PODCAST 9: PECADOS REVELADOS

Neste episódio do podcast Fabulações da família Brasileira nos deparamos com uma história tragicômica que revela de forma sutil as desigualdades da mulher no mercado de trabalho que, dividida entre duas situações conflitantes, encontra um caminho – nem sempre fácil – entre elas.

Heloísa Buarque de Almeida é nossa convidada, para aprofundar esse tema e trazer questões sobre as pressões do patriarcado e do sistema trabalhista para as mulheres.

Boa Escuta!

PECADOS REVELADOS (O XIXI DA CIDA)

Jurema Souza Dias

Quando conto essa história, ocorrida há mais de 40 anos, poucos acreditam.

Tinha absoluta certeza de querer aquele bebê. E não era por temor de realizar um aborto. Já tinha enfrentado dois, sem grandes receios ou culpas. Todas as minhas amigas, classe média pobre, sabiam onde e quanto custava um aborto, realizados em clínicas limpíssimas e habilmente disfarçadas de consultórios; ou já tinham estado lá, ou sabiam de alguém que esteve.

O problema maior naquele momento era arrumar um emprego fixo, qualquer que fosse; era imperioso completar a renda do casal para o básico. Minha mãe falecera muitos anos antes e eu cuidava do pai idoso, com esclerose bastante avançada.

Recém-formada em jornalismo, disputei uma vaga de repórter num jornal diário. Conquistada a oportunidade fui encaminhada aos exames obrigatórios pré  admissionais.

Aí sim, tremi: como tirar uma chapa de pulmão sem afetar o bebê? Sabia  que eles também me pediriam para recolher junto ao exame clínico um material especial: minha urina.

Eu já era gata escaldada. Fui contratada para trabalhar numa gráfica, alguns anos antes, e me submeti a essas empresas terceirizadas de exames pré admissionais. Na editora para onde fui depois, com melhor salário, não me exigiram nada. Também não me registraram. E assim fui aprendendo, ouvindo as desculpas e adiamentos, todos mentirosos evidentemente.

Constatei que esses exames e a consulta clínica efetivada  por um médico não visavam  meu bem, e sim descobrir se eu realmente teria uma boa saúde para merecer o trabalho,  entendendo-se em primeiro lugar que “boa saúde” para uma mulher era o diagnóstico negativo de gravidez.

Recorri a duas amigas colegas de ginásio que, rindo, toparam na hora. Uma, mais parecida comigo, com o meu RG, tirou a chapa de pulmão. Outra, logo cedo, e pouco antes do horário agendado da consulta médica — quando eu já estava de posse da foto fake dos pulmões –, fez xixi num vidrinho e me deu.

Eu já sabia que iriam me pedir a coleta de urina na hora da consulta e quando fui ao banheiro, transferi o xixi emprestado para o novo potinho e pronto!

Aprovada nos exames clínicos, fui registrada.  Quase completando o período de experiência no trabalho, que à época era de três meses, não consegui ficar calada e consultei meu editor:

— Você considera que eu fui aprovada para o emprego?

–Sim! Com certeza!

–Então tenho também uma notícia a lhe dar. Estou grávida.

–Não!!!!! Por esse motivo eu nunca contratava mulheres! E agora?

–Agora continuo trabalhando normalmente, se você quiser, pois afinal a licença maternidade é de somente 3 meses e paga pelo INSS.

–Sim, mas eles não colocarão substituto. Toda a equipe vai se sobrecarregar.

Meu editor foi ético. Manteve sua palavra. Não me excluiu da equipe. Os três rapazes  cobriram minha ausência  quando nasceu minha linda filha. Três meses de licença maternidade e um mês de férias. Nunca faltei um dia até entrar de licença para o parto. Nem depois, ao retornar. Trabalhei durante quatro anos naquela empresa até pedir demissão por outra proposta que julguei mais conveniente.

No retorno ao trabalho, após o parto, no início foi difícil administrar o leite que teimava em jorrar a cada quatro horas. Dava muita tristeza não amamentar meu bebê, e como não havia creche conveniada próxima, evidentemente, fui obrigada a abandonar o aleitamento. Por que os  convênios obrigatórios das grandes empresas com  creches para  suas funcionárias-mães  eram tão longe dos seus locais de trabalho? Conclusão bem provável: a grande distância impedia de usufruirmos os direitos que a lei previa. E quando havia alguma creche conveniada próxima geralmente era escura e fria, e as mães iam atrás de apoios alternativos, geralmente outras mulheres empregadas para isso, parentes, avós. Eu tive muita sorte de encontrar babás amorosas para nosso apoio bebê/mãe.

Recentemente fui realizar um exame de rotina num grande laboratório de análises clínicas e indaguei à  enfermeira que me atendia sobre os exames pré admissionais. Ela confirmou que ainda hoje são solicitados os exames de urina. Contei minha história e ela me confessou, bem baixinho, ao pé do ouvido, com grande receio de ser ouvida de fora da saleta.

 — Agora somos orientadas a informar se a urina que foi colhida no banheiro estava quente ou não…

Nunca vou saber se quem pegou meu exame em 1979 foi uma pessoa ingênua ou  solidária. E nunca vou saber desde quando as mulheres, sucessivamente, gatas escaldadas, emprestaram tantos xixis que acabaram alertando as empresas para a sua temperatura. Gravidez não deveria ser motivo de recusa de emprego, quando o trabalho e a licença médica são ainda mais necessários para o apoio econômico à mãe e ao bebê.

As mulheres não querem mais ter que mentir.

 

Esse relato é uma homenagem à Cida, minha amiga que emprestou-me seu xixi, e que faleceu vítima da Covid logo no  início dessa pandemia. Ela trabalhou a vida inteira e nunca quis ter filhos.


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Boccaccio 70

Boccaccio 70 é um filme italiano lançado em 1962 e inspirado na obra de Giovanni Boccaccio, escritor renascentista famoso pelo livro “Decameron”. O filme é divido em quatro curtas metragens  dirigidos por quatro ilustres cineastas: Mario Monicelli, Federico Fellini, Luchino Visconti e Vittorio De Sica. Como o nome sugere, Boccaccio 70 é uma adaptação de alguns textos do escritor florentino para a atmosfera da Itália moderna, recontando os perenes conflitos e ânsias da alma humana agora dentro de um contexto urbano e industrial.

Recomendamos o primeiro curta de Boccaccio 70, intitulado “Renzo e Luciana”, dirigido por Mario Monicelli. Este curta retrata a tumultuada vida de um casal de trabalhadores da Itália fordista dos anos 60. Tentando não apenas sobreviver mas também amar, o casal tem de enfrentar sérios problemas estruturais do mundo do trabalho: se casam escondidos, pois a empresa não permite que seus funcionários se casem ou tenham filhos; Luciana sofre constantes perseguições e assédios de seu chefe; Renzo é inferiorizado por ser um “mero” entregador; ambos ganham pouco e têm de economizar muito para começar a vida juntos. Em resumo, este belo e bem humorado curta faz um retrato detalhado da interferência indevida do trabalho na vida afetiva e familiar.


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Retorno da Mulher ao Mercado de Trabalho: Impacto da Licença-Maternidade Bruna Alves, Elaine Toldo Pazello, Luiz Guilherme Dácar da Silva Scorzafave

Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva – Silvia Federici

Nesta riquíssima obra, a professora, militante e escritora italiana Silvia Federici faz uma extensa e sólida pesquisa histórica para repensar a “transição para o capitalismo” tomando o gênero como uma categoria fundamental de análise. Longe de ser uma “história das mulheres”, o Calibã e a Bruxa retoma o processo de expropriação e de apropriação de mão de obra e de capital conhecido como acumulação primitiva para salientar que, o capitalismo não foi erigido e não se sustenta somente com a construção de diferenças materiais, mas moldou e molda igualmente diferenças de gênero.

Os maiores exemplos históricos dessa acumulação de poder sobre corpos a serem controlados e explorados na aurora da Modernidade são a caça às bruxas na europa e a escravização negra e indígena nas Américas. A Caça às Bruxas (séc. XV-XVIII) é descrita como um verdadeiro movimento de terrorismo transnacional que visava sobretudo a diminuição do poder das mulheres, o controle sobre a sexualidade feminina e sobre a reprodução, a reconfiguração das relações de gênero e a desvalorização do trabalho feminino. A obra de Federici demonstra que, as formas de domínio que foram forjadas naquele período não só permanecem como paradigma das opressões de gênero até hoje, mas também se intensificam e se “mundializam” em tempos de Neoliberalismo.

A Mulher Negra No Mercado De Trabalho – Beatriz Nascimento

Beatriz Nascimento foi uma historiadora, poeta e professora que dedicou boa parte de sua vida ao movimento negro e aos estudos etnico-raciais. Neste curto porém significativo artigo, Beatriz Nascimento faz algumas reflexões sobre como se dá a relação das mulheres negras com o mercado de trabalho num país estruturado pelas opressões sistemáticas de raça, gênero e classe. Remontando o papel e o trabalho exercido pelas mulheres negras desde o período colonial, Beatriz nos mostra que as mudanças econômicas e sociais dos últimos séculos afetaram diferentemente mulheres negras e mulheres brancas.

Esse saldo histórico desfavorável chega ao presente, onde as mulheres negras ainda são vistas como serviçais domésticas ou como pessoas que não serviriam para ocupar cargos mais altos, enquanto o feminismo branco burguês propagandeia a figura de uma mulher branca executiva, bem sucedida, amada, poderosa e livre. Esse contraste entre as posições que ocupam a mulher negra e a mulher branca demarcam a fronteira, ou melhor, o fosso que distingue a possibilidade de emancipação das mulheres em termos de raça. Isto nos diz que, para a mulher negra, a luta de libertação do povo preto é tão importante e essencial para ela quanto a luta de gênero, que sua liberdade enquanto mulher não pode avançar sem que sua liberdade enquanto pessoa preta avance proporcionalmente.

Portal Fiocruz – Mulheres no mercado de trabalho :avanços e desafios


Giovana Madalosso – A Teta Racional, Grua Livros; 2016

Livro de contos de uma autora de uma prosa esperta e ágil, muito voltado para questões da maternidade e do corpo da mulher, a léguas de qualquer lugar-comum e um modo muito importante de impor as questões femininas na literatura. Diverte e faz pensar.

Germina Revista de Literatura – Giovana Madalosso

(reproduzido com permissão da autora, agradecimentos a https://radiocaos.com.br/)


O Cortiço – Aluísio Azevedo

O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, é um clássico da literatura brasileira que difunde as teses naturalistas, que explicam o comportamento dos personagens com base na influência do meio, da raça e do momento histórico em que foi escrito. Permeiam aqui temas como a misoginia, o racismo e o estrangeirismo. Mas nosso foco nesse post está nas mãos de Bertoleza, amante de João Romão, que durante todo o romance está sempre trabalhando, seja como peixeira, seja como faxineira e como esposa do lar, para ter um final trágico. Um retrato cruel da exploração da força de trabalho feminina para o enriquecimento do personagem principal.


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