PODCAST 3: GUARDA

Nesse capítulo do podcast Fabulações da Família Brasileira trazemos a questão dos objetos guardados como tentativas de manter o tempo congelado na passagem da vida, nas relações que criamos com essas posses e o domínio delas no cotidiano. O entrevistado deste episódio é Enrique Mandelbaum, psicanalista e doutor em Literatura pela USP com a obra “Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível”, de 2003. Fez o pós doutorado em Literatura Comparada estudando Borges. Seus escritos versam sobre Psicanálise, Crítica Literária e Judaísmo.
Boa escuta.

 Guarda

Gabriela Conserva

Minha avó conserva variados costumes: toma banho com aquele sabonete, da caixa verde, desenhada com flores, que mulheres de alma antiga apreciam; passa talco; usa anágua, porque mulher de vergonha não mostra os fundos; empresta alho, cebola, sal, xícara de açúcar, cominho, colorau, mas não pede emprestado, porque tomar empréstimo é feio; paga em dia aos vendedores prestamistas que passam vendendo na porta; compartilha pratos de comida com as vizinhas, sobretudo, quando faz algo diferente e jamais devolve o prato ou o pote de plástico que veio cheio vazio. Minha avó também conserva inúmeras coisas: trajes do meu avô, porque – isso de cada cônjuge ter seu closet é coisa moderna –  no tempo dela, quem se casa o faz para dividir tudo, logo, o guarda-roupa é tão importante quanto o sobrenome, tratando-se de um bem; roupas que ela usa e roupas do tempo do ronca que não mais lhe servem também são preservadas e mesmo que a moda retorne ela jamais usa as peças adormecidas; potes de botões e agulhas; álbuns, com fotos de gente viva e morta, sim minha avó tem retrato de defuntos, no plural mesmo, e não é de gente que já bateu as botas viva, mas enquanto era velada, sobre isso não sei se é mais estranha a antiga prática de tirar foto de cadáver ou a minha avó preservar essas memórias dos mortos, mortos dentro do caixão, imagens nada atrativas que certamente não são a melhor coisa para mostrar às visitas, tampouco são mostradas porque o tempo de achar tais fotos faria com que a visita se tornasse hóspede. Contas de luz, água, telefone, sim ela tem telefone, sendo até redundante chamar de fixo, porque se assim não fosse, seria celular; carnês de plano funerário, ninguém próximo a ela morreu, mas, precavida, já está pagando o caixão de algumas pessoas que entraram como dependentes dela – preciso confessar que tenho medo de ser a primeira a estrear esse serviço, porque usar sei que irei. Extratos bancários da aposentadoria; documentos dela e do filho homem, o preferido dela; cartões; escritura da casa na cidade, comprada com a venda do terreno lá no Angico Torto; cremes; perfumes; óleos; pentes; frisos; laços com redinhas para cabelo e inúmeras bolsas que ela jamais usará, porque não passeia, tudo isso dentro do guarda-roupa que obviamente está no quarto dela. Você pode achar pouco, mas a cama também não escapa, debaixo dela: sacolas de lojas, embrulhos e papeis de presentes, exames. Por que tudo isso, sobretudo, dentro do quarto? Porque vovó gosta de guardar e o quarto é o seu autorretrato.

O guarda-roupa de vovó não pode ser movido, em virtude do peso, assim como o coração e a opinião que ela detém. Vovó guarda e se mantém em guarda, é atenta e astuta, nada acontece sem que ela não “pegue no ar” e se posicione. Embora não possa mais cuidar da casa, o lugar onde moro é dela e mesmo o que está dentro não tenha sido comprado por ela, ainda assim ela acha que lhe pertence.

A última briga que tive com vovó teve como motivo um guarda-roupa. Esse objeto doméstico foi motivo de conflito, razão para eu ser novamente ameaçada a ser expulsa de casa e constrangida durante uma semana com o voto de silêncio dela para comigo. O que fiz com o guarda-roupa dela? Nada! Apenas, decidi jogar fora o guarda-roupa da minha mãe que estava caindo aos pedaços, cheio de poeira, servindo de abrigo para aranhas e cupins. Por tomar tal inciativa, fui chamada de cobra e de ser a ruína da filha dela – acredito que ela também se referia ao fato de a minha mãe ter engravidado e ter me criado sem pai – no fundo ela jogou em mim o que guardava desde 1993, em virtude de ela não ter conseguido guardar a minha mãe, como desejava.

Não faço ideia de onde o guarda-roupa que quebrei à marreta e chutes, e joguei fora está – foi violentamente terapêutico me desapegar –, embora parte dele permaneça aqui, pois vovó resgatou do lixo algumas partes e transformou-as em prateleiras para guardar vasilhas e pote, a fim de me lembrar que a liberdade nunca é completa. Assim como vovó fez com o guarda-roupa, ela faz com os sentimentos, transforma-os, dá à mágoa uma nova roupagem, mas a lembrança continua ali. Talvez, por isso, ela jamais perdoou o meu pai, embora diga que tenha feito.

Mainha, nunca foi a lugar algum, diferente do guarda-roupa dela, comprou um novo, na verdade, mandou fazer, mas esse móvel não é móvel, é de gesso e madeira, é arraigado, inalterável, perdurável, estático não dá para ser mudado. Confesso que esse guarda-roupa me amedronta, não só o dela, o que está no meu quarto também, por ser igual, porque está fixado nas paredes da casa que não é minha. Tenho medo de nunca sair da guarda da minha avó e ficar para sempre aqui, como a minha mãe. Mas, por outro lado, tenho esperança: a vida cheia de gavetas e portas. Não seria bom, mobiliar a minha casa somente com o que é meu? Usar roupas que me cabem? Será que o futuro me guarda isso?

VEJA MAIS:

Objetos dos depoimentos

 

livro A Evolução das coisas úteis, de Henry Petroski, Ed. Zahar, 2007

 

LEIA MAIS:

Trecho do conto A Estória de Amor, de João Guimarães Rosa, de Manuelzão e Miguilim (Corpo de Baile). No conto, a população de um lugarejo traz objetos para uma festa, tudo que lhes lembre algum requinte, alguma pompa: são suas “esturdias alfaias”.

Como informa o professor Wellington Andrade (Cásper Líbero), Alfaia é uma palavra antiga do Português, originária do árabe, que aparece em Gregório de Matos, por exemplo, no poema “Ao casamento de certo advogado com uma moça mal reputada” (“Deram-lhe em dote muitos mil cruzados,/ Excelentes alfaias, bons adornos,/ De que estão os seus quartos bem ornados”); na “Helena”, de Machado de Assis (“Cinco ou seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa redonda, uma cômoda e uma marquesa, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de latão, sobre a mesa um vaso de louça com flores, e na parede dois pequenos quadros cobertos de escumilha [gaze] encardida, tais eram as alfaias da sala”); e na obra do Guimarães. A dissertação de mestrado da Profa. Sandra Vasconcellos (FFLCH-USP) sobre o Guimarães chama-se “Baú de alfaias”.

 


“O romance se passa em um dia de maio de 2000. São 70 episódios, alternando entre diferentes gêneros literários, que formam uma estrutura polifônica. Selecionamos aqui dois desses por dialogarem fortemente com o conto Guarda”

Capitulo 24                        Capitulo 32


Trecos, Troços e Coisas (Daniel Miller)

O Colecionador – Walter Benjamin

 

OUÇA MAIS: