PODCAST 8: Ano Novo

Nesse capítulo do nosso podcast, vamos conhecer as experiências de uma criança com o Ano Novo na virada do século passado: da iminência do fim do mundo às dificuldades e violências vivenciadas no âmbito familiar. Um misto de cronica, denuncia e depoimento nos leva até os últimos momentos de 1999, onde as angustias infantis diante do desconhecido se revelam como um quadro da violência velada nas casas brasileiras. Conversamos também com Lilia Schraiber, médica com especialização em Saúde Pública e em Planejamento em Saúde, livre-docente em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP, instituição em que exerce o cargo de professora associada e membro titular da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, e editora do periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação.

Boa Escuta!!

Ano Novo

Jéssica Barbosa

Os adultos fazem coisas estranhas. Hoje mesmo, vi minha mãe colocando um negócio elástico muito apertado na barriga. Ela disse que era para valorizar a cintura. O negócio era tão apertado que minha mãe parecia respirar com dificuldade. Meu pai também tem dessas coisas malucas. Teve um dia que ele chegou muito tarde em casa e fez xixi na cama. Minha mãe não quis me contar, mas eu vi a poça de xixi amarela no colchão. Depois minha mãe disse que foi por causa da cerveja. Engraçado, achei que essa coisa de xixi na cama era própria das crianças. Eu, por exemplo, desde que completei cinco anos de idade nunca mais mijei na cama. Nunquinha!

Semana passada eu assisti televisão até bem tarde. Achei muito gozado o programa. Dava medo de tudo que o homem falava. A voz dele era assustadora. Ele disse que o mundo ia acabar na virada do ano. Era uma profecia. O mundo não podia durar mais de dois mil anos, pois nasceu com prazo de validade. Minha mãe e meu pai disseram que isso é bobagem e que o mundo só acaba para quem morre. Mesmo assim, eu estou com muito medo que isso aconteça de verdade. Fico imaginando como seria tudo acabar assim de repente. Não consigo dormir, nem deixar de pensar nisso o tempo todo. Às vezes a cena fica passando na minha cabeça: na hora do ano novo, todos brindando, os fogos de artifício no céu, os cachorros latindo de medo e, de repente, “bum” e explode tudo. Morremos todos queimados.

Minha mãe mandou eu parar de pensar nisso e ir brincar. Não consigo brincar, nem comer, nem muito menos parar de pensar. O pior de tudo foi quando encasquetei numa dúvida que ficava martelando na minha cabeça sem parar.  Minha mãe estava na cozinha fazendo algo para a ceia. Ela estava bastante irritada, mas, mesmo assim, eu achei melhor perguntar, porque eu não aguentava mais guardar aquela coisa dentro de mim.

— Mãe, para onde a gente vai quando morrer? Para o céu? O que tem lá? A gente vive para sempre? Como é isso de algo ser para sempre? Não vamos cansar de viver para sempre? O que é para sempre?

— Para sempre é para sempre.

Pelo tom da resposta dela eu já sabia que não estava a fim de conversa. Minha mãe não gosta de conversar com crianças. Só com as adultas, amigas dela. Elas ficam horas falando das roupas que elas compram no crediário, das celulites e, principalmente, dos maridos. O meu pai gosta de conversar comigo, mas não gosta de conversar com a minha mãe. Eles não têm muito assunto um com o outro. Quando meu pai chegou do supermercado, perguntei para ele como era isso de viver para sempre e ele disse que nada era para sempre e que tudo tinha fim. Eu não gostei daquela resposta.

— Pai, por que a gente tem que ter um fim? Por que a gente tem que morrer?

— Ora, se as pessoas não morressem, não teria espaço para as crianças nascerem. — Respondeu desinteressado e se achando engraçado. Depois foi para a churrasqueira para começar a assar a carne.

Fui correndo para o banho e vesti minha roupa branca de lantejoulas que ganhei da minha dinda especialmente para passar a virada do milênio. Tentei me tranquilizar e pensar na festa de ano novo. Nossos convidados foram chegando aos pouquinhos.  Jantamos antes da meia noite, como sempre. Me empanturrei de churrasco e melequei o vestido de gordura. De sobremesa, comi quatro bolas de sorvete de chocolate. Quando terminei de jantar, eu e as minhas primas ficamos brincando de Barbie. Eu até já tinha me esquecido do fim do mundo quando a minha mãe gritou lá do pátio: “Gurias, venham, que já vão começar os fogos”. A cachorrada da rua começou a enlouquecer de vez. Foi aí que me veio o medo muito forte. Estava na hora. Os adultos, que já estavam muito bêbados, começaram a fazer uma contagem regressiva. Três, dois, um… Eu fechei bem os meus olhos e cruzei os dedos já me preparando para o pior e, quando abri, notei que nada havia acontecido. Nenhuma explosão, nenhum ataque de ETs. Nada. Que alívio. Que alegria.

Meu pai e meu tio continuaram bebendo junto à churrasqueira. Minha mãe foi lavar a louça e minha tia foi ajudá-la. Eu e as minhas primas fomos brincar mais. Nem sei o que teve depois, porque peguei no sono. Acordei e olhei no relógio e já eram umas quatro horas da manhã. Senti uma coisa molhada na minha calcinha. Olhei para o lençol e percebi que era xixi. Resolvi limpar tudo aquilo ainda na madrugada para ninguém ficar sabendo. Que vergonha, uma menina de dez anos fazer xixi na cama. Tentei ser discreta e fazer silêncio para não acordar ninguém. Eu só não contava com o fato dos meus pais estarem acordados. Do nada, começou uma gritaria dentro do quarto deles. Não dava para entender o que eles diziam. Fiquei com muito medo que estivessem brigando por  minha culpa. Achei melhor entrar no quarto e tentar apartar a briga. Abri a porta e meu pai estava em cima da minha mãe na cama, com as mãos firmes apertando o pescoço dela. A minha mãe chorava e dessa vez consegui entender o que o pai dizia.

— Vou te matar, Andréia. — Dizia berrando.

Uns cinco segundos depois, eles notaram a minha presença. Meu pai saiu de cima da minha mãe num pulo e começou a chorar que nem bebê. A minha mãe não disse nada. Saiu dali e se trancou no banheiro. Meu pai virou para mim e disse:

— Isso que tu viu agora é uma brincadeira minha e da tua mãe. Estávamos brincando igual tu brinca com as tuas amigas.

— Eu sei, pai. Sei que tu não ia matar a mãe. — Disse aquilo, porque fiquei realmente com pena dele. E com pena da minha mãe também.

Fiquei ali parada. Meu pai caminhou até o meu quarto e se deitou na minha cama cheia de xixi e apagou. Começou a roncar muito alto. Minha mãe saiu do banheiro, me abraçou e me levou para dormir com ela.  Antes de voltar a dormir eu rezei um pai nosso, agradecendo pelo mundo não ter acabado naquele dia.

Observação

O gravação do conto Ano Novo, de Jéssica Barbosa, foi realizada por Maria Tendlau num contexto doméstico, junto à sua sobrinha Consuelo Ceccato de Oliveira e sua filha Tereza Ceccato de Pinho, ambas de 11 anos. Consideramos importante salientar que a opção de realizar a leitura por uma criança surge do próprio olhar narrativo do conto. Ao término da leitura, Maria pergunta para ambas as crianças suas impressões e as deixa relatar livremente o que pensam a respeito do relato. Trata-se de uma opinião rápida, reportada no calor de uma primeira leitura, e Maria optou por não induzir um juízo de valor mais estruturado, priorizando entender como a história impactava as pré-adolescentes. É importante, portanto, indicar que não há neste momento nenhum aprofundamento da questão. Porém apontamos que o assunto, neste contexto familiar, é tratado abertamente, e que o aprofundamento da questão foi conduzido no tempo doméstico e sem alarde. Na percepção das relações desta família específica, um aprofundamento imediato apenas levaria a um bloqueio da questão e uma formulação apressada de repudio e crítica  (possivelmente desconectada das questões emocionais e sociais mais profundas que o assunto suscita) . Nos interessa apontar para a necessidade de diálogo, mas não indicamos, nesta leitura, uma maneira específica de faze-lo.


VEJA MAIS:

Cindy Sherman é uma fotógrafa americana contemporânea que desenvolve auto-retratos conceituais. Seu foco é o lugar da mulher na sociedade, numa abordagem que denuncia todos os aprisionamentos a que ela é submetida. Nessas fotos aqui selecionadas há uma denúncia pungente da violência.

Untitled Film Still #27, 1979

Untitled #153, 1985

Untitled Film Still #30, 1979

Untitled Film Still #27 1979

Untitled #137, 1984


Na Idade da Inocência (L’Argent de Poche),  François Truffaut, 1976.

De certa forma é uma nova visita ao tema de seu antológico Os Incompreendidos, mas que segundo o cineasta, traz uma discurso mais luminoso. Foi filmado com 200 crianças e mostra situações cotidianas da infância e da pré-adolescência de 15 delas. Truffaut diz, sobre uma cena em que um bebê sobrevive a uma grande queda, que gostaria de mostrar a força e a resiliência das crianças, muitas vezes expostas a situações de grande dificuldade emocional, mas que têm a capacidade de reconstruir seu futuro apesar destas dores. O discurso do professor na cena final (Jean-François Stévenin), de que postamos o trecho aqui, fala sobre isso. Não localizamos o filme inteiro mas trazemos um trailer desta obra prima para que em qualquer oportunidade todos possam assistir. (É possível ativar legendas e tradução dos vídeos)

https://www.youtube.com/watch?v=kHEuPqgTohw

https://www.youtube.com/watch?v=fVVCTK4INko


Violento e Profano (Nil by Mouth),  Gary Oldman, 1997.

Escrito e dirigido pelo premiadíssimo ator Gary Oldman, é um filme quase autobiográfico, que retrata situações de violência no contexto de uma família da classe operária londrina. Uma família proletária vive uma rotina de degradação e violência em Londres. Desempregado e instável, Raymond usa a esposa grávida como saco de pancadas, enquanto o seu cunhado Billy, um viciado incorrigível, se afunda em dívidas com traficantes.” diz o release. A atriz Kathy Burke foi melhor atriz em Cannes 1998 por sua atuação e o filme ganhou os premios BAFTA de melhor filme e melhor roteiro no mesmo ano. Vale a assistência pela crueza da filmagem e por tratar alcoolismo e abuso de gênero de uma forma emocionalmente engajada, por um artista que conhece desde criança este contexto. No momento em que o ator lutava contra o próprio alcoolismo, ele conta que parte de sua tarefa de abstinência foi a realização deste filme.

https://www.youtube.com/watch?v=7YaOsPuPyxk

https://www.youtube.com/watch?v=QiA7eRQLohU


Mamãe Faz 100 Anos, Carlos Saura, 1979.

Ganhador do Prêmio Especial no Festival de San Sebastián, do Prêmio da Crítica no Festival de Bruxelas e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Mamãe Faz 100 Anos é uma obra dirigida por um dos mais importantes diretores da Espanha, Carlos Saura.
Nesta obra-prima, Saura analisa a sociedade espanhola durante o regime de Franco, apresentando uma família que aproveita a reunião de aniversário dos 100 anos da matriarca para planejar sua morte e apoderar-se de sua herança. Mas apesar de fraca e doente, a Mamá (Rafaela Aparicio) ainda possui um caráter forte, impondo sua presença e autoridade frente aos seus individualistas e gananciosos filhos.


Te Doy Mis Ojos, Iciar Bollaín, 2003

O filme Te doy mis ojos é uma produção da TV espanhola de 2003, dirigido por Iciar Bollaín. Trata da relação conflituosa de um casal, que envolve intensos ciúmes expressos em violência física e psicológica. O filme aborda o tema sob vários ângulos, que incluem o impacto dessa violência no filho pequeno e na família mais ampla e os modos como o casal tenta dar conta de seu sofrimento, recorrendo à polícia, a tratamento psicoterápico e a amigos.


Maid – Netflix

Depois de sofrer muita violência por parte do pai de sua filha, Alex foge levando a menina e vai em busca de melhores condições de vida. Acaba sendo acolhida num abrigo para jovens vítimas de abuso e trabalha como faxineira para levantar algum dinheiro. A série tem 10 episódios e mostra bem as dificuldades que ela enfrenta nessa longa jornada.


O Quarto de Jack, Lenny Abrahamson, 2015

O Quarto de Jack é um longa-metragem de 2015 dirigido por Lenny Abrahamson. O filme conta a história de uma mulher que é capturada por um desconhecido e mantida em cárcere privado durante vários anos. Porém, o foco do filme está em Jack, a criança que nasce em decorrência dos abusos sofridos pela moça e que durante cinco anos só conhece o ambiente claustrofóbico do quarto onde vive com a mãe. O filme suscita reflexões sobre o impacto da violência no desenvolvimento psicológico das crianças, sobre o esforço das mães em protegerem seus filhos e sobre a dificuldade de readaptação ao mundo após experiências traumáticas.

LEIA MAIS:

Violência e vida familiar: abordagens psicanalíticas e de gênero – Belinda Mandelbaum, Lilia Blima Schraiber e Ana Flávia P. L. d’Oliveira

Exposição à violência : seus efeitos sobre valores e crenças em relação a violência, polícia e direitos humanos – Nancy CARDIA, Lusotopie, 2003

Tetralogia Napolitana, Elena Ferrante

A Tetralogia Napolitana ou Quarteto Napolitano da escritora pseudônima italiana Elena Ferrante é um extenso romance dividido em quatro livros publicados no Brasil pela Editora Globo: A Amiga Genial (2012), História do Novo Sobrenome (2013), História de quem Foge e de quem Fica (2014) e  (2015).

Em 2019, o The Guardian classificou A Amiga genial como o 11º melhor livro desde 2000 e a série geral também foi listada no Vulture como um dos 12 “Novos Clássicos” desde 2000. A obra conta a história da vida de duas amigas, Lina e Lenu, nascidas em um bairro periférico de Nápoles. O romance aborda diversas questões que estão imbricadas no processo de amadurecimento de ambas as personagens, dando relevo à opressão feminina, a violência domestica – desde a infância até os relacionamentos românticos e conjugais-, a luta de classes, a pobreza, a dominação pelo fascismo e a máfia, o elitismo do conhecimento acadêmico e os desafios da maternidade num momento de luta pela liberação feminina. O romance toca de forma sensível, a percepção e o enfrentamento da violência domestica e da opressão de gênero a partir (especialmente no primeiro e segundo livros) do olhar infantil e da puberdade, sendo uma excelente leitura para refletirmos sobre nossas próprias experiências precoces acerca da violência de gênero.

FERRANTE, Elena. A Amiga Genial. Tradução Mauricio Santana Dias. São Paulo, Biblioteca Azul, 2015.

FERRANTE, Elena. História do Novo Sobrenome. Tradução Mauricio Santana Dias. São Paulo, Biblioteca Azul, 2015.

FERRANTE, Elena. História de quem Foge e de quem Fica. Tradução Mauricio Santana Dias. São Paulo, Biblioteca Azul, 2015.

FERRANTE, Elena. História da Menina Perdida. Tradução Mauricio Santana Dias. São Paulo, Biblioteca Azul, 2015.


TUDO É RIO – Carla Madeira

Um episódio de violência doméstica, tragédia impossível de assimilar, marca profundamente a vida dos personagens desse romance. A narrativa não segue uma ordem cronológica e é construída para revelar aos poucos e em todas suas nuances o estrago que a violência produz.


PARA DIVULGAR:

O que é possível fazer? Caso uma mulher seja exposta a violência física ela pode procurar:

1. Delegacias especializadas no atendimento à mulher, onde pode ser registrado o B.O e requerida uma medida protetiva

2. Centro de Defesa da Mulher, onde recebe atenção psicossocial e pode solicitar um abrigamento sigiloso para ela e eventuais filhos

3. CRM – Centro de Referência da Mulher

4. Casa da Mulher Paulistana

Em caso de exposição da criança à violência ou em caso de negligência:

1. Disque denúncia anônima, Disque 100

2. Conselhos Tutelares

3. SPVV- Serviço de Proteção Social à Criança e Adolescente Vítima de Violência.

(Os serviços citados podem ter outras nomenclaturas fora de SP)

Esse Guia da Cidadania, desenvolvido pelo Departamento de Medicina Preventiva da USP, é voltado para mulheres e meninas em situação de violência, e lista os serviços de atendimento localizados na região da Grande São Paulo.

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