundamentais à cultura, tradição, religião e língua.

Em 2015 foi criado o Referendum Council, um conselho dedicado a estimular o diálogo com as diversas comunidades indígenas a respeito do reconhecimento constitucional e discutir as principais reivindicações perante o Estado australiano, resultando no relatório final publicado em 30 de julho de 2017.

Nele, a conclusão adotada consistiu em uma sugestão de proposta de emenda constitucional “para que seja realizado um referendo para prever na Constituição Australiana um órgão que dê aos povos aborígenes e das Ilhas do Estreito de Torres uma Voz ao Parlamento da Commonwealth”³ , denominado de “Conselho Makarrata”.

Após o término dos diálogos e da publicação do relatório final, ainda em 2017, foi realizada a Convenção Constitucional Nacional das Primeiras Nações, na região de Uluru-kata, na Austrália Central. Nela, foi divulgada a Declaração de Uluru, endossada pelas lideranças dos povos aborígenes e da Ilha do Estreito de Torres, reivindicando a “voz das Primeiras Nações” e a criação do conselho Makarrata.

Cinco anos após as históricas conquistas no campo político, entretanto, as autoridades e as instituições australianas permanecem inertes, situação que parece não se modificar a curto prazo.

As eleições gerais australianas, que ocorrerão em 21 de maio de 2022, não representam grande esperança para as históricas reivindicações dos povos aborígenes: inflação, COVID-19 e as mudanças climáticas são as pautas recorrentes e mais populares, e os partidos, distribuídos no Parlamento da Commonwealth, divergem em como abordar o assunto e colocar em prática as requisições indígenas.

Ativistas permanecem protestando, mas sem grandes expectativas de que a Declaração de Uluru, a criação do conselho Makarrata e a Voz das Primeiras Nações sejam temas de preocupação institucional, já que o contexto da corrida eleitoral tem se mostrado mais consumido pelas pautas populistas e com maior apelo, subjugando os interesses imediatos dos povos originários em nome da supremacia da dominação política.

E depois de séculos de reivindicações e conquistas, é como se lhes fosse dito: “esperaram duzentos anos, esperem até que me eleja.”

 

¹ Article 12: Where the traditional inhabitants of one Party enjoy traditional customary rights of access
to and usage of areas of land, seabed, seas, estuaries and coastal tidal areas that are in or in the vicinity
of the Protected Zone and that are under the jurisdiction of the other Party, and those rights are
acknowledged by the traditional inhabitants living in or in proximity to those areas to be in accordance
with local tradition, the other Party shall permit the continued exercise of those rights on conditions not
less favourable than those applying to like rights of its own traditional inhabitants.
² Article 20: 1. The provisions of this Part shall be administered so as not to prejudice the achievement of
the purposes of Part 4 of this Treaty in regard to traditional fishing.
³ Tradução livre, do original: to provide in the Australian Constitution for a body that gives Aboriginal
and Torres Strait Islander peoples a Voice to the Commonwealth Parliament;

 

Referências

ABS 2018b. Population projections, Australia, 2017 (base)—2066. ABS cat. no.
3222.0. Canberra: ABS.

Commonwealth of Australia. Referendum Council. Final report of the referendum council.2017;

LINDQVIST, Sven. Terra Nullius: a Journey through no one’s land. The New Press,
Nova Iorque, 2007.

National Constitutional Convention. Uluru Statement from the Heart. 2017;

Reuters. As Australia votes, indigenous people press call for inclusion in constitution.
Disponível em: https://www.reuters.com/world/asia-pacific/australia-votes-indigenous-
people-press-call-inclusion-constitution-2022-05-13/;

Reuters. Aboriginal Australians meet at sacred Uluru to discuss first chance of recognition. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-australia-constitution- indigenous-idUSKBN18K0P3;

SMITH. Leonard Robert. The Aboriginal population of Australia. Canberra: Australian
National University Press. 1980;

TREATY between Australia and the Independent Satate of Papua New Guinea
concerning sovereingty and maritime boundaries in the área between the two countries,
including the área known as torres strait, and relater matters. Sydney, Austrália, 18 de
dezembro de 1985, disponível em: http://www.austlii.edu.au/au/other/dfat/treaties/1985/4.html.

Fonte da imagem: Dave Hunt, file image, do site https://www.abc.net.au/news/2014-01-29/genetic-modification-helps-aboriginal-people-survive-hot-climat/5225742

Scroll to top