Por Pablo Gentili

Durante os últimos cinquenta anos, a educação latino-americana viveu um intenso conflito. Por um lado, os sistemas educacionais nacionais não pararam de crescer e ampliar sua cobertura, incluindo parcelas da população historicamente sem acesso às instituições escolares. Por outro, os sistemas intensificaram sua tendência à segmentação, reproduzindo as persistentes formas de segregação que marcaram seu desenvolvimento histórico. Criaram, assim, novas dinâmicas de exclusão endógenas, cada vez mais complexas e difusas. Para grandes setores da população, a permanência na escola, mesmo representando uma grande conquista social, não se converteu num direito efetivo. As últimas cinco décadas de nossa história educativa podem ser compreendidas como um processo de expansão das oportunidades de acesso à escola, num contexto de persistente negação do direito à educação para as grandes maiorias.

Desde os anos 1950, os sistemas educacionais da América Latina e do Caribe expandiram-se de forma vertiginosa. Num quadro de grande heterogeneidade regional, em que as especificidades nacionais exerceram e exercem um papel central no rumo assumido pelas políticas educativas, tal expansão é um dos traços característicos do desenvolvimento educacional na região durante o século XX.

Nesse período, a expansão da cobertura educativa não somente absorveu como superou o intenso crescimento demográfico (notável até os anos 1980), permitindo que setores tradicionalmente excluídos das instituições escolares pudessem ter, pela primeira vez, acesso a elas. Entre 1950 e 1980, a taxa de crescimento demográfico total, na América Latina, oscilou entre 2,8% e 2,4% anuais, diminuindo significativamente nos anos 1990 (1,7%) e de 2000 a 2005 (1,4% ao ano), sendo sempre muito mais elevada nos grandes conglomerados urbanos.

Apesar de algumas oscilações, o número de crianças e jovens no sistema escolar não parou de crescer. Em 1950, a taxa de matrícula (líquida) no ensino primário não alcançava a metade da população em idade escolar. No começo dos anos 1970, já era de 71%. Na década de 1990, de 87% e, em 2000, de 95%. O nível médio também teve um extraordinário crescimento no período. Enquanto nos anos 1950 a taxa de matrícula nesse nível não alcançava 30% da população entre 12 e 17 anos de idade, na década de 1970 era de quase 50% e, no ano 2000, de quase 70%. Em meados do século XX, menos de 5% dos jovens entre 18 e 23 anos estudavam em uma instituição superior (universitária ou não universitária). Nos anos 1990, já estavam matriculados no nível terciário mais de 25% dos jovens dessa faixa etária, apesar das grandes disparidades nacionais.

 

Alfabetização e permanência na escola

As taxas de analfabetismo, por sua vez, diminuíram significativamente durante as últimas cinco décadas. Nos anos 1950, o Brasil tinha, por exemplo, uma taxa de analfabetismo de 51% entre a população com mais de quinze anos; Honduras, 65%; México, 43%; Equador, 44%; República Dominicana, 57%; Colômbia, 38% e Chile, 20%. Em 2000, a taxa de alfabetização da população com mais de quinze anos era, no Brasil, de 88,4%; em Honduras, de 80%; no México, de 90,3%; no Equador, de 91%; na República Dominicana, de 87%; na Colômbia, de 94,2% e, no Chile, de 95,7%. Em 2004, 89,7% da população adulta e 96% da população juvenil da América Latina e do Caribe eram alfabetizadas.

O desenvolvimento quantitativo dos sistemas escolares aproximou, ao menos estatisticamente, uma boa parte dos países latino-americanos das nações mais desenvolvidas do planeta, distanciando-os das menos desenvolvidas. A África, por exemplo, tinha, no começo do século XXI, uma taxa de alfabetização de 59,9% da população adulta e a Ásia, de 79%, ainda que ambas as regiões possuam grandes disparidades nacionais. Países como ArgentinaBarbados, Chile, Colômbia, Costa RicaCubaPorto RicoTrinidad e TobagoUruguai Venezuela apresentavam taxas de alfabetização da população juvenil de aproximadamente 100%. A persistência dos altos índices de desigualdade nas oportunidades de acesso à escola em países como GuatemalaBelizeNicaráguaEl Salvador e especialmente Haiti, mesmo sendo evidência de um modelo de desenvolvimento colonial e oligárquico ainda vigente, não chegou a obscurecer o avanço dos indicadores regionais de escolarização em toda a América Latina.

O crescimento das oportunidades de acesso à escola permitiu diminuir, por exemplo, as brutais desigualdades de gênero que caracterizaram, historicamente, o desenvolvimento educacional latino-americano. As taxas de alfabetização, assim como as de matrícula em todos os níveis do sistema escolar, cresceram mais entre a população feminina do que entre a masculina, fazendo com que em alguns países haja mais meninas do que meninos nas instituições educacionais.

A chamada “esperança de vida escolar” (ou seja, o número de anos que uma criança com idade escolar pode esperar permanecer na escola) cresceu exponencialmente. Em média, os meninos e as meninas da América Latina e do Caribe permanecem quase doze anos nos níveis primários e secundários, um tempo muito superior à média dos países em desenvolvimento (8,7 anos). O indicador é superior ao do Leste Asiático (9,9 anos), ao dos países do Leste Europeu (10 anos) e muito próximo dos países mais desenvolvidos do mundo (12,6 anos).

Contudo, a América Latina e o Caribe estão muito longe de ser o paraíso educacional que as estatísticas aqui apresentadas parecem desenhar.

Crianças em escola pública na região amazônica perto de Manaus, no Brasil (Julio Pantoja/World Bank)

Expansão segmentada e excludente

Simultaneamente ao crescimento de seus sistemas escolares, a América Latina e o Caribe converteram-se, nesses cinquenta anos, na região mais injusta e desigual do planeta. Nesse meio século, a diferença entre ricos e pobres se multiplicou de tal forma que criou um abismo cuja profundidade parece ser hoje irrecuperável para grande parte da população. Até o início dos anos 2000, 44% dos latino-americanos e latino-americanas eram pobres e 19%, muito pobres.

Durante os últimos anos, esses índices mantiveram-se inalterados. A América Latina apresentava mais de 220 milhões de pobres, dos quais 95 milhões eram indigentes, ou seja, muito pobres. Na Argentina, por exemplo, a pobreza quase duplicou entre 1999 e 2002, passando de 23,7% a 45,4% do total da população. A indigência triplicou, alcançando mais de 20% da sociedade argentina. No Uruguai, entre 2000 e 2003, o número de pobres aumentou 60%. Em quase todos os países centro-americanos e na Bolívia, no Equador e no Peru, dois terços da população estavam abaixo da linha da pobreza. No México, na Colômbia e na Venezuela, mais da metade.

Também a distribuição de renda vem se estancando ou se deteriorando. O caso brasileiro é paradigmático. Em 1960, o Brasil tinha um índice de Gini (que mede a desigualdade) de 0,49. Em 1970, o indicador já era de 0,56 e, desde então, tem oscilado entre 0,60 e 0,64. (Quanto mais próximo de zero o índice de Gini, mais justa é a distribuição da renda de um país. Quanto mais perto de 1, mais desigual é o país. O índice de Gini da Suécia, por exemplo, é de 0,25 e o da Namíbia de 0,70). No Chile, país normalmente citado pelas virtudes de sua reforma educacional, a desigualdade social é uma das mais altas da América Latina. No final dos anos 1990, seu índice de Gini era 0,55, superior aos de México, Equador e Paraguai.

Para sobreviver, 70% dos lares latino-americanos dependem de receitas geradas pelo emprego. No entanto, menos da metade dos trabalhadores está protegida contra a perda de seu posto de trabalho, realidade agravada pelo desemprego crescente e pelo corte progressivo de direitos trabalhistas resultante das reformas implementadas durante os anos 1990. Os que não têm emprego são pobres. E boa parte dos empregados também. Metade dos latino-americanos com emprego recebe um salário que os mantém abaixo da linha da pobreza. No ano 2000, quase 60 milhões de latino-americanos e caribenhos viviam em situação de precariedade alimentar ou passavam fome. Em alguns países, como Bolívia, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua e República Dominicana, quase um quarto da população sofre de subnutrição em algum grau.

 

Pouco efeito contra a pobreza

Apesar da promessa de que o acesso à escola garantiria a conquista de melhores condições de vida, milhões de latino-americanos e latino-americanas viram ampliar suas oportunidades educativas, enquanto suas condições de vida se deterioravam dramaticamente. A escolaridade expandiu-se num contexto de crescimento da injustiça social. O avanço educacional teve, de fato, muito pouco efeito sobre a crise social produzida por um modelo de desenvolvimento excludente e desigual. A razão desse processo está longe de ser misteriosa.

Já no começo dos anos 1980, o Projeto Desenvolvimento e Educação na América Latina e Caribe, levado a cabo em conjunto pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), coordenado por Germán Rama, fazia um balanço das condições herdadas das décadas anteriores. O conjunto de estudos – um dos mais rigorosos sobre a situação da educação regional – denunciou de forma contundente boa parte dos problemas criados pelas reformas educacionais empreendidas por ditaduras militares brutais ou por governos democráticos frágeis e, em alguns casos, fraudulentos.

Os estudos mostraram que os sistemas educacionais viviam uma expansão notável, que colocava em evidência a inadequação deles às necessidades das grandes massas. A inércia institucional e política do sistema comprometia seriamente as possibilidades de democratização efetiva da educação. As formas de exclusão e marginalização educacionais tendiam a se tornar cada vez mais complexas. A segmentação do sistema contribuía para o baixo nível de aprendizagem, principalmente das crianças e dos jovens mais pobres.

A cultura das elites, hegemônica no sistema educacional “tradicional”, chocava-se com a cultura popular e com os códigos linguísticos dos setores sociais beneficiados pela expansão escolar, reproduzindo um modelo autoritário de imposição cultural. O crescimento das matrículas, contraditoriamente, evidenciava a crise ou, diretamente, a inexistência de uma educação popular. O estudo jogou luz, assim, sobre o caráter negativo de reformas meramente burocráticas, mostrando a interferência de equipes técnicas nacionais e internacionais que, verticalmente, pretendiam reformar os sistemas.

Reconheceu-se, com esse conjunto de estudos, uma associação direta entre os problemas estruturais do aparelho escolar e os “estilos de desenvolvimento” predominantes na região durante o século XX, particularmente desde o pós-guerra. Por fim, os estudos assinalavam a importância do papel exercido pelas demandas populares na conquista de maiores oportunidades de acesso à escola para os mais pobres, numa região marcada pelo constante conflito entre os esforços oligárquicos para manter os privilégios do sistema escolar e as lutas populares para democratizá-lo.

Dos anos 1980 em diante, essa situação, longe de mudar, tornou-se muito mais complexa. Ao longo de sua história, e com pouquíssimas exceções (como o caso cubano depois dos anos 1960), os países da América Latina e o Caribe desenvolveram seus sistemas educacionais num processo de profunda segmentação, criando redes institucionais diferenciadas, tanto do ponto de vista das condições materiais que oferecem como das oportunidades educacionais por eles abertas aos beneficiários. Essa segmentação questiona a própria noção de “sistema nacional de educação” em boa parte dos países da região. A rigor, na medida em que tendiam a democratizar as oportunidades de acesso, os sistemas escolares tornaram-se mais segmentados, diferenciando uma série de “circuitos” tão díspares entre si que tornaram impossível a comparação entre as várias experiências educativas.

As oportunidades de acesso a um ou outro “circuito” definem-se, na América Latina, não pelo talento dos alunos nem pela livre escolha dos pais, mas pelas condições de vida, pelos recursos materiais de que dispõem as famílias e pelas muitas e eficazes formas de segregação reproduzidas socialmente. Ou seja, pela classe, pela condição sexual, étnica ou racial. Assim, enquanto os pobres foram excluídos do acesso à escola, seu direito à educação passou a ser negado por uma barreira difícil de transpor e herdada há gerações. Quando conseguiram o acesso, foram confinados a instituições educativas iguais a eles, pobres ou muito pobres, enquanto os mais ricos mantinham seus privilégios, monopolizando agora não mais o acesso à escola, mas às boas escolas. A barreira da exclusão transferiu-se para o interior dos mesmos sistemas educacionais, no âmbito de uma grande expansão quantitativa e de uma não menos intensa segmentação institucional.

Entrega de computadores em escolas urbanas e rurais de Piñas, no Equador, em 2011 (Municipio Pinas/Creative Commons)

A democratização que não houve

Como vimos, as crianças latino-americanas e caribenhas “sobrevivem” muitos anos no sistema escolar. Contudo, o fazem em condições qualitativamente diversificadas. Pouco podemos dizer do tipo de educação que um menino recebe durante seus anos de permanência se não dispomos de dados sobre a cor de sua pele, sobre a posição de seus pais no mercado de trabalho, sobre a localização de sua escola e sobre o que ele faz depois do horário escolar. Cinco anos no sistema escolar podem significar, para alguns poucos, o início de uma promissora carreira, que culminará em um curso de pós-graduação numa das melhores universidades norte-americanas. Para muitos outros, esses cinco anos podem ser o início e o fim de uma curta experiência educativa marcada pelo fracasso, pela repetência compulsória e pela expulsão prematura.

Em suma, a democratização das oportunidades de acesso à escola não trouxe, pelo menos até o momento, uma democratização efetiva do direito à educação para todos os latino-americanos e latino-americanas. Uma situação especialmente grave se considerarmos as já mencionadas condições de injustiça social do continente, intensificada justamente no período em que a escola se oferecia, pela primeira vez, como uma oportunidade aos setores mais pobres da população. Sociedades cada vez mais injustas não podem ter senão sistemas educativos também injustos e discriminatórios. Injustiça e discriminação que nascem de um sistema fortemente heterogêneo e desigual.

Embora se suponha que esta segmentação institucional se traduz na divisão escola pública versus escola privada, ela se apresenta de forma muito mais complexa. A segmentação gera “circuitos” em que se combinam e se justapõem trajetórias e oportunidades específicas para os diferentes grupos sociais. Nem sempre, portanto, é correto afirmar, sem as devidas reservas, que na América Latina os ricos mandam seus filhos à escola privada e os pobres, à escola pública. Embora isso aconteça, a segmentação do sistema escolar cria, não poucas vezes, uma oferta pública para a elite em países onde também existe uma oferta privada de baixíssima qualidade para os pobres. Os ricos aproveitam as boas oportunidades que o sistema público de ensino lhes oferece, oportunidades estas, de maneira geral, negadas aos pobres. Do mesmo modo, aos pobres somente resta a opção de uma oferta privada também pobre e degradada, dirigida a eles em função do quase permanente desprezo com que os estados latino-americanos tratavam e tratam as demandas dos setores com menos oportunidades e recursos econômicos.

Atualmente, a escolarização atinge quase a totalidade da população infantil em muitos países da América Latina. O problema é que as oportunidades educativas continuam sendo distribuídas de forma profundamente desigual – o que questiona o próprio sentido do direito à educação, ao transformá-lo num bem de consumo acessível somente na proporção da capacidade aquisitiva daqueles que aspiram a se beneficiar dele. Ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, cenário de escolas cada vez mais ricas e escolas cada vez mais pobres. Fora deste contexto, pouco se pode compreender do processo de expansão dos sistemas escolares latino-americanos durante a segunda metade do século XX.

 

O problema da qualidade educativa

Existe certo consenso em torno da baixa qualidade de ensino trazida pela expansão dos sistemas escolares latino-americanos. Evidenciam essa deterioração os insuficientes níveis de aprendizagem dos estudantes, a má formação dos docentes, a precariedade da infraestrutura e a quase inexistente modernização tecnológica do sistema. Tais diagnósticos, no entanto, tendem a desconsiderar um fator que, somado aos anteriores, teve um papel fundamental na definição do “problema” da qualidade educativa nos países da região: as reformas dos sistemas escolares das últimas décadas. Em vez de diminuir os efeitos discriminatórios de uma estrutura institucional marcada pela segmentação e pela desigualdade, as reformas reforçaram suas tendências excludentes. Desde os anos 1980, e especialmente a partir da década de 1990, boa parte dos países latino-americanos e caribenhos levou a cabo reformas educativas, conduzidas por governos neoliberais e conservadores que não fizeram senão aprofundar a crise dos sistemas, intensificando sua segmentação e transferindo para as pessoas a responsabilidade pelo fracasso anunciado.

Essas reformas conspiraram, e ainda conspiram, contra a possibilidade de criar condições efetivas de democratização do sistema escolar, fortalecendo os efeitos excludentes (exógenos e endógenos) que marcaram o desenvolvimento da educação latino-americana durante as últimas décadas. Assim, mesmo que os sistemas educacionais tenham vivido uma profunda transformação institucional, esta mudança só fez cristalizar um padrão histórico de discriminação escolar que consolida a tendência de que os pobres latino-americanos tenham “direito” a permanecer alguns anos no sistema educativo, embora ainda estejam, como sempre estiveram, alijados do direito a uma educação de qualidade que questione e enfrente o monopólio do conhecimento exercido por parte das minorias que detêm o poder político e econômico em nossas sociedades.

Longe de contribuir para a solução dos problemas herdados das décadas anteriores – que tão consistentemente o informe da Unesco/CEPAL/PNUD denunciou no começo dos anos 1980 –, as reformas escolares dos últimos anos aprofundaram a crise educativa e transformaram a “qualidade” do sistema num atributo disponível somente para aqueles com dinheiro para pagar por ele. A educação latino-americana é, de fato, de baixa qualidade, embora não o seja apesar das reformas educativas dos anos 1990, mas por causa delas.

As razões que explicam por que isso ocorreu tampouco são misteriosas.

 

Baixo investimento educativo

Numa combinação de fatores que consolidam sua segmentação e diferenciação institucional, os sistemas educativos latino-americanos ampliaram sua cobertura em um contexto de redução ou de estancamento dos investimentos governamentais. Mais demanda por educação e menos recursos para financiar a oferta educativa foram e ainda são a realidade dos sistemas escolares em boa parte da América Latina e do Caribe.

Durante os anos 1980, as restrições orçamentárias foram mais notórias nos países que recuperaram a institucionalidade democrática, onde se fortalecia a promessa de escolaridade como oportunidade integradora. Sendo a educação tão importante para o desenvolvimento, os países latino-americanos não fizeram senão ampliar os anos de escolaridade obrigatória. Esses governos comprometeram-se a cumprir as metas da Conferência Mundial de Educação para Todos (Jomtiem, 1990) e as reafirmaram em Dakar (2000), dez anos depois, quando “descobriam” que quase nenhum dos compromissos assumidos na Tailândia havia sido cumprido plenamente. Ratificaram, também, os objetivos do Programa Principal de Educação (PPE) da Unesco. Assinaram os mais diversos convênios e compromissos de cooperação nas reuniões das Américas e nas Ibero-americanas. E viram-se seduzidos a aceitar que a educação fosse incluída como um bem comercializável nos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Nada disso, no entanto, os levou a pensar que, se a educação era tão importante, deviam investir recursos significativos para garantir seu sustento.

Nos primeiros anos do século XXI, poucos países da América Latina gastavam mais de mil dólares anuais por aluno em educação primária (por exemplo, Argentina, México, Costa Rica e Chile), enquanto outros (Paraguai, Peru, Bolívia, Guatemala, Nicarágua, El Salvador e Haiti) gastavam menos de quinhentos dólares. Os Estados Unidos gastavam, nesse período, US$ 7.560 por aluno e os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE, que reúne as economias industrializadas) em média, US$ 4.850. Em educação média, nenhum país da região gastava mais de 2 mil dólares anuais por aluno e muitos deles, menos de quinhentos. Os Estados Unidos gastavam US$ 8.359 e os países da OCDE, em média US$ 5.787.

Embora tenda a diminuir, a distância que separa o investimento em educação na América Latina e nos países mais desenvolvidos permanece elevada. Por outro lado, o aumento do investimento educacional na região nem sempre tem redundado em benefícios para os mais pobres e excluídos. De fato, os mais ricos parecem ter maior capacidade de absorção e aproveitamento do investimento público em educação. Ao mesmo tempo, os altos níveis de corrupção e incompetência administrativa fazem com que muitos recursos públicos destinados a financiar a educação se percam ou sejam desperdiçados, com um alto custo para os mais pobres, cuja capacidade para subsidiar a irresponsabilidade ou a incompetência oficial é muito menor que a dos mais ricos.

Embora tenha aumentado nos últimos anos, o investimento em educação na América Latina é significativamente baixo diante do desafio que a região enfrenta para reduzir a desigualdade e a injustiça sociais. Também é extraordinariamente baixo se considerarmos os altos níveis de corrupção, a falta de controle e fiscalização pública sobre essas verbas, o clientelismo e o patrimonialismo oficial, a incompetência das burocracias ministeriais e os altíssimos níveis de evasão fiscal existentes na região, particularmente por parte das grandes empresas e conglomerados empresariais.

Ao mesmo tempo, o altíssimo endividamento externo (graças ao qual os pagamentos dos juros das dívidas consomem mais do que os países gastam anualmente em seus sistemas educacionais), associado a políticas de ajuste fiscal cada vez mais rigorosas, tem comprometido seriamente as condições de financiamento público que permitam garantir, ao mesmo tempo, a expansão da cobertura e a igualdade das oportunidades.

As reformas educacionais implementadas durantes as duas últimas décadas serviram a uma política econômica de efeitos discriminatórios e excludentes. No melhor dos casos (por exemplo, comparando o Chile com a Espanha), a América Latina investe em educação (ensinos Fundamental e Médio) menos da metade do que investem os países mais desenvolvidos do planeta. No pior dos casos (por exemplo, comparando El Salvador aos Estados Unidos), a América Latina investe trinta avos do que investem em educação as nações mais poderosas do planeta.

 

Privatização

As reformas neoliberais implementadas nas últimas duas décadas intensificaram a dinâmica de privatização da educação pública na região. Boa parte da responsabilidade pelo investimento educacional foi transferida para as famílias, gerando um grande retrocesso no sistema. Como fica evidente, os mais pobres, obrigados a financiar sua própria educação (de forma direta ou indireta), viram suas oportunidades educativas se tornarem ainda mais precárias.

Durante os últimos anos, as fronteiras entre o público e o privado na área educacional tornaram-se mais difusas graças à introdução de vários mecanismos: a implementação de financiamentos baseados em “fundos”, cujas metas nunca chegam a ser cumpridas (numa permanente violação das leis vigentes); a distribuição de incentivos de produtividade e desempenho aos estabelecimentos educativos (geradores de uma intensa competição interinstitucional que, perversamente, beneficia as escolas “melhores” e castiga as “piores”); o subsídio à demanda por meio de bônus educativos (pagos às famílias ou, indiretamente, às próprias escolas); a subvenção direta de instituições privadas de ensino; a pretensão de instituir sistemas de remuneração docente baseados em resultados, provenientes de questionáveis critérios de eficácia e produtividade; a cobrança de taxas e matrículas aos “usuários” do sistema (no jargão dos organismos internacionais, os “clientes” dos serviços educativos); os acordos e as alianças com o mundo empresarial, aumentando de forma significativa a ingerência das grandes empresas não somente na produção do discurso educativo hegemônico, mas também na gestão dos estabelecimentos escolares; a descentralização autoritária (mediante a concentração do poder pedagógico nas mãos das burocracias ministeriais e a transferência às escolas da responsabilidade por captar fundos no mercado) etc.

Em algumas nações da América Latina e do Caribe, a própria noção de “gratuidade” da educação pública, em todos os níveis, está seriamente ameaçada. Países como Colômbia, Granada, Haiti, Jamaica, Nicarágua, Paraguai, Peru, Suriname Trinidad e Tobago cobram impostos e/ou matrículas das famílias com filhos nas escolas públicas. No caso da Colômbia, a privatização da educação pública fundamental motivou, em 2004, uma contundente denúncia à ONU por parte da relatora especial sobre o Direito à Educação, Katarina Tomasevski.

Os processos de privatização são sempre processos de transferência do poder da esfera pública para o mercado. Como consequência, na América Latina, a privatização da educação tem se intensificado não somente por meio da transferência (do Estado para o mercado) da responsabilidade de financiar a educação, mas também mediante um complexo processo de transferência do poder efetivo de controle e coerção do sistema educacional para novas corporações empresariais ou fundações privadas, criadas pelas reformas do Estado. De fato, os governos latino-americanos não somente privatizam a educação ao obrigarem as famílias a arcar com os custos da escola de seus filhos, também o fazem ao transferirem recursos públicos a entidades privadas, que passam a exercer um poder normativo e disciplinador muito poderoso no interior do sistema.

Exemplo emblemático dessa tendência é o surgimento de sistemas nacionais de avaliação do rendimento escolar (mediante provas unificadas aplicadas à população estudantil). Entre os anos 1980 e 1990, boa parte dos países da região adotou esse tipo de estratégia de medição da “qualidade”. Os resultados das provas são considerados indicadores infalíveis do grau da produtividade docente e dos saberes efetivamente adquiridos pelos estudantes. Os governos investiram grandes somas de dinheiro público para a aplicação dessas provas e para a sistematização de seus resultados. Contudo, mesmo quando o financiamento dos sistemas de medição é de responsabilidade dos Estados nacionais, sua implementação e seu controle têm sido transferidos a empresas e ou fundações privadas, via licitações nem sempre transparentes. Empresas e fundações não somente lucram com isso, como também monopolizam o poder normativo e disciplinador sobre as provas. Assim, os processos de privatização avançam não somente quando os governos gastam menos com educação, mas também quando gastam mais.

A privatização da educação contribuiu, assim, para tornar mais intenso e discriminatório o processo de segmentação e diferenciação das instituições educativas vivido em quase toda a América Latina.

 

Precarização do trabalho docente

A expansão dos sistemas educacionais durante a segunda metade do século XX e, em particular, as reformas levadas a cabo desde os anos 1980 tiveram grandes consequências sobre o trabalho docente na América Latina e no Caribe. Por um lado, é limitada a disponibilidade de professores e de cargos estáveis para o exercício da docência, num contexto de significativo aumento da demanda por educação. São também limitadas as oportunidades de uma formação superior de qualidade para aqueles que desejam exercer a profissão, visto que a oferta de capacitação docente nas universidades e centros privados é altamente dispersa, e a oferta pública se privatiza num amplo mercado de “aperfeiçoamento” docente cada vez mais imperfeito.

Com variações significativas de país para país, o número de alunos por docente, em todos os níveis do sistema, é muito alto, superando, em quase todos os casos, os países desenvolvidos. Na educação primária, Chile, Colômbia, Guatemala, GuianaHaiti, Jamaica, México, Nicarágua, Paraguai e Peru têm mais de 25 estudantes por professor. O único país da região cuja relação alunos/docente é igual ou inferior à das nações mais ricas do planeta é Cuba. No outro extremo, na Nicarágua, a média é de 24,8 alunos por docente na educação pré-escolar, 35,2 no fundamental e 33,9 no nível médio. Na Guatemala, são 27,7 alunos por docente no nível superior.

Em termos absolutos e relativos, as remunerações dos professores são muito baixas na América Latina e no Caribe. Em alguns países, durante os últimos anos, os salários reais dos profissionais da educação tiveram uma grande deterioração. O salário anual inicial dos docentes regulares alcança, nos países da OCDE, uma média de US$ 20.530 no nível fundamental e US$ 23.201 no Ensino Médio. Para os docentes com mais de quinze anos de experiência e nível superior, os salários chegam a US$ 35.737 e US$ 41.616, respectivamente.

A distância desses valores em relação aos pagos nos países latino-americanos é, em alguns casos, abismal. No Chile, a média salarial dos professores vai de US$ 12.711 ao ano (início de carreira) a US$ 21.237 ao ano (final de carreira). No nível médio, de US$ 12.711 (início de carreira) a US$ 22.209 (final de carreira). Na Argentina, a média salarial no nível fundamental vai de US$ 6.759 anuais a US$ 11.206 (para o início e final de carreira, respectivamente); no nível médio, de US$ 10.837 a US$ 19.147. No Brasil, de US$ 4.732 a US$ 15.522 no Ensino Fundamental (início e fim de carreira); US$ 8.148 e US$ 14.530 no Ensino Médio (início e fim de carreira). No Ensino Fundamental, no Uruguai, a média oscila entre US$ 6.225 anuais a US$ 13.340 (início e fim de carreira) e de US$ 6.847 anuais a US$ 14.672 no nível médio (início e fim de carreira).

A instabilidade econômica, associada ao baixo investimento estatal em educação, tem submetido os professores à mais absoluta precariedade de trabalho. Em muitos países da região, os docentes da educação primária vivem abaixo da linha de pobreza. São pobres que devem educar pobres num contexto de empobrecimento progressivo das condições de ensino. A precariedade salarial está associada, assim, à progressiva precariedade das condições de trabalho pedagógico nas escolas. O baixo investimento em educação resulta em péssimas condições de infraestrutura escolar, falta de material didático apropriado, ausência de bibliotecas e, salas de aula superlotadas.

Os governos neoliberais tentaram atenuar essa situação mediante programas de modernização periférica que fizeram da chamada “transformação educativa“ uma verdadeira caricatura do que deveria ser uma política pública democrática: compra de alguns poucos computadores, instalação de antenas parabólicas e aparelhos de vídeo, de fax e data shows em escolas com goteiras permanentes, sem saneamento básico, com um único banheiro para meninos e meninas, muitas vezes sem giz e até sem energia elétrica. As condições de trabalho nas escolas rurais são também altamente precárias.

O crescimento demográfico, associado a uma grande concentração da demanda escolar nos centros urbanos, embora tenha facilitado a expansão das redes, o fez de forma caótica e desordenada. Os sistemas educacionais cresceram, de fato, como fizeram as grandes cidades da região, sem a menor planificação e numa situação de verdadeiro caos para aqueles em piores condições para garantir, por si mesmos, sua qualidade de vida. A falta de docentes e a inclusão no sistema de professores e professoras sem respeito às normas jurídicas vigentes (concursos), aos estatutos do magistério e aos mais básicos princípios do direito trabalhista democrático foram e são algumas das características marcantes da expansão educacional urbana desde os anos 1970. Nem todos os profissionais da educação recebem as remunerações estabelecidas pelas normas que regulam a carreira do magistério. Muitos são contratados por períodos curtos (não maiores que dez meses), não podem ter acesso às poucas oportunidades de formação pública de qualidade e veem deteriorar suas condições de vida, tal como seus alunos.

Finalmente, como demonstram numerosos estudos, o exercício da docência transformou-se, em muitos países da região, numa atividade profundamente insalubre. As doenças profissionais do trabalho multiplicaram-se, tornando ainda mais precária a educação dos mais pobres, em um círculo vicioso no qual a docência se apresenta a jovens pobres como oportunidade de trabalho relativamente estável, num mercado de trabalho cada vez mais precarizado.

O quadro fica ainda mais dramático quando observamos a ofensiva ideológica conservadora contra os professores, presente nos últimos anos. Eles são responsabilizados pela profunda crise que enfrentam os sistemas escolares e lhes é atribuída a culpa pelas péssimas condições de aprendizagem dos alunos e alunas, pelas altas taxas de repetência, pelas escassas oportunidades de inserção no trabalho dos egressos do sistema escolar, pela violência dentro e fora das escolas e pela falta de participação cidadã nas questões mais relevantes que nossas sociedades devem enfrentar.

Dois casos emblemáticos

Alguns poucos quilômetros no mar do Caribe separam Cuba do Haiti. Na década de 1950, os dois países tinham altíssimos índices de exclusão e segregação educacional. Em meados dos anos 1970, no contexto das profundas mudanças políticas promovidas por seu processo revolucionário, Cuba estava perto de superar a média latino-americana de oportunidades de acesso e permanência no sistema escolar. O Haiti, por sua vez, tinha somente 25% da população infantil matriculada na escola. Em 2000, Cuba tinha uma taxa de escolarização de 97% na educação pré-primária. O Haiti não dispunha de dados a respeito. Hoje, a totalidade dos meninos e meninas cubanos vai à escola primária. No Haiti, 79%. Cuba possui 82% dos jovens matriculados em instituições de nível médio. O Haiti, 20%.

Não há dados sobre a taxa de escolarização no ensino superior haitiano. O sistema universitário cubano é um dos mais democráticos do mundo em suas oportunidades de acesso, permanência e gratuidade. O Haiti tem uma taxa de analfabetismo, entre a população com mais de 15 anos, de 53,2%. Em Cuba, 99,8% da população é alfabetizada. O Haiti tem 31 alunos por docente no Ensino Fundamental, e Cuba, 11. Em Cuba, a esperança de vida no sistema educacional (para aqueles que têm acesso à educação fundamental e média) é de quase 13 anos. No Haiti, a escolaridade obrigatória é a mais baixa da América Latina e do Caribe – 6 anos –, e poucos chegam a completar esse curto período. Uma relação semelhante à da esperança de vida entre haitianos e cubanos. Os homens haitianos vivem, em média, 47 anos; as mulheres, 51. Os homens cubanos, 74 anos; as mulheres, 78.

Costuma-se não autorizar Cuba a participar das provas de medição internacionais sobre a qualidade dos sistemas escolares. No entanto, quando o fez, como no caso das avaliações realizadas pelo Laboratório Latino-Americano de Avaliação da Qualidade da Educação da Unesco, seus resultados são semelhantes ou superiores aos obtidos pelas nações mais desenvolvidas do planeta e se distanciam muito da média obtida pelos outros países da região. Não há dados sobre a qualidade de aprendizagem das crianças do Haiti. Estima-se que não seja superior à dos brasileiros, chilenos, colombianos, mexicanos, peruanos e uruguaios, cujos países obtiveram os últimos lugares nas provas internacionais de medição da qualidade (como as provas TIMSS, realizadas pela Associação Internacional para a Avaliação do Rendimento dos Alunos, consórcio internacional com sede na Holanda, e pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, da OCDE).

Em 2005, a Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) de Havana entregou seus diplomas à primeira turma de médicos e médicas: 1.610 jovens, de 28 nações, concluíram sua formação superior num país condenado injustamente a um bloqueio imperial que impossibilita suas oportunidades de crescimento e desenvolvimento econômico. Estudaram de forma totalmente gratuita, durante seis anos, inclusive com residência médica em regiões pobres de seus países de origem. Os novos profissionais, com idade média de 26 anos, nasceram em famílias pobres, como a maioria dos latino-americanos.

Setenta por cento dos jovens formados pela ELAM vêm de lares situados abaixo da linha de pobreza; 46% são mulheres; muitos deles, filhos ou netos de desaparecidos políticos de países como Chile, Argentina e Uruguai. Muitos outros nasceram em famílias camponesas e participam ativamente de organizações populares, como do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil. Outros nasceram e viveram em comunidades indígenas. Em 2005, mais de 12 mil alunos e alunas assistiam aos cursos da instituição, entre os quais 5.500 eram da América do Sul, 3.244 da América Central, 1.039 do Caribe, 489 do México e dos Estados Unidos, 42 da África e do Oriente Médio, 61 de países asiáticos, dois de países europeus e 64 eram provenientes dos povos indígenas de toda a América Latina.

Enquanto isso, o Haiti recebia um novo reforço militar de algumas nações latino-americanas, lideradas pelo Brasil e monitoradas pelos Estados Unidos. O objetivo: tratar de restabelecer a paz, conter a onda de violência produzida pela extrema miséria e pela permanente instabilidade política vivida, em um país onde 1% da população controla a metade da riqueza. Cuba exporta médicos e médicas aos países mais injustos da região. Os países mais ricos e injustos da região exportam militares ao Haiti.

Poucos quilômetros do mar do Caribe separam Cuba do Haiti. Em seus sistemas educacionais espelha-se o futuro da América Latina.

Estudantes nas ruas de Havana, Cuba, em 2009 (Aldo van Zeeland/Creative Commons)

Aonde vai a educação latino-americana?

Atualmente, como no passado, grandes desafios se colocam para a educação latino-americana. Embora não seja necessário resumir todos, algumas diretrizes parecem ser necessárias num futuro próximo.

 

Direito radical à educação

É preciso fortalecer uma concepção democrática e radical do direito à educação. Para que esse direito seja conquistado, é preciso haver uma escola pública aberta, democrática, gratuita e laica. Mas ela não é suficiente. A educação é um bem de fundamental importância para promover a igualdade social, ampliar as oportunidades de acesso ao mercado de trabalho e, inclusive, em determinadas condições, para produzir bem-estar econômico. Entretanto, em uma sociedade democrática, a educação deve ser muito mais que isso. É uma ferramenta para potencializar a luta contra o monopólio do poder, contra as arbitrariedades, o autoritarismo, a discriminação e a segregação. Um instrumento político fundamental para a transformação das estruturas de discriminação que se produzem e reproduzem historicamente. Estruturas que se sustentam na apropriação monopolista do saber socialmente produzido.

A educação é um direito humano e social, que não pode estar submetido à lógica da mercantilização e privatização, pois, da socialização dos saberes e da ruptura democrática do monopólio do conhecimento, depende a possibilidade de construção de uma sociedade justa e igualitária. Só será possível afirmar que há direito à educação quando todos e todas, sem distinção de classe, gênero, raça, origem étnica, língua materna, condições físicas ou orientação sexual, puderem viver numa coletividade em que o conhecimento for um bem comum. Por isso, não existe direito à educação quando a “qualidade” da escola é um atributo disponível somente para aqueles que têm dinheiro para pagar por ele. Qualidade para poucos não é qualidade, é privilégio. E o privilégio é diametralmente oposto aos princípios que fundamentam uma sociedade democrática. Fortalecer, defender e transformar a escola pública é um desafio central para que, na América Latina e no Caribe, a educação seja um direito de todos e todas.

 

Expansão da educação pública

A democratização do acesso à escola nem sempre foi acompanhada de uma democratização efetiva do direito à educação para os mais pobres. Atualmente, há mais crianças no sistema escolar, mas também há mais crianças excluídas da sociedade. A expansão da escola não foi produto de nenhum ato de generosidade das elites ou das oligarquias nacionais. Foi, sim, resultado das lutas populares levadas adiante por movimentos sociais, organizações sindicais e partidos democráticos. Fortalecer essas lutas e essas demandas é um imperativo político, já que delas depende que, na América Latina, o acesso às instituições escolares e o direito à educação não sejam diametralmente dissociados, como são nos dias atuais para a grande maioria.

 

Reformas democráticas

É necessário promover reformas democráticas que ponham fim à herança de injustiça e desigualdade de sistemas educacionais segmentados e diferenciados. Mesmo não sendo condição para uma reforma social democrática, é imprescindível mudar o rumo assumido pelas reformas educacionais conservadoras, elitistas e, mais recentemente, neoliberais, implementadas em quase todos os países da região. Uma reforma efetiva dos sistemas escolares deve eliminar sua segmentação, sem com isso homogeneizar ou pasteurizar as instituições, desconhecendo as especificidades locais e a rica diversidade cultural da região. A unidade do sistema educacional deve basear-se no acesso igualitário ao direito à educação, terminando com as formas de segregação que condenam os pobres a uma educação pobre e reproduzem o privilégio dos ricos a uma educação rica.

 

Qualidade com igualdade

Experiências locais e nacionais que conjuguem qualidade e igualdade devem ser fortalecidas. Durante os últimos anos, apesar dos governos neoliberais, a América Latina e o Caribe foram cenário de experiências políticas que comprovam ser possível a construção de uma alternativa democrática para os sistemas educacionais. O Brasil, em particular, tem sido um espaço propício para a proliferação de experiências democráticas de gestão local da educação, como, entre outras, a da Escola Cidadã, de Porto Alegre; a da Escola Plural, de Belo Horizonte; a gestão de Paulo Freire no comando da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, revitalizada, anos mais tarde, na gestão de Marta Suplicy (2001-2004). Propostas educativas inovadoras também são ou foram levadas à prática em outros países, como na cidade de Buenos Aires e, recentemente, nos ministérios da Educação da Argentina e do Uruguai; em cidades colombianas como Bogotá e Medellín, durante os governos progressistas e de centro-esquerda; na cidade do México etc. A Venezuela, por sua vez, tem levado adiante, em meio à sua revolução bolivariana, um variado conjunto de programas e missões que tem permitido contrabalançar a herança de discriminação e exclusão educacionais que marcou o desenvolvimento do país na segunda metade do século XX.

São extraordinariamente ricas as experiências de educação popular executadas por movimentos e organizações sociais, que pressionam governos para a adoção de ações democratizantes que não seriam tomadas caso não houvesse a luta e o compromisso desses atores. Destacam-se aqui as muitas ações educativas levadas adiante pelo MST no Brasil, assim como a de numerosos movimentos indígenas, organizações de bairros, de pais e mães, entidades sindicais (principalmente de professores), de trabalhadores desempregados e piqueteiros. Essas reformas e ações, mesmo com seus limites, ajudam a pensar novas formas de gestão pública da educação, num cenário pós-liberal e democrático.

 

Estratégias afirmativas

É preciso combinar o fortalecimento da escola pública universal com a adoção de ações afirmativas para beneficiar os grupos mais excluídos e discriminados. O direito à educação depende, em parte, do fortalecimento da escola pública. Dadas as condições atuais de exclusão e segregação sofridas por alguns grupos, é imprescindível a multiplicação de políticas destinadas a compensar e reverter as dinâmicas de exclusão que eles sofrem, antes e depois de ingressar no sistema escolar. É o caso das comunidades indígenas e, em países como Brasil, Colômbia, Equador e Peru, da população negra. Mesmo insuficientes, essas ações afirmativas são fundamentais para garantir condições básicas de acesso e de permanência no sistema.

 

Internacionalização democrática

Os governos neoliberais promoveram certa internacionalização da política educacional para, é claro, reforçar o caráter desigual e excludente dos sistemas escolares nacionais. Eles o fazem mediante a associação de suas ações e programas educativos, que, sem diferenças substanciais, são apoiados, quando não promovidos, pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. A aliança entre as administrações neoliberais e os organismos financeiros internacionais tem permitido até mesmo apagar certas especificidades nacionais que, no passado, marcaram o desenvolvimento educacional dos países da região.

A luta contra a globalização excludente é também um imperativo político das forças democráticas. Para fazê-lo, é necessário fortalecer outras formas de internacionalização, democráticas e solidárias, que permitam construir o sonho de uma América Latina unida contra toda exploração e exclusão. O Fórum Mundial de Educação é uma das expressões mais ricas da enorme potencialidade que têm hoje, e terão no futuro, as estratégias de luta global pela emancipação, justiça e igualdade.

 

Quadros Estatísticos

Taxa líquida de matrícula no Ensino Primário na América Latina e no Caribe (2001/2002)

Países Total H M
Argentina 100 100 100
Bahamas 86 85 88
Barbados 100 100 100
Belize 96 96 96
Bolívia 94 94 94
Brasil 97 96 97
Chile 86 87 86
Colômbia 87 87 86
Costa Rica 91 90 91
Cuba 99 100 98
Dominica 91 93 90
Equador 99 99 100
El Salvador 89 89 89
Granada 84 89 80
Guatemala 85 87 83
Guiana 96 96 95
Haiti 78
Honduras 87 87 88
Jamaica 95 95 95
México 99 99 100
Nicarágua 82 82 82
Panamá 99 99 99
Paraguai 92 91 92
Peru 100 100 100
Rep. Dominicana 97 99 95
São Cristóvão e Névis 96 91 100
Santa Luzia 99 100 98
São Vicente e

Granadinas

92 92 92
Suriname 97 97 98
Trinidad e Tobago 94 94 94
Uruguai 90 89 90
Venezuela 92 92 93

Fonte: Elaborada pelo autor com base de dados do Compêndio Mundial da Educação (2004), Instituto de Estatística da Unesco. Países cujos dados não estão disponíveis foram excluídos.

 Taxa líquida de matrícula no Ensino Secundário na América Latina e no Caribe (2001/2002)

Países Total H M
Argentina 81 79 83
Bahamas 79 79 79
Barbados 87 87 86
Belize 60 58 53
Bolívia 67 68 67
Brasil 72 69 74
Chile 79 78 79
Colômbia 54 51 56
Costa Rica 51 48 53
Dominica 84 82 87
Equador 50 50 50
El Salvador 46 45 47
Estados Unidos 85 85 85
Guatemala 29 30 29
Guiana 74 72 76
Haiti 19
Jamaica 75 73 76
México 60 59 61
Nicarágua 37 34 40
Panamá 62 60 65
Paraguai 50 49 51
Peru 66 67 65
Rep. Dominicana 41 35 47
São Cristóvão e Névis 91 83 100
Santa Luzia 70 61 79
São Vicente e Granadinas 52 47 57
Suriname 63 52 75
Trinidad e Tobago 68 67 69
Uruguai 72 68 76
Venezuela 57 53 62

Fonte: Elaborada pelo autor com base de dados do Compêndio Mundial da Educação (2004), Instituto de Estatística da Unesco. Países cujos dados não estão disponíveis foram excluídos.

 

Taxa de analfabetismo na América Latina e no Caribe

Países 1990 1995 2000
Total H M Total H M Total H M
Argentina 4,3 4,1 4,4 3,7 3,6 3,7 3,2 3,2 3,2
Bahamas 5,6 6,4 4,8 5,0 5,9 4,2 4,6 5,5 3,7
Barbados 0,6 0,6 0,7 0,5 0,4 0,5 0,3 0,3 0,3
Belize 10,9 10,0 11,8 8,4 7,7 9,1 6,8 6,7 6,8
Bolívia 21,9 13,2 30,2 17,9 10,4 25,2 14,6 8,1 20,8
Brasil 18,0 17,1 18,8 15,3 14,9 15,7 13,1 13,0 13,2
Chile 6,0 5,6 6,4 5,1 4,8 5,3 4,2 4,1 4,4
Colômbia 11,6 11,2 11,9 9,9 9,7 10,0 8,4 8,4 8,4
Costa Rica 6,1 6,1 6,2 5,2 5,3 5,2 4,4 4,5 4,4
Cuba 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2 0,2
Equador 12,4 9,8 14,9 10,2 8,2 12,3 8,4 6,8 10,1
El Salvador 27,6 23,9 30,9 24,1 20,9 27,1 21,3 18,5 23,9
Guatemala 39,0 31,2 46,8 35,1 27,4 42,7 31,5 24,0 38,9
Guiana 2,8 2,0 3,6 2,1 1,4 2,8 1,5 1,1 1,9
Haiti 60,3 57,4 63,1 55,3 52,7 57,7 50,2 48,0 52,2
Honduras 31,9 31,1 32,7 28,3 28,0 28,6 25,0 25,1 25,0
Jamaica 17,8 22,0 13,9 15,2 19,4 11,3 13,1 17,1 9,3
México 12,7 9,4 15,7 10,5 7,9 13,0 8,8 6,7 10,9
Nicarágua 37,3 37,3 37,2 35,4 35,5 35,2 33,5 33,8 33,3
Panamá 11,0 10,3 11,6 9,4 8,8 10,1 8,1 7,5 8,8
Paraguai 9,7 7,6 11,7 8,1 6,6 9,6 6,7 5,6 7,8
Peru 14,5 8,0 20,9 12,2 6,6 17,6 10,1 5,3 14,8
Rep. Dominicana 20,6 20,2 21,0 18,3 18,2 18,5 16,3 16,3 16,3
Trinidad e Tobago 3,2 1,9 4,4 2,3 1,4 3,2 1,7 1,1 2,3
Uruguai 3,5 4,0 3,0 2,9 3,4 2,5 2,4 2,9 2,0
Venezuela 11,1 9,9 12,3 9,1 8,3 9,9 7,5 7,0 8,0

Fonte: Instituto de Estatística da Unesco.

 

 Relação aluno/professor no sistema escolar da América Latina e do Caribe

Pré-primário Fundamental Médio Superior
Países 2002/2003 2002/2003 2002/2003 2002/2003
Argentina 23,7 17,3 17,4 15,9
Aruba 21,5 18,4 14,9 9,9
Bahamas 11,2 16,8 15,0
Barbados 15,7 16,1 15,2
Belize 17,6 20,8 22,9 7,1
Bolívia 44,0 23,7 24,3 19,1
Brasil 18,8 24,0 19,1 14,8
Ilhas Virgens Britânicas 12,6 13,8 9,6
Chile 24,8 32,9 32,6
Colômbia 21,1 26,8 20,9 11,9
Costa Rica 17,5 22,6 18,8
Cuba 17,9 10,7 11,7 5,3
República Dominicana 26,8 25,8
Equador 17,3 23,7 13,3
Granada 14,8 18,7 20,1
Guatemala 23,2 30,1 13,7 27,7
Guiana 15,0 26,6 15,4
Haiti 31,0
Jamaica 21,3 29,7 20,3 22,8
México 22,3 26,7 17,1 9,7
Nicarágua 24,8 35,2 33,9 15,3
Panamá 20,5 24,3 16,1 13,9
Paraguai 25,6 27,0 11,9
Peru 26,8 25,1 18,9 14,8
Suriname 24,2 19,5 15,1
Trinidad e Tobago 12,9 18,5 18,9 12,7
Uruguai 29,0 21,2 18,0 8,2

 

Relação aluno/professor em outros países

Pré-primário Fundamental Médio Superior
Países 2002/2003 2002/2003 2002/2003 2002/2003
Bélgica 14,3 11,9 14,8
República Tcheca 12,8 16,8 10,7 13,0
Finlândia 12,2 16,3 16,2
França 18,0 18,6 11,5 15,8
Alemanha 14,0 14,2 8,2
Hungria 9,6 9,6 11,0 16,4
Islândia 4,6 10,6 12,4 6,7
Itália 12,1 10,8 10,6 21,9
Nova Zelândia 11,3 17,8 13,9
Noruega 10,3 8,7 11,9
Portugal 17,4 11,1 8,8 11,1
Rússia 7,0 16,7 10,8 13,9
Espanha 14,3 13,9 11,1 13,5
Suécia 9,7 11,2 12,7 11,4
Reino Unido 24,5 17,1 19,1 22,6
Estados Unidos 18,7 14,8 14,9 14,2

Fonte: Instituto de Estatística da Unesco.

 

Anos médios de escolaridade da população até 25 anos (por decil de renda*)

Países Total 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Argentina 9,44 7,04 7,48 7,74 7,71 8,52 8,82 8,99 9,91 11,13 13,57
Bolívia 8,80 5,96 6,45 7,23 7,67 7,58 8,32 9,15 9,29 10,38 13,12
Chile 8,79 6,24 6,88 7,09 7,40 7,69 8,16 8,47 9,80 10,88 12,83
Panamá 8,68 4,31 5,36 6,30 7,07 7,53 8,16 8,78 9,90 10,88 13,57
Uruguai 8,02 6,03 6,31 6,54 6,49 6,79 7,34 8,00 8,68 9,74 11,87
Peru 7,20 3,87 4,17 4,95 5,69 6,60 7,05 7,66 8,28 9,04 10,80
Venezuela 7,15 4,66 4,94 5,27 5,72 6,23 6,68 7,20 7,78 8,58 10,81
Equador 7,12 3,39 4,39 5,07 5,61 5,64 6,95 7,74 8,23 9,19 11,83
Costa Rica 6,94 4,08 4,88 5,39 5,54 5,91 6,31 6,75 7,65 8,62 11,53
México 6,23 2,14 2,95 3,78 4,15 4,78 5,66 6,06 7,24 8,89 12,13
Paraguai 6,06 3,37 3,67 3,88 4,59 4,81 5,46 5,96 6,62 7,88 10,72
Brasil 5,22 1,98 2,49 2,97 3,41 3,66 4,40 4,99 5,98 7,43 10,53
El Salvador 4,88 1,63 2,14 2,40 2,75 3,27 3,99 4,73 5,90 7,11 10,27
Honduras 4,74 2,07 2,33 2,47 3,06 3,59 3,90 4,70 5,76 6,86 9,58
Nicarágua 4,74 2,17 2,05 2,65 3,33 4,11 4,55 4,94 5,46 6,46 8,49

Fonte: Quedándonos atrás. Un informe sobre el progreso educativo en América Latina. Informe de la Comisión Internacional sobre Educación, Equidad y Competitividad Económica en América Latina y el Caribe. Santiago de Chile: Preal, 2001.

* Sendo 1o o menor nível de renda e 10o o maior.