PODCAST 1: FOI EM UM POÇO

Neste primeiro episódio do podcast Fabulações da Família Brasileira apresentamos o conto “Foi em um poço” de autoria de Lorraine Carvalho da Silva. Nele, encontramos uma história que nos fala de uma época e de um lugar, de uma condição de vida e de uma subjetividade marcada pela repetição e pelo cansaço. As palavras da autora banham com sutileza e sensibilidade a rotina de Maria Jerônima em uma São Paulo dos anos 50. O palco dessa história é o próprio poço, e o protagonismo é dividido entre uma mulher, sua mania e sua dor. A condição feminina e negra da protagonista atravessa de ponta a ponta a narrativa, amarrando o cotidiano com os afazeres domésticos e a monotonia do lar.

No segundo momento do podcast, escutaremos uma conversa com duas psicanalistas: Maria Lucia da Silva, psicóloga e psicanalista, diretora do Instituto Amma Psique e Negritude; e Mariléia de Almeida, historiadora, escritora e psicanalista – com mediação de Belinda Mandelbaum e Maria Tendlau, respectivamente da psicologia e do teatro USP. Nessa conversa, disparada pela leitura e escuta do conto Foi em um poço, as pensadoras convidadas refletem e constroem sentidos em temas como o racismo, branquitude, literatura e psicanálise.

 

Boa escuta.

FOI EM UM POÇO

Lorraine Carvalho Silva

A data não sei precisar. Não foi possível preservar por completo nossas memórias. Posso dizer que era Brasil, São Paulo especificamente, nos anos de 1950. Exercício de aproximação. Algumas de vocês, talvez, se situem no incômodo da época e pela impossibilidade dos registros.

Mãe em 1915, tornou-se avó em 1939 e isso a distinguia de outras Marias Jeronimas de sua época. Casada, claro. Vida simples de muito trabalho em casa, limpar, cozinhar, lavar e passar, cuidar, arrumar, organizar, educar. Dia sim e o seguinte, por vezes, um pouco diferente, educar, organizar, arrumar, cuidar, lavar e passar, cozinhar, limpar. E seguia assim, em alternância na mesma rotina e com uma obsessão, a limpeza.

Fazendo jus à distinção dessa Maria Jeronima devo registrar sua impetuosidade com limpeza. A força do braço exposta pelas veias onde o sangue passa veloz e fervoroso. O suor. O esfregão. O sabão. E vai ao poço. Joga o balde. Puxa o balde. Enche o balde. Pega água. Equilibra na cabeça. A limpeza. Não está tão limpo. Mais limpeza. Esfrega mais. Mais sabão. Mais força. Mais água. E volta ao poço. Joga o balde. Puxa o balde. Enche o balde. Pega água. Equilibra na cabeça. Esfrega.

A obsessão de Maria Jeronima era comentada entre as vizinhas, entre a família. O marido não se incomodava. Quer fazer mais esforço, faça. É dever da esposa a limpeza. Até que gosto do cheiro do sabão.

Poço. Água. Sabão. Esfrega. Na realidade, a maior das rotinas de Jeronima era essa. Poço. Água. Sabão. Esfrega.

Ninguém sabia dizer quando esse vício se iniciara, nem mesmo Jeronima. Para ela, nascera assim. Esfregando. Uma memória de menina era o cheiro do sabão, o caminhar na rua de terra, o poço. Não lembrava dos pais, não havia convivido com eles, então não tinha como perguntar se sempre foi assim, se algo aconteceu para ser desse jeito, para ter essa mania. Mais nova, lamentava não ter conhecido os pais. Quando para pegar água do poço, já não necessitava de uma pilha de pedras para alcançar a corda, deixou de lamentar.

Cresceu entre a rua de terra, o poço e o cheiro de sabão. A limpeza excessiva a acalmava, ainda que não soubesse explicar o motivo de seu descontrole. Precisava limpar com força. Com raiva.

Refletindo, talvez fosse incontrolável a raiva que se tornava um vício na limpeza. Maria Jeronima pensava sobre isso e logo afastava o pensamento. De que adianta tanto pensar? O pensar não é limpo e não há jeito de organizar a mente não. Então, melhor varrer da cabeça e pronto. Esfrega mais, precisa ficar mais limpo. Ah, esse cheiro de sabão. A água está acabando.

Bota o chinelo. A idade já não permitia tanto agilidade, não por ser tão velha, mas por estar muito cansada. A filha já era mãe e ela viúva. O neto até que trazia alegrias, menino danado. Às vezes, acompanhava a avó ao poço, e mesmo na nova geração a obsessão pela limpeza era comentada. Ih, dizia a filha ao neto, a avó é assim mesmo, não fique importunando menino.

Caminhando na rua, ainda de terra, os olhos já não enxergam bem, mas o caminho é um velho conhecido para sua raiva. A raiva é uma velha conhecida de sua limpeza. Seguiu ao poço. Combustível da raiva. Saudades do cheiro de sabão. Um vício. Uma necessidade.

De uso coletivo, ficava furiosa quando deixavam o balde fora do poço. Passa bicho. Passa tudo. Agarra a corda. Os braços estão cansados desde o despertar às 5 da manhã à hora de dormir. Joga o balde. Sobe o balde. Pesado, se inclina.

Maria Jeronima não voltou para casa. A filha achou estranho. Será que parou na vizinha. Não é de fazer isso quando se prepara para esfregar. Pergunta aqui, pergunta ali. Nada. Vai ao poço. Curiosos seguem. O chinelo largado é familiar. Ilumina aqui. Lá no fundo do poço a filha encontrou uma dor. O enterro foi discreto. Ela iria querer assim.

Esbranquiçada de tão preta, a filha sempre achou que as esfregadas eram um desejo da mãe de sumir.

A pele de Maria Jeronima era uma marca. Cicatriz dolorosa que lhe causava uma raiva profunda. Por que preta? Precisava ser esfregada. Força no braço. Cheiro de sabão.

Limpa a dor. Água. Ela pensava e repetia e esfregava. Esfolava. Sangrava.

Esbranquiçada pela imposição do não ser por ser preta. Viveu com a raiva na força do braço sobre a pele. Dor de não caber no coração. Até que a compulsão do esfregar a tomou por inteira, quando então o fundo do poço magnetizou a gravidade de seu pesar.


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