PODCAST 5: O ENGANO

Nesse episódio do podcast Fabulações da Família Brasileira conheceremos a história do velório de Margarida, que apresenta os ritos fúnebres praticados por grande parte da população brasileira, com seus vínculos a tradições populares e religiosas, e juntamente com outros ritos compartilha do espaço sacro das igrejas.

Também conversamos com a pesquisadora Maria Júlia Kovacs sobre os processos funerários, suas implicações psíquicas e sociais e seu poder de agregação social.
Boa escuta!!!

 O ENGANO

                                                                                       Lucas Neiva da Silva

Papai conta que aconteceu o seguinte:

Num dia do verão de 1970, a chuva caía ininterrupta. Chuva do plantio de milho, de feijão, de abóbora. Chuva forte de fazer os caçadores mais impetuosos ficarem reclusos em casa e os homens da lida do campo também. E toda essa chuvarada levou a alma de Dona Margarida. Desligou-se desse mundo repentinamente. Logo, a má notícia se espalhou pela redondeza. Com isso, o povo foi chegando ao casebre onde se concentrava o singelo ato fúnebre. Gente chorando pelos cantos e Margarida indolente estirada no banco da sala. As mulheres, que aglomeravam na cozinha, sussurravam e diziam palavras de consolo e tentavam dizer muito mais coisas, mas as palavras lhes fugiam ligeiramente. Então, apenas choravam baixinho. Seus murmúrios somavam-se aos gemidos da lenha, que crepitava em contato com o fogo bravo por causa da umidade de muitos dias. Na varanda ao lado, ouvia-se o barulho dos martelos, dos pregos, das tábuas e dos serrotes. Os homens não falavam da finada. Estavam apressados para terminar o caixão e dar um novo lar à Margarida. E também a chuva dava mais assuntos. As cheias das várzeas, o feijão viçoso, flor do capim de maio; enfim, faziam maquinalmente o trabalho.

Feito esse trabalho e tendo cumprido todo o ritual, já no período da tarde, numa guinada ligeira e acostumada, ombros calejados de outros esquifes suspenderam o caixão improvisadamente artesanal e partiram em linha de frente na última peregrinação de Margarida, da forma mais confortável possível, rumo ao Cemitério, na cidadezinha mais próxima. Margarida descansa e confia totalmente nos amigos. Margaridas sacudiam-se num gesto desesperado e triste nos “canteiros sem fim” do jardim, num ato de devoção e gratidão pelas mãos caridosas que de quando em vez retirava as ervas daninhas e muito mais fazia. Órfãs estavam agora. A descida era íngreme, as pedras soltas e muito barro. Mas os pés calejados e firmes dão segurança à Margarida até o ponto do em que o caminhão esperava por eles. Ao chegarem nesse local, o caixão foi cuidadosamente ajeitado no centro da carroceria do automóvel, em volta a família e os amigos. Nem parecia uma viagem fúnebre. As lágrimas ficaram lá nas bordas do fogão. As mais resistentes até ao portãozinho do alpendre, somente. Agora, tratavam-se de agarrar as mãos onde se podia segurar. Barro, buracos, ziguezaguear frenético do caminhão, e Margarida calmamente apoiava as mãos amarelas de fumo de rolo no peito.

Porém, Margarida não ficaria isenta da última peça do destino. Este sempre aprontava com ela. Até já desconfiava daquela tranquilidade toda.

Chegam ao arraial no final da tarde, neste momento, já se ouvia o tilintar das poucas lojas fechando as suas portas em reverência ao cortejo fúnebre.  Povo determinado que cuida dos seus até o fim, no mais o Deus e os santos ajeitam.  “Não passem na igreja católica”  foi a recomendação do viúvo que não descera a serra para o enterro sabe-se lá por quê. Mas o povo não cede a honraria. “Todo morto há de ser benzido!  e padre não nega a bênção, não, gente”, disse o líder do cortejo. Em seguida, o sino da matriz badalou. “Escutem, o vigário já tá em prontidão, podemos ir lá”. E entre sinais da cruz e um abaixar tímido de chapéus entram pela igreja rapidamente rompendo o silêncio que antecede a um matrimônio. Olhos ansiosos para ver a noiva, mas deparam com um esquife.  Chegam ao altar. O noivo, certamente, foi o que mais se desesperou. Saiu correndo porta a fora, maldizendo-se: “Oh! Indivíduo atingido por excremento fecal de abutre”. Se bem que não falou assim. Disse mesmo “sou cagado de urubu! Esperando minha noiva e chega um defunto”. Os olhos lutuosos ficam fixos no caixão, não interpretam a situação. Miúdas lágrimas começam a brotar novamente. “Melhor benzer esta filha de meu Deus, senão esta gente não sai daqui não” (assim entendeu o vigário).  Três gotas mal jogadas de água benta. Margarida nem as sente. Mas, satisfeitos, pegam o caixão e partem para o cemitério. Agora sim. Almas leves e corações certos de serviço feito completo. É nossa gente!

(Não se sabe o que aconteceu com a cerimônia de casamento depois do ocorrido, pois meu pai já não estava lá mais. Penso que, certamente, foi o casamento mais comentado e divertido daquela vilazinha por muito tempo).

 

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A artista autodidata mineira Maria Auxiliadora (1935-1979) retratou em suas obras festas, danças, ritos e danças afro-brasileiras e a morte. Depois de receber um diagnóstico de câncer, doença que eventualmente tirou sua vida, ela passou a fazer autorretratos em circunstâncias fúnebres e celestiais. Em “Velório da noiva” vemos uma cena que lembra “O engano”: trata-se de um velório aparentemente no interior do país, envolvendo toda uma comunidade, além de uma referência ao casamento. Chama a atenção seus traços que desconsideram as convenções de perspectiva, além das cores chamativas e os detalhes em alto-relevo. 


No cinema, o tema da morte, em diferentes facetas, aparece em clássicos como “O sétimo selo”, “A falecida” e “Ensina-me a viver”. No japonês “A partida” (de Yōjirō Takita, 2008), a morte é retratada em seus rituais funerários a partir da figura do nōkanshi, pessoa responsável por limpar e acondicionar os corpos no caixão diante da família enlutada. Embora seja um rito importante para os vivos que sofrem a perda, paradoxalmente a profissão – e a morte, de modo geral – é estigmatizada no Japão por estar relacionada a uma ideia de impureza. Já no documentário brasileiro “Terra deu, terra come” (de Rodrigo Siqueira, 2010), acompanhamos um funeral no quilombo Quartel do Indaiá, em Diamantina, Minas Gerais. Ali, Pedro de Alexina tenta manter viva a tradição dos vissungos, cantos africanos usados no garimpo, em funerais e em outras atividades cotidianas. Os cantos funerários também se fazem presente na cena a seguir de “Bacurau” (de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019), em que, assim como no conto “O engano”, a comunidade se reúne para se despedir de uma importante figura.

Okurubito – A Partida

Terra Deu, Terra Come

Bacurau

 

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Essa é uma obra do Walter Hugo Mãe, na qual ele lida com a relação entre a vida e a morte de forma especialmente poética. O link leva a um trecho do livro, já diretamente em relação com nosso tema:

Homens Imprudentementes Poéticos


Neste ótimo artigo do graduando em ciências sociais Thiago Tavares, é-nos apresentado como o “bem morrer” se modificou desde a Idade Média até os dias atuais, mostrando como a morte foi progressivamente “desritualizada” pela ciência e pela ética burguesa.

Um Ritual de Passagem -Thiago Tavares


Em  A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, a referida ética burguesa em relação a morte é abordada através de um enredo inteligente, direto e ácido. Isso se nota logo na primeira cena, quando, ao receber a notícia da morte de Ivan Ilitch, seus colegas de trabalho se põem a pensar em qual deles substituirá sua posição e quanto ganhará com isso; além de ficarem felizes com o pensamento de que “antes ele do que eu”. Além de conciso, é um livro gostoso de ler por conta das reflexões que causa.

A Morte de Ivan Ilitch – Liev Tolstoi


 

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PODCAST 4: PAI DE FAMÍLIA(S)

No quarto episódio do Fabulações da Família Brasileira trazemos um conto que convoca o arquétipo patriarcal do pai – que constrói várias relações amorosas e enlaça o destino de duas famílias – história que guarda nos seus detalhes inúmeras outras que acontecem nos territórios geográficos e imaginários do Brasil. O autor, Luíz Henrique Gurgel, narra a história que ouviu de uma amiga sobre as peripécias amorosas do pai e plasma um retrato que poderia figurar em muitas paredes das casas brasileiras, retrato que confunde histórias privadas com a própria construção social do País.
Boa escuta.

 

PAI DE FAMÍLIA(S) OU UMA PEQUENA HISTÓRIA PATRIACAL

Luiz Henrique Gurgel

Só uma noite o pai dormiu sozinho no hospital. No dia seguinte, mal a filha saiu do elevador e a enfermeira chefe lhe fez sinal para falar, algo desagradável, o seu Elias tinha sumido na noite anterior. A filha arregalou os olhos e antes de dizer qualquer coisa a enfermeira a tranquilizou, estava tudo bem, ele tinha voltado. Havia só um detalhe, naquela noite uma enfermeira do plantão também sumira. A enfermeira chefe fez cara de reticência e Laila, a filha constrangida, saiu disposta a esganar o pai, apesar dos seus 85 anos. Entrou no quarto e ele foi logo falando, entusiasmado, filha, tem aqui uma enfermeira muito bondosa e cuidadosa comigo, muito carinhosa e atenciosa. Você precisa me fazer um favor, vá comprar uma caixa de bombons finos, chocolate belga, importados, para eu dar a ela.

Vinte anos antes, no mesmo hospital, Elias se internara por causa de um câncer. Não dura dois meses, disse o médico. Às vésperas da cirurgia, Laila e o irmão, Khalil, aguardavam no corredor do hospital quando viram passar uma  moça pouco mais velha que eles, 35 anos, talvez, elegantemente vestida e perfumada. Passou e entrou no quarto do pai. A filha levantou-se, ela deve ter se enganado, vou avisá-la. Abre a porta e a moça enlaçava e beijava o convalescente na boca. A filha gritou, o pai pediu calma, ela é minha noiva. Elias só esquecera de dizer à moça que tinha esposa. Por um bom tempo a noiva ainda ligou para casa da família e Laila explicava com doce paciência, olha, meu pai ainda é casado…

Mas foi no metrô que a filha, aos 19 anos, levou o primeiro grande susto. Na escada rolante, degraus acima, viu o pai abraçado a uma mulher grávida. Ela começou a tremer e decidiu seguir o casal. Desistiu no meio do caminho, sem coragem. No velório do pai, anos depois, achou estranha a despedida emocionada de um rapaz desconhecido, vinte e tantos anos. Ninguém foi abordá-lo e ele saiu antes do enterro. Jamais soube se era o menino da barriga da mulher do metrô.

Jorge Elias tinha um visível amor à vida, às paixões, ao existir, às mulheres. Nascera no Estado do Rio em 1924, filho de um libanês e de uma mineira. Seguiu o caminho do pai, caixeiro viajante mascateando do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul.

Elegante, charmoso, fama de sedutor e carismático, contador de causos, viajava nas próprias histórias, em grandes e fantasiosos projetos, um sonhador.

Contou à filha que seu primeiro casamento tinha acontecido num acampamento cigano. Chegou ao lugar para vender seus tecidos, tesouras, linhas, colares e anéis. O líder do grupo – presenteado com um potente canivete suíço – autorizou que abrisse suas malas, as mulheres correram até ele. Homens também. Acabou convidado para jantar e pernoitar. Aceitou de bom grado depois de ver a moça morena e tímida que manuseava faixas de renda e seda. O pernoite virou uma semana de estadia e ele já bebia com o pai e os irmãos da moça na barraca da família. Não demorou para se falar em dote e na semana seguinte casamento. Dois dias depois de consumado, fugiu de madrugada. Os ciganos ficaram no seu encalço por mais de um mês rodando o Espírito Santo e Minas.

Também confidenciou à filha a história de um trauma que fez com que nunca mais dançasse, justo ele, exímio pé de valsa. Tudo por ter se envolvido numa tragédia, provocada por seu irresistível apego a rabos-de-saia. No interior de Minas foi a um baile onde conheceu outra linda mulher. Só havia um porém, era casada. Dançaram bastante e dançariam mais, não fosse o marido ciumento interromper tudo: no balanço dos corpos, mirou errado e num volteio do casal, ao invés de acertar o cavalheiro, acertou em cheio a dama, matando a própria esposa.

No norte paulista, em Bebedouro, é que começou a formar – sem querer – a família. A primeira. Lá conheceu Zulmira, filha de tradicionais fazendeiros, decaídos. Não se passaram cinco dias e já namoravam às escondidas. Mas tinha que partir para outras paragens e sequer avisou a moça que estaria longe na manhã seguinte.

Dois meses mais tarde, na Serra Gaúcha, batem na porta do quarto de pensão onde se hospedara e dá de cara com o próprio pai. Mais que inesperada visita, achou ainda mais estranha a forma gentil e carinhosa com que falava, convidando-o para jantar, vinho, conselhos, lembrou ao filho que ele já era mais que um homem feito e que a vida já tinha lhe proporcionado muitos prazeres. Saíram pela rua sem rumo até pararem em frente à zona da cidade e o velho Abraão disse que já estava tudo pago, ele podia se divertir, seria sua despedida de solteiro, pois no dia seguinte seguiria com ele para São Paulo casar com Zulmira.

Laila tinha 4 anos quando uma mulher bonita, gentil e educada, bateu em casa procurando seu pai. Carla, a mãe de Laila, a recebeu. Não lembra da conversa, mas recorda que era permeada de silêncios, de palavras sussurradas. Quando o pai chegou do trabalho, entrou na sala e viu as duas mulheres tomando chá. Ficou paralisado e lívido. A visita o olhava fixamente, em silêncio, até explodir. Ele ainda tentou explicar o inexplicável.

Os cinco anos de vida dupla terminavam ali, ruidosamente, em 1967, quando saiu definitivamente do primeiro para se instalar exclusivamente no segundo lar. Tinha quatro filhos com Zulmira e agora mais dois com Carla. A diferença de idade de Omar, o caçula do primeiro casamento, e Laila, a primeira do segundo, era de 6 anos.

A mãe de Laila se justificou a ela anos depois, disse que nunca soube que ele continuava casado até a visita de Zulmira. Elias contou que começou o relacionamento paralelo num momento muito ruim de sua vida, sem trabalho, sem perspectiva, angustiado. Certo dia, zanzando pela Estação da Luz, sentou-se num banco para ver os trens. Achou num jornal o anúncio de vagas para corretor de imóveis, vender era algo que sabia fazer. A secretária que o atendeu encheu seus olhos, acendeu desejos. Foi uma obra da vida conhecê-la, justificava. Não demorou e a bela secretária rompeu o noivado com um jovem empresário para morar com o galante e envolvente Jorge Elias. Desgosto supremo da família da moça, por anos rejeitada, a prostituta, a que não se casou.

Laila, aos quatro anos, ouvia cada vez mais algo sobre “filhos do Elias”. Também ouvia vagas referências, da boca das tias – como se falassem dela e do irmão – usando uma palavra esquisita, bastardos. Anos depois, estranhou que a mãe preparava um almoço especial e o pai parecia eufórico em ajudar na arrumação da casa. Carla chamou os dois filhos, Laila e Khalil, falou que umas pessoas viriam almoçar em casa, os filhos do seu pai. Foi um choque ver aquela gente chamando o pai dela de pai.

Omar, filho de Zulmira, conta o outro lado. A mãe nunca fora amarga por causa do imbróglio. Pouco depois de o pai ir embora de casa, ela contou aos quatro – Jaber, Cassim, Julia e o próprio Omar – que eles tinham mais dois irmãos. Um tanto diferente de Carla que se referia aos outros filhos do marido como “eles”, “os filhos do seu pai”, ainda que depois passasse a se dar bem com todos.

Esse primeiro encontro entre os irmãos ficou marcado para sempre nas retinas de Omar e Laila, uma grande surpresa, encontro feliz. O patriarca se sentia orgulhoso em ver a prole reunida. Beberam, comeram, cantaram. A menina Laila, assustada no começo, depois contente em descobrir uma família maior. A partir desse encontro passou a corrigir a mãe: filhos do pai, não! Meus irmãos!

No fim da vida, Zulmira fez contato, queria falar com Elias antes de morrer. Foi Laila quem o convenceu a ir, o intimou, era dever dele. Eles nunca tinham conversado sobre tudo o que acontecera. Foi pouco antes da morte dos dois, Zulmira se foi em 2007, Elias em 2009. Eles se desculparam, ou Zulmira o perdoou. Falaram do antigo amor, aquilo que os uniu tinha sido belo e profundo.

Fã de um bom samba-canção, de Nelson Gonçalves e, claro, de Lupicínio Rodrigues, o otimista inveterado e absurdamente conservador, defensor da ditadura militar, da pena de morte e de frases como “mulher não pode ser inteligente e nem trabalhar fora”, passou a vida confrontado – com gosto – pela filha feminista, de vários casamentos, e que guarda essa história como um pedaço dela.

 


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Arthur Júlio Wischral e João Baptista Groff se tornaram célebres por serem os autores de alguns dos principais registros fotográficos da Curitiba do início do século 20. Wischral era o repórter fotográfico da revista ilustrada, humorística e literária A Bomba (PR), e realizou importantes registros da vida cotidiana paranaense na primeira metade do séc XX. Abaixo, algumas fotos de famílias imigrantes e nativas registradas por ele.

 


Eu, Tu, Eles  (2000, dirigido por Andrucha Waddington)
Inspirado na história de uma família do interior do Ceará, o filme de Andrucha Waddington (menção honrosa no Festival de Cannes de 2000) traz a história de Darlene (Regina Casé), cortadora de cana que é o centro de uma família com três maridos (interpretados por Lima Duarte, Stênio Garcia e Luiz Carlos Vasconcelos), além de filhos, numa construção que subverte e ao mesmo tempo naturaliza padrões – ou justamente demonstra que padrões são construídos – com arranjos implícitos ou não, e onde até os conflitos fazem a família “funcionar”


Samba-Canção
Com o sugestivo título de “Samba-canção” e citando a famosa marchinha “Taí”, gravada por Carmem Miranda, neste poema de Ana Cristina César (do livro A teus pés) a ótica é feminina e sem qualquer romantismo ou pieguice. Não há o estereótipo da mulher sonhadora, passiva ou vingativa. Pelo contrário, é racional e franca em falar do seu desejo e de estratégias para manter o seu amor (“eu fiz tudo pra você gostar/fui mulher vulgar”). Ama sem tirar os pés do chão, é alguém que assume as rédeas de seu sentimento.

Samba-Canção, in A Teus Pés
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…

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Antonio Cândido, nesse texto escrito em 1951, observa e descreve a família brasileira em suas diferentes formações a partir de uma perspectiva evolucionista, ou seja, supondo um processo evolutivo que iria da “promiscuidade” – o termo é retirado dos primeiros antropólogos evolucionistas que estudaram relações de parentesco – das senzalas ao matriarcado e, mais tarde, ao patriarcado, arranjo no qual o homem ocupa o lugar central, como autoridade econômica e moral da família, e o mando da mulher é centrado no espaço doméstico: ele é o pater familiae, ela é a dona de casa.

“É provável que os escritores tenham exagerado sobre a submissão total da mulher, quase eliminando-a como pessoa autônoma em vista da prepotência do marido. Quase universal é o estereótipo do marido autoritário, rodeado de concubinas escravas, à vista da esposa, enquanto ela, seus sentimentos brutalizados, desenvolve-se como uma flor de estufa indolente e enervada, repousando na rede e a abusar dos negros. Diante da formação social no sul do Brasil, pelo menos, a realidade não está de acordo com esta imagem. Embora ela fosse sujeita ao marido e o respeitasse muito, e embora os figurinos a condenassem a um sistema de reclusão, o fato é que na gestão dos assuntos da casa ela sempre desempenhou um papel tão importante, que não podemos pensar nela como carente de capacidades de comando e iniciativa.”

Antonio Candido “The Brazilian Family”, in Brazil: Portrait of Half a Continent. 1951


Lévi-Strauss, nesse livro publicado em 1983, recorre a um conjunto de evidências etnográficas sobre famílias em diferentes sociedades a partir de uma perspectiva estruturalista. Ele nos apresenta a diversidade dos arranjos familiares no mundo, ainda que afirme o predomínio universal da família nuclear, aquela composta por pai, mãe, filhos e, eventualmente, agregados ao núcleo central, vivendo numa unidade doméstica independente. A poligamia, segundo o autor, seria um arranjo mais encontrável em sociedades nas quais há um desequilíbrio entre o número de homens e mulheres. Mas, mesmo nesses casos, seria possível discernir uma hierarquia entre as famílias constituídas pelo mesmo homem ou mulher, sendo uma a principal e, as outras, secundárias ao núcleo familiar central.

O Olhar Distanciado – Claude Lévi-Strauss


Com seu estilo genial e irônico, o mordaz Quino – criador de Mafalda – analisa detalhadamente a vida em casal. Uma coletânea ideal para quem tem companhia, para quem quer ter, e até para quem deseja não ter. No final, em questões de amor, alguém sempre terá a última palavra: Sí… cariño.

Sí, Cariño – Quino

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