PODCAST 10: GEMADA DE QUATRO OVOS

No décimo episódio do Fabulações da Família Brasileira mergulhamos nas memórias gastronômicas de uma família rural, e suas reminiscências sobre um prato que existe praticamente em todo o Brasil: a gemada. Porém, tão diversa como a  população desse imenso país, a gemada muda conforme as regiões onde ela é preparada. A questão levantada e que depois é discutida com a professora Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo, da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará do Campus de Ananindeua, trata justamente da diversidade gastronômica e suas infinitas variedades no país. Acompanhe essa história saborosa, e descubra qual a sua gemada.
Boa escuta.

GEMADA DE QUATRO OVOS

Bianca Giordana Zaniratto

Tudo começou na granja perto de casa. O prédio imponente, com letreiro prateado gigante, comprova que o ovo, alimento versátil e relativamente barato, ainda é unanimidade nos lares brasileiros. Além dos caminhões-baús com caixas até o teto, responsáveis por levar a maravilha para além da região, há uma loja improvisada para atender a demanda do bairro.Pois bem, estou eu a comprar a bandeja semanal de ovo tipo jumbo, jumbo porque, se tiver alguma sorte, um ou dois dos 30 ovos serão contemplados com duas gemas e não há maior júbilo nesta vida do que a felicidade de quebrar a casca e testemunhar as duas gemas estalando na frigideira logo cedo.Enfim, as visitas infalíveis ao estabelecimento renderam certa intimidade coma moça responsável pela venda miúda no centro de distribuição de ovos. Do tipo mignon arretada, há tempos saiu do Sertão dos Inhamuns para tentar a vida em alguma terra que manasse leite e mel.No vai e vem da prosa, ela confidenciou-me que apreciava gemada. Era sagrado fazer para ela e as filhas, toda semana. Eu, na minha mimadice de garota paulistana, já visualizei mamãe batendo com vigor as gemas no fundo do copo, misturadas ao achocolatado. Em casa, a meleca levava leite fervente e era engolida com prazer por mime por meus irmãos menores.“Não”, ela me disse, dissipando meus pensamentos de guria. “Minha gemada é a legítima.” Aquilo mexeu com meus brios e quis mais detalhes. “Eu bato bem as claras. Depois, coloco as gemas e um bocadinho de polvilho doce e açúcar. Lambo os beiços.” Paguei minha bandeja com os trinta ovos jumbo da semana e rapidamente fui bisbilhotar na internet essa tal gemada diferentona. Batata, lá estava: “gemada tradicional”. Na próxima ida à casa de mamãe, antes mesmo dos cumprimentos habituais, já sentenciei: “Mãe, a gemada que você fazia para a gente não é a verdadeira”. Minha avó, sempre atenta às conversas, já emendou: “Gemada tem de ser com polvilho doce. Quando trabalhava na fiação, lá em Alvinópolis, levantava às 4h e fazia uma gemada com quatro ovos. Dava uma pratada. Que absurdo!”, relembrou, às gargalhadas. Pronto, enigma desvendado.
1945. Zona rural de Alvinópolis. 4h. Minha bisavó, que eu conheci no fim da vida, já em São Paulo, despertava minha avó, então com 16 anos. “Pulava da cama, lavava o rosto e ia fazer minha gemada. Fazia com quatro ovos, uma pratada. Pegava meu tamanco, colocava na sacola e ia para o portão esperar a Rita e a Ana, que vinham de longe, do Carimba. Depois, passávamos na casa da Ana Zita, da Conceição, na rua de baixo. Ia juntando o bloquinho. Umas seis, sete moças, além do Vicente. Estava escuro ainda e quando chovia era lama até o joelho.”O turno matinal começava às 5h30, após todas lavarem devidamente os pés na torneira instalada na entrada da fábrica. Até as 9h30, trabalhadoras e trabalhadores dedicavam-se aos pavieiros, espuladeiras e às outras máquinas de fiação. “Voltava para casa, outra boa meia hora de caminhada, já levando o que faltava para mamãe fazer o almoço, um bom pedaço de carne bovina ou uma feta de toucinho.”Assim que chegava, a jovem já se armava com dois latões e descia até a mina d ́água para abastecer o tambor disposto ao lado da porta da cozinha. O líquido era usado nas demandas domésticas até o dia seguinte. Na casa de chão batido com sala-cozinha-dois-quartos moravam mãe e três filhos. Minha avó era a do meio. Antonio, o Gordo, irmão mais velho, lavrava a roça de milho e meneava dúzias de cabeças de gado do tio; e Zito, o caçula, ainda era criança. O pai morrera havia seis anos. A mãe, minha bisa, ganhava trocados fazendo costuras ocasionais na pequena Singer a manivela.Após o almoço, tocava à menina-arrimo pegar novamente a estrada rumo à antiga Fábrica de Tecidos do Rio do Peixe, para o turno vespertino, das 14h às 18h. Mais umas boas horas entre cardas, rolos de fitas de algodão, pavios e filatórios para fechar o expediente. Situada contígua a um resquício de Mata Atlântica, a fábrica, ainda hoje é força motriz da economia do município. O rasgão, como tratavam o curso d ́água, fonte de inspiração nos primórdios para nomear a fábrica, passava abaixo da casa e era onde instalara-se o banheiro da família: um trono vazado de madeira malemá protegido com tábuas para preservar integridade e intimidade do usuário, o qual tinha vista privilegiada dos peixes durante os trabalhos. À noite, as obras e demais sujidades encontravam repouso nos penicos, até serem devidamente devolvidas à cadeia alimentar.

Com a morte precoce do pai, coube a Antonio manobrar os dois irmãos menores. Desde cedo, Zito mal chegava da escola e já corria para candear os bois, em auxílio ao irmão mais velho. O menino ia na frente, para tocar a manada, e se chorasse de dor nas pernas recebia como resposta um cabo de guiada na cabeça.Certa feita, durante umas férias da fábrica, Gordo ordenou que minha avó trabalhasse para ele. A irmã fazia a comida, enchia os tabuleiros, acomodava-os na cabeça e seguia rumo à roça. Findado o período, recebeu um corte de pano que ganharia forma de vestido pelas habilidosas mãos da mãe, na velha máquina de costura. Passado um tempo, o irmão pediu o corte de volta, para presentear a namorada, Geni. A resistência da garota amainou assim que recebeu a ordem da severa mãe para devolver o tecido. Após sete anos na fiação e por volta dos 20 anos de idade, minha avó ouviu da mãe que não carecia de labutar mais com o algodão, pois estava com casamento marcado. A menina-que-ficou-sem-o-vestido, então, sem titubear, nunca mais percorreu a boa meia hora na estrada de terra rumo à fabril e logo seus pés já marcavam o barro da periferia da terra da garoa.As reminiscências dos tempos das Minas Gerais foram celebradas com uma boa pratada de gemada de quatro ovos, espumante, deliciosa, finalizada com um bocadinho de canela em pó. Mamãe não quis partilhar a iguaria.Acho que prefere a gemada fru-fru.

 


VEJA MAIS:

Richard Billingham é um fotógrafo, cineasta e professor de arte inglês. Um de seus principais trabalhos é o fotolivro Ray’s a Laugh (1996) que documenta a vida de seu pai alcoólatra e de sua mãe obesa. Essas fotos são tiradas desse livro e escolhidas em função de sua relação com a comida.

Julie & Julia (2009)

Julie & Julia é um filme norte-americano de 2009. O roteiro e a direção são de Nora Ephron, baseado em duas histórias reais. A de Julia Child (Meryl Streep), chef de cozinha americana, e Julie Powell (Amy Adams), uma escritora mal sucedida até então. A história é contada em dois eixos narrativos: a de Julia Child logo quando chega na França, com seu marido, na década de 40, e a de Julie Powell, moradora nova-iorquina que, décadas depois, cansada de seu trabalho monótono, cria um blog com o nome de Julie/Julia Project.
Julia Child é uma figura histórica de grande importância para o cenário da Gastronomia Mundial. Ela morou em alguns países devido ao trabalho de seu marido Paul. Quando esteve em Paris durante quatro anos, buscando algo para se ocupar, cursou a masculina escola de cozinha Le Cordon Bleu. Foi muito emblemática por popularizar a cozinha francesa nos Estado Unidos, sendo autora de livros sobre o assunto e apresentadora de um programa de TV, muito marcado por seu carisma e sua espontaneidade.

A Fuga Das Galinhas (2000)

A Fuga das Galinhas combina momentos de ação, suspense, comédia e romance. A história se passa numa granja no norte da Inglaterra, em meados dos anos 50, onde Ginger (Julia Sawalla), a líder do bando, tenta mil maneiras de escapar do lugar, com suas colegas. Quando está a ponto de fugir, surge o galo picareta, Rocky (Mel Gibson), que convence as galinhas da área de que ele é capaz de voar e, assim, vai ensiná-las a transpor a cerca da prisão/granja a caminho da liberdade.

Estômago (2007)

O filme Estômago é um suspense com pitadas de humor que conta, paralelamente, a história de dois assassinatos. O narrador é o personagem central, autor dos dois crimes, Raimundo Nonato. O protagonista é interpretado por João Miguel, que fez o marcante O Céu de Suely (Karim Ainouz) e o terno Cinema, Aspirinas e Urubús (Marcelo Gomes). O roteiro foi inspirado no conto Presos pelo Estômago, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, escrito por Lusa Silvestre. Trata-se do primeiro longa metragem do diretor Marcos Jorge, lançado em 2007. O site oficial diz que ”Estômago é a história da ascensão e queda de Raimundo Nonato, um cozinheiro com dotes muito especiais. Trata de dois temas universais: a comida e o poder. Mais especificamente, a comida como meio de adquirir o poder. E pode ser definido como uma fábula nada infantil sobre poder, sexo e culinária”.

A Festa De Babette (1987)

Na Jutlândia, península da Dinamarca, no século XIX, um pastor abnegado cria suas duas lindas filhas dentro de rígidos padrões religiosos e de desapego aos bens materiais. Uma delas atrai um oficial vaidoso e ambicioso, que abre mão dela em busca das glórias materiais. A outra encanta um cantor francês, que quer fazê-la uma grande cantora no circuito lírico; mas ela abre mão disso para se manter no seu vilarejo pobre e perdido naquele fim de mundo.

Ratatouille (2007)

Em Ratatouille, Remy (Patton Oswalt) é apenas um rato de esgoto que sonha em ser mais do que seu pai quer que ele seja. Um dia, inspirado por um programa culinário de um famoso chef francês, Gusteau (Brad Garrett), Remy parte em busco de usar suas novas técnicas culinárias para fazer com que sua família coma comida boa – segundo seu paladar. Porém, em um fatídico dia tentando fazer uma receita mirabolante com seu irmão, ele acaba fazendo com que sua família tenha que se mudar, acabando se separando dela nas redes de esgoto. Por sua sorte, a tubulação o leva a Paris, a cidade da gastronomia – e bem em frente ao restaurante do chef. Entrando no local para realizar um sonho, ele acaba conhecendo Linguine (Lou Romano), filho bastardo do renomado chef que acabou de ser contratado para limpar a cozinha. Em uma ideia mirabolante dos dois, Remy passa a ser o real “cozinheiro” que comanda Linguine embaixo de seu chapéu de chef, usando suas receitas e habilidades culinárias para que o menino reivindique o restaurante como herdeiro.


LEIA MAIS:

AMADO, Paloma Jorge. A comida baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Arcanjo com as merendas de Dona Flor. 1ª edição – São Paulo: Editora Panelinha, 2014.

 

ALENCAR, José de. Senhora. 4a. edição, Editora Melhoramentos.

 

FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. 4ª ed. ver. – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006.

 

AZEVEDO, Aluísio de. O Cortiço.16ª edição. Editora Ática. 1986.

 

______________. Casa de Pensão (1884). São Paulo. Ed. Martins. 1960.

 

CARVALHO, Marques de. Hortência. Ed. especial. Belém: Cejup/ Secult, 1997.

 

ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó, 1904

 

Stoker, Bram. Drácula: vol I Bram Stoker;trad: Adriana Lisboa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018

 

Macêdo, Sidiana da Consolação Ferreira de. A Cozinha Mestiça uma história da alimentação em Belém. (Fins do século XIX e início do século XX). PPGHIST. UFPA,  2016. p, 19.

http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/

SITE: https://www.daquiloquesecomeoficial.com/

 

O REI E A OMELETE
Walter Benjamin
(tradução de Leandro Konder)

Era uma vez um rei que tinha todos os poderes e tesouros da Terra, mas
apesar disso não se sentia feliz e a cada ano ficava mais melancólico. Um dia
ele chamou o seu cozinheiro preferido e disse: Você tem cozinhado muito bem
para mim e tem trazido para a minha mesa as melhores iguarias, de modo que
eu lhe sou agradecido. Agora porém, quero que você me dê uma última prova
de sua arte. Você deve me preparar uma omelete de amoras igual àquela que
comi há cinquenta anos, na infância. Naquele tempo, meu pai tinha perdido a
guerra contra o reino vizinho e nós precisamos fugir; viajamos dia e noite
através da floresta; chegamos a uma cabana, onde morava uma velhinha, que
nos acolheu generosamente. Ela preparou para nós uma omelete de amoras.
Quando a comi fiquei maravilhado: a omelete era deliciosa e me trouxe novas
esperanças ao coração. Na época eu era criança, não dei importância à coisa.
Mais tarde, já no trono, lembrei-me da velhinha, mandei procurá-la, vasculhei
todo o reino, porém não foi possível localizá-la. Agora, quero que você me
atenda a esse desejo: faça uma omelete de amoras igual à dela. Se você
conseguir, eu lhe darei o ouro e o designarei meu herdeiro, meu sucessor no
trono. Se não conseguir, entretanto, mandarei matá-lo.
Então o cozinheiro falou: Senhor, pode chamar imediatamente o carrasco. É
claro que eu conheço todos os segredos da preparação de uma omelete de
amoras, sei empregar todos os temperos. Conheço as palavras mágicas que
devem ser pronunciadas enquanto os ovos são batidos e a melhor técnica para
batê-los. Mas isso não me impedirá de ser executado, porque a minha omelete
jamais será igual à da velhinha. Ela não terá os condimentos que lhe deixaram,
senhor, a impressão inesquecível. Ela não terá o sabor picante do perigo, a
emoção da fuga, não será comida com o sentido alerta do perseguido, não terá
a doçura inesperada da hospitalidade calorosa e do ansiado repouso, enfim
conseguido. Não terá o sabor do futuro estranho e do futuro incerto.
Assim falou o cozinheiro. O rei ficou calado, durante algum tempo.
Não muito mais tarde, consta que lhe deu muitos presentes, tornou-o um
homem rico e despediu-o do serviço real.


OUÇA MAIS:

 

PODCAST 9: PECADOS REVELADOS

Neste episódio do podcast Fabulações da família Brasileira nos deparamos com uma história tragicômica que revela de forma sutil as desigualdades da mulher no mercado de trabalho que, dividida entre duas situações conflitantes, encontra um caminho – nem sempre fácil – entre elas.

Heloísa Buarque de Almeida é nossa convidada, para aprofundar esse tema e trazer questões sobre as pressões do patriarcado e do sistema trabalhista para as mulheres.

Boa Escuta!

PECADOS REVELADOS (O XIXI DA CIDA)

Jurema Souza Dias

Quando conto essa história, ocorrida há mais de 40 anos, poucos acreditam.

Tinha absoluta certeza de querer aquele bebê. E não era por temor de realizar um aborto. Já tinha enfrentado dois, sem grandes receios ou culpas. Todas as minhas amigas, classe média pobre, sabiam onde e quanto custava um aborto, realizados em clínicas limpíssimas e habilmente disfarçadas de consultórios; ou já tinham estado lá, ou sabiam de alguém que esteve.

O problema maior naquele momento era arrumar um emprego fixo, qualquer que fosse; era imperioso completar a renda do casal para o básico. Minha mãe falecera muitos anos antes e eu cuidava do pai idoso, com esclerose bastante avançada.

Recém-formada em jornalismo, disputei uma vaga de repórter num jornal diário. Conquistada a oportunidade fui encaminhada aos exames obrigatórios pré  admissionais.

Aí sim, tremi: como tirar uma chapa de pulmão sem afetar o bebê? Sabia  que eles também me pediriam para recolher junto ao exame clínico um material especial: minha urina.

Eu já era gata escaldada. Fui contratada para trabalhar numa gráfica, alguns anos antes, e me submeti a essas empresas terceirizadas de exames pré admissionais. Na editora para onde fui depois, com melhor salário, não me exigiram nada. Também não me registraram. E assim fui aprendendo, ouvindo as desculpas e adiamentos, todos mentirosos evidentemente.

Constatei que esses exames e a consulta clínica efetivada  por um médico não visavam  meu bem, e sim descobrir se eu realmente teria uma boa saúde para merecer o trabalho,  entendendo-se em primeiro lugar que “boa saúde” para uma mulher era o diagnóstico negativo de gravidez.

Recorri a duas amigas colegas de ginásio que, rindo, toparam na hora. Uma, mais parecida comigo, com o meu RG, tirou a chapa de pulmão. Outra, logo cedo, e pouco antes do horário agendado da consulta médica — quando eu já estava de posse da foto fake dos pulmões –, fez xixi num vidrinho e me deu.

Eu já sabia que iriam me pedir a coleta de urina na hora da consulta e quando fui ao banheiro, transferi o xixi emprestado para o novo potinho e pronto!

Aprovada nos exames clínicos, fui registrada.  Quase completando o período de experiência no trabalho, que à época era de três meses, não consegui ficar calada e consultei meu editor:

— Você considera que eu fui aprovada para o emprego?

–Sim! Com certeza!

–Então tenho também uma notícia a lhe dar. Estou grávida.

–Não!!!!! Por esse motivo eu nunca contratava mulheres! E agora?

–Agora continuo trabalhando normalmente, se você quiser, pois afinal a licença maternidade é de somente 3 meses e paga pelo INSS.

–Sim, mas eles não colocarão substituto. Toda a equipe vai se sobrecarregar.

Meu editor foi ético. Manteve sua palavra. Não me excluiu da equipe. Os três rapazes  cobriram minha ausência  quando nasceu minha linda filha. Três meses de licença maternidade e um mês de férias. Nunca faltei um dia até entrar de licença para o parto. Nem depois, ao retornar. Trabalhei durante quatro anos naquela empresa até pedir demissão por outra proposta que julguei mais conveniente.

No retorno ao trabalho, após o parto, no início foi difícil administrar o leite que teimava em jorrar a cada quatro horas. Dava muita tristeza não amamentar meu bebê, e como não havia creche conveniada próxima, evidentemente, fui obrigada a abandonar o aleitamento. Por que os  convênios obrigatórios das grandes empresas com  creches para  suas funcionárias-mães  eram tão longe dos seus locais de trabalho? Conclusão bem provável: a grande distância impedia de usufruirmos os direitos que a lei previa. E quando havia alguma creche conveniada próxima geralmente era escura e fria, e as mães iam atrás de apoios alternativos, geralmente outras mulheres empregadas para isso, parentes, avós. Eu tive muita sorte de encontrar babás amorosas para nosso apoio bebê/mãe.

Recentemente fui realizar um exame de rotina num grande laboratório de análises clínicas e indaguei à  enfermeira que me atendia sobre os exames pré admissionais. Ela confirmou que ainda hoje são solicitados os exames de urina. Contei minha história e ela me confessou, bem baixinho, ao pé do ouvido, com grande receio de ser ouvida de fora da saleta.

 — Agora somos orientadas a informar se a urina que foi colhida no banheiro estava quente ou não…

Nunca vou saber se quem pegou meu exame em 1979 foi uma pessoa ingênua ou  solidária. E nunca vou saber desde quando as mulheres, sucessivamente, gatas escaldadas, emprestaram tantos xixis que acabaram alertando as empresas para a sua temperatura. Gravidez não deveria ser motivo de recusa de emprego, quando o trabalho e a licença médica são ainda mais necessários para o apoio econômico à mãe e ao bebê.

As mulheres não querem mais ter que mentir.

 

Esse relato é uma homenagem à Cida, minha amiga que emprestou-me seu xixi, e que faleceu vítima da Covid logo no  início dessa pandemia. Ela trabalhou a vida inteira e nunca quis ter filhos.


VEJA MAIS:

Boccaccio 70

Boccaccio 70 é um filme italiano lançado em 1962 e inspirado na obra de Giovanni Boccaccio, escritor renascentista famoso pelo livro “Decameron”. O filme é divido em quatro curtas metragens  dirigidos por quatro ilustres cineastas: Mario Monicelli, Federico Fellini, Luchino Visconti e Vittorio De Sica. Como o nome sugere, Boccaccio 70 é uma adaptação de alguns textos do escritor florentino para a atmosfera da Itália moderna, recontando os perenes conflitos e ânsias da alma humana agora dentro de um contexto urbano e industrial.

Recomendamos o primeiro curta de Boccaccio 70, intitulado “Renzo e Luciana”, dirigido por Mario Monicelli. Este curta retrata a tumultuada vida de um casal de trabalhadores da Itália fordista dos anos 60. Tentando não apenas sobreviver mas também amar, o casal tem de enfrentar sérios problemas estruturais do mundo do trabalho: se casam escondidos, pois a empresa não permite que seus funcionários se casem ou tenham filhos; Luciana sofre constantes perseguições e assédios de seu chefe; Renzo é inferiorizado por ser um “mero” entregador; ambos ganham pouco e têm de economizar muito para começar a vida juntos. Em resumo, este belo e bem humorado curta faz um retrato detalhado da interferência indevida do trabalho na vida afetiva e familiar.


LEIA MAIS:

Retorno da Mulher ao Mercado de Trabalho: Impacto da Licença-Maternidade Bruna Alves, Elaine Toldo Pazello, Luiz Guilherme Dácar da Silva Scorzafave

Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva – Silvia Federici

Nesta riquíssima obra, a professora, militante e escritora italiana Silvia Federici faz uma extensa e sólida pesquisa histórica para repensar a “transição para o capitalismo” tomando o gênero como uma categoria fundamental de análise. Longe de ser uma “história das mulheres”, o Calibã e a Bruxa retoma o processo de expropriação e de apropriação de mão de obra e de capital conhecido como acumulação primitiva para salientar que, o capitalismo não foi erigido e não se sustenta somente com a construção de diferenças materiais, mas moldou e molda igualmente diferenças de gênero.

Os maiores exemplos históricos dessa acumulação de poder sobre corpos a serem controlados e explorados na aurora da Modernidade são a caça às bruxas na europa e a escravização negra e indígena nas Américas. A Caça às Bruxas (séc. XV-XVIII) é descrita como um verdadeiro movimento de terrorismo transnacional que visava sobretudo a diminuição do poder das mulheres, o controle sobre a sexualidade feminina e sobre a reprodução, a reconfiguração das relações de gênero e a desvalorização do trabalho feminino. A obra de Federici demonstra que, as formas de domínio que foram forjadas naquele período não só permanecem como paradigma das opressões de gênero até hoje, mas também se intensificam e se “mundializam” em tempos de Neoliberalismo.

A Mulher Negra No Mercado De Trabalho – Beatriz Nascimento

Beatriz Nascimento foi uma historiadora, poeta e professora que dedicou boa parte de sua vida ao movimento negro e aos estudos etnico-raciais. Neste curto porém significativo artigo, Beatriz Nascimento faz algumas reflexões sobre como se dá a relação das mulheres negras com o mercado de trabalho num país estruturado pelas opressões sistemáticas de raça, gênero e classe. Remontando o papel e o trabalho exercido pelas mulheres negras desde o período colonial, Beatriz nos mostra que as mudanças econômicas e sociais dos últimos séculos afetaram diferentemente mulheres negras e mulheres brancas.

Esse saldo histórico desfavorável chega ao presente, onde as mulheres negras ainda são vistas como serviçais domésticas ou como pessoas que não serviriam para ocupar cargos mais altos, enquanto o feminismo branco burguês propagandeia a figura de uma mulher branca executiva, bem sucedida, amada, poderosa e livre. Esse contraste entre as posições que ocupam a mulher negra e a mulher branca demarcam a fronteira, ou melhor, o fosso que distingue a possibilidade de emancipação das mulheres em termos de raça. Isto nos diz que, para a mulher negra, a luta de libertação do povo preto é tão importante e essencial para ela quanto a luta de gênero, que sua liberdade enquanto mulher não pode avançar sem que sua liberdade enquanto pessoa preta avance proporcionalmente.

Portal Fiocruz – Mulheres no mercado de trabalho :avanços e desafios


Giovana Madalosso – A Teta Racional, Grua Livros; 2016

Livro de contos de uma autora de uma prosa esperta e ágil, muito voltado para questões da maternidade e do corpo da mulher, a léguas de qualquer lugar-comum e um modo muito importante de impor as questões femininas na literatura. Diverte e faz pensar.

Germina Revista de Literatura – Giovana Madalosso

(reproduzido com permissão da autora, agradecimentos a https://radiocaos.com.br/)


O Cortiço – Aluísio Azevedo

O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, é um clássico da literatura brasileira que difunde as teses naturalistas, que explicam o comportamento dos personagens com base na influência do meio, da raça e do momento histórico em que foi escrito. Permeiam aqui temas como a misoginia, o racismo e o estrangeirismo. Mas nosso foco nesse post está nas mãos de Bertoleza, amante de João Romão, que durante todo o romance está sempre trabalhando, seja como peixeira, seja como faxineira e como esposa do lar, para ter um final trágico. Um retrato cruel da exploração da força de trabalho feminina para o enriquecimento do personagem principal.


OUÇA MAIS:

 

PODCAST 8: Ano Novo

Nesse capítulo do nosso podcast, vamos conhecer as experiências de uma criança com o Ano Novo na virada do século passado: da iminência do fim do mundo às dificuldades e violências vivenciadas no âmbito familiar. Um misto de cronica, denuncia e depoimento nos leva até os últimos momentos de 1999, onde as angustias infantis diante do desconhecido se revelam como um quadro da violência velada nas casas brasileiras. Conversamos também com Lilia Schraiber, médica com especialização em Saúde Pública e em Planejamento em Saúde, livre-docente em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP, instituição em que exerce o cargo de professora associada e membro titular da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, e editora do periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação.

Boa Escuta!!

Ano Novo

Jéssica Barbosa

Os adultos fazem coisas estranhas. Hoje mesmo, vi minha mãe colocando um negócio elástico muito apertado na barriga. Ela disse que era para valorizar a cintura. O negócio era tão apertado que minha mãe parecia respirar com dificuldade. Meu pai também tem dessas coisas malucas. Teve um dia que ele chegou muito tarde em casa e fez xixi na cama. Minha mãe não quis me contar, mas eu vi a poça de xixi amarela no colchão. Depois minha mãe disse que foi por causa da cerveja. Engraçado, achei que essa coisa de xixi na cama era própria das crianças. Eu, por exemplo, desde que completei cinco anos de idade nunca mais mijei na cama. Nunquinha!

Semana passada eu assisti televisão até bem tarde. Achei muito gozado o programa. Dava medo de tudo que o homem falava. A voz dele era assustadora. Ele disse que o mundo ia acabar na virada do ano. Era uma profecia. O mundo não podia durar mais de dois mil anos, pois nasceu com prazo de validade. Minha mãe e meu pai disseram que isso é bobagem e que o mundo só acaba para quem morre. Mesmo assim, eu estou com muito medo que isso aconteça de verdade. Fico imaginando como seria tudo acabar assim de repente. Não consigo dormir, nem deixar de pensar nisso o tempo todo. Às vezes a cena fica passando na minha cabeça: na hora do ano novo, todos brindando, os fogos de artifício no céu, os cachorros latindo de medo e, de repente, “bum” e explode tudo. Morremos todos queimados.

Minha mãe mandou eu parar de pensar nisso e ir brincar. Não consigo brincar, nem comer, nem muito menos parar de pensar. O pior de tudo foi quando encasquetei numa dúvida que ficava martelando na minha cabeça sem parar.  Minha mãe estava na cozinha fazendo algo para a ceia. Ela estava bastante irritada, mas, mesmo assim, eu achei melhor perguntar, porque eu não aguentava mais guardar aquela coisa dentro de mim.

— Mãe, para onde a gente vai quando morrer? Para o céu? O que tem lá? A gente vive para sempre? Como é isso de algo ser para sempre? Não vamos cansar de viver para sempre? O que é para sempre?

— Para sempre é para sempre.

Pelo tom da resposta dela eu já sabia que não estava a fim de conversa. Minha mãe não gosta de conversar com crianças. Só com as adultas, amigas dela. Elas ficam horas falando das roupas que elas compram no crediário, das celulites e, principalmente, dos maridos. O meu pai gosta de conversar comigo, mas não gosta de conversar com a minha mãe. Eles não têm muito assunto um com o outro. Quando meu pai chegou do supermercado, perguntei para ele como era isso de viver para sempre e ele disse que nada era para sempre e que tudo tinha fim. Eu não gostei daquela resposta.

— Pai, por que a gente tem que ter um fim? Por que a gente tem que morrer?

— Ora, se as pessoas não morressem, não teria espaço para as crianças nascerem. — Respondeu desinteressado e se achando engraçado. Depois foi para a churrasqueira para começar a assar a carne.

Fui correndo para o banho e vesti minha roupa branca de lantejoulas que ganhei da minha dinda especialmente para passar a virada do milênio. Tentei me tranquilizar e pensar na festa de ano novo. Nossos convidados foram chegando aos pouquinhos.  Jantamos antes da meia noite, como sempre. Me empanturrei de churrasco e melequei o vestido de gordura. De sobremesa, comi quatro bolas de sorvete de chocolate. Quando terminei de jantar, eu e as minhas primas ficamos brincando de Barbie. Eu até já tinha me esquecido do fim do mundo quando a minha mãe gritou lá do pátio: “Gurias, venham, que já vão começar os fogos”. A cachorrada da rua começou a enlouquecer de vez. Foi aí que me veio o medo muito forte. Estava na hora. Os adultos, que já estavam muito bêbados, começaram a fazer uma contagem regressiva. Três, dois, um… Eu fechei bem os meus olhos e cruzei os dedos já me preparando para o pior e, quando abri, notei que nada havia acontecido. Nenhuma explosão, nenhum ataque de ETs. Nada. Que alívio. Que alegria.

Meu pai e meu tio continuaram bebendo junto à churrasqueira. Minha mãe foi lavar a louça e minha tia foi ajudá-la. Eu e as minhas primas fomos brincar mais. Nem sei o que teve depois, porque peguei no sono. Acordei e olhei no relógio e já eram umas quatro horas da manhã. Senti uma coisa molhada na minha calcinha. Olhei para o lençol e percebi que era xixi. Resolvi limpar tudo aquilo ainda na madrugada para ninguém ficar sabendo. Que vergonha, uma menina de dez anos fazer xixi na cama. Tentei ser discreta e fazer silêncio para não acordar ninguém. Eu só não contava com o fato dos meus pais estarem acordados. Do nada, começou uma gritaria dentro do quarto deles. Não dava para entender o que eles diziam. Fiquei com muito medo que estivessem brigando por  minha culpa. Achei melhor entrar no quarto e tentar apartar a briga. Abri a porta e meu pai estava em cima da minha mãe na cama, com as mãos firmes apertando o pescoço dela. A minha mãe chorava e dessa vez consegui entender o que o pai dizia.

— Vou te matar, Andréia. — Dizia berrando.

Uns cinco segundos depois, eles notaram a minha presença. Meu pai saiu de cima da minha mãe num pulo e começou a chorar que nem bebê. A minha mãe não disse nada. Saiu dali e se trancou no banheiro. Meu pai virou para mim e disse:

— Isso que tu viu agora é uma brincadeira minha e da tua mãe. Estávamos brincando igual tu brinca com as tuas amigas.

— Eu sei, pai. Sei que tu não ia matar a mãe. — Disse aquilo, porque fiquei realmente com pena dele. E com pena da minha mãe também.

Fiquei ali parada. Meu pai caminhou até o meu quarto e se deitou na minha cama cheia de xixi e apagou. Começou a roncar muito alto. Minha mãe saiu do banheiro, me abraçou e me levou para dormir com ela.  Antes de voltar a dormir eu rezei um pai nosso, agradecendo pelo mundo não ter acabado naquele dia.

Observação

O gravação do conto Ano Novo, de Jéssica Barbosa, foi realizada por Maria Tendlau num contexto doméstico, junto à sua sobrinha Consuelo Ceccato de Oliveira e sua filha Tereza Ceccato de Pinho, ambas de 11 anos. Consideramos importante salientar que a opção de realizar a leitura por uma criança surge do próprio olhar narrativo do conto. Ao término da leitura, Maria pergunta para ambas as crianças suas impressões e as deixa relatar livremente o que pensam a respeito do relato. Trata-se de uma opinião rápida, reportada no calor de uma primeira leitura, e Maria optou por não induzir um juízo de valor mais estruturado, priorizando entender como a história impactava as pré-adolescentes. É importante, portanto, indicar que não há neste momento nenhum aprofundamento da questão. Porém apontamos que o assunto, neste contexto familiar, é tratado abertamente, e que o aprofundamento da questão foi conduzido no tempo doméstico e sem alarde. Na percepção das relações desta família específica, um aprofundamento imediato apenas levaria a um bloqueio da questão e uma formulação apressada de repudio e crítica  (possivelmente desconectada das questões emocionais e sociais mais profundas que o assunto suscita) . Nos interessa apontar para a necessidade de diálogo, mas não indicamos, nesta leitura, uma maneira específica de faze-lo.


VEJA MAIS:

Cindy Sherman é uma fotógrafa americana contemporânea que desenvolve auto-retratos conceituais. Seu foco é o lugar da mulher na sociedade, numa abordagem que denuncia todos os aprisionamentos a que ela é submetida. Nessas fotos aqui selecionadas há uma denúncia pungente da violência.

Untitled Film Still #27, 1979

Untitled #153, 1985

Untitled Film Still #30, 1979

Untitled Film Still #27 1979

Untitled #137, 1984


Na Idade da Inocência (L’Argent de Poche),  François Truffaut, 1976.

De certa forma é uma nova visita ao tema de seu antológico Os Incompreendidos, mas que segundo o cineasta, traz uma discurso mais luminoso. Foi filmado com 200 crianças e mostra situações cotidianas da infância e da pré-adolescência de 15 delas. Truffaut diz, sobre uma cena em que um bebê sobrevive a uma grande queda, que gostaria de mostrar a força e a resiliência das crianças, muitas vezes expostas a situações de grande dificuldade emocional, mas que têm a capacidade de reconstruir seu futuro apesar destas dores. O discurso do professor na cena final (Jean-François Stévenin), de que postamos o trecho aqui, fala sobre isso. Não localizamos o filme inteiro mas trazemos um trailer desta obra prima para que em qualquer oportunidade todos possam assistir. (É possível ativar legendas e tradução dos vídeos)

https://www.youtube.com/watch?v=kHEuPqgTohw

https://www.youtube.com/watch?v=fVVCTK4INko


Violento e Profano (Nil by Mouth),  Gary Oldman, 1997.

Escrito e dirigido pelo premiadíssimo ator Gary Oldman, é um filme quase autobiográfico, que retrata situações de violência no contexto de uma família da classe operária londrina. Uma família proletária vive uma rotina de degradação e violência em Londres. Desempregado e instável, Raymond usa a esposa grávida como saco de pancadas, enquanto o seu cunhado Billy, um viciado incorrigível, se afunda em dívidas com traficantes.” diz o release. A atriz Kathy Burke foi melhor atriz em Cannes 1998 por sua atuação e o filme ganhou os premios BAFTA de melhor filme e melhor roteiro no mesmo ano. Vale a assistência pela crueza da filmagem e por tratar alcoolismo e abuso de gênero de uma forma emocionalmente engajada, por um artista que conhece desde criança este contexto. No momento em que o ator lutava contra o próprio alcoolismo, ele conta que parte de sua tarefa de abstinência foi a realização deste filme.

https://www.youtube.com/watch?v=7YaOsPuPyxk

https://www.youtube.com/watch?v=QiA7eRQLohU


Mamãe Faz 100 Anos, Carlos Saura, 1979.

Ganhador do Prêmio Especial no Festival de San Sebastián, do Prêmio da Crítica no Festival de Bruxelas e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Mamãe Faz 100 Anos é uma obra dirigida por um dos mais importantes diretores da Espanha, Carlos Saura.
Nesta obra-prima, Saura analisa a sociedade espanhola durante o regime de Franco, apresentando uma família que aproveita a reunião de aniversário dos 100 anos da matriarca para planejar sua morte e apoderar-se de sua herança. Mas apesar de fraca e doente, a Mamá (Rafaela Aparicio) ainda possui um caráter forte, impondo sua presença e autoridade frente aos seus individualistas e gananciosos filhos.


Te Doy Mis Ojos, Iciar Bollaín, 2003

O filme Te doy mis ojos é uma produção da TV espanhola de 2003, dirigido por Iciar Bollaín. Trata da relação conflituosa de um casal, que envolve intensos ciúmes expressos em violência física e psicológica. O filme aborda o tema sob vários ângulos, que incluem o impacto dessa violência no filho pequeno e na família mais ampla e os modos como o casal tenta dar conta de seu sofrimento, recorrendo à polícia, a tratamento psicoterápico e a amigos.


Maid – Netflix

Depois de sofrer muita violência por parte do pai de sua filha, Alex foge levando a menina e vai em busca de melhores condições de vida. Acaba sendo acolhida num abrigo para jovens vítimas de abuso e trabalha como faxineira para levantar algum dinheiro. A série tem 10 episódios e mostra bem as dificuldades que ela enfrenta nessa longa jornada.


O Quarto de Jack, Lenny Abrahamson, 2015

O Quarto de Jack é um longa-metragem de 2015 dirigido por Lenny Abrahamson. O filme conta a história de uma mulher que é capturada por um desconhecido e mantida em cárcere privado durante vários anos. Porém, o foco do filme está em Jack, a criança que nasce em decorrência dos abusos sofridos pela moça e que durante cinco anos só conhece o ambiente claustrofóbico do quarto onde vive com a mãe. O filme suscita reflexões sobre o impacto da violência no desenvolvimento psicológico das crianças, sobre o esforço das mães em protegerem seus filhos e sobre a dificuldade de readaptação ao mundo após experiências traumáticas.

LEIA MAIS:

Violência e vida familiar: abordagens psicanalíticas e de gênero – Belinda Mandelbaum, Lilia Blima Schraiber e Ana Flávia P. L. d’Oliveira

Exposição à violência : seus efeitos sobre valores e crenças em relação a violência, polícia e direitos humanos – Nancy CARDIA, Lusotopie, 2003

Tetralogia Napolitana, Elena Ferrante

A Tetralogia Napolitana ou Quarteto Napolitano da escritora pseudônima italiana Elena Ferrante é um extenso romance dividido em quatro livros publicados no Brasil pela Editora Globo: A Amiga Genial (2012), História do Novo Sobrenome (2013), História de quem Foge e de quem Fica (2014) e  (2015).

Em 2019, o The Guardian classificou A Amiga genial como o 11º melhor livro desde 2000 e a série geral também foi listada no Vulture como um dos 12 “Novos Clássicos” desde 2000. A obra conta a história da vida de duas amigas, Lina e Lenu, nascidas em um bairro periférico de Nápoles. O romance aborda diversas questões que estão imbricadas no processo de amadurecimento de ambas as personagens, dando relevo à opressão feminina, a violência domestica – desde a infância até os relacionamentos românticos e conjugais-, a luta de classes, a pobreza, a dominação pelo fascismo e a máfia, o elitismo do conhecimento acadêmico e os desafios da maternidade num momento de luta pela liberação feminina. O romance toca de forma sensível, a percepção e o enfrentamento da violência domestica e da opressão de gênero a partir (especialmente no primeiro e segundo livros) do olhar infantil e da puberdade, sendo uma excelente leitura para refletirmos sobre nossas próprias experiências precoces acerca da violência de gênero.

FERRANTE, Elena. A Amiga Genial. Tradução Mauricio Santana Dias. São Paulo, Biblioteca Azul, 2015.

FERRANTE, Elena. História do Novo Sobrenome. Tradução Mauricio Santana Dias. São Paulo, Biblioteca Azul, 2015.

FERRANTE, Elena. História de quem Foge e de quem Fica. Tradução Mauricio Santana Dias. São Paulo, Biblioteca Azul, 2015.

FERRANTE, Elena. História da Menina Perdida. Tradução Mauricio Santana Dias. São Paulo, Biblioteca Azul, 2015.


TUDO É RIO – Carla Madeira

Um episódio de violência doméstica, tragédia impossível de assimilar, marca profundamente a vida dos personagens desse romance. A narrativa não segue uma ordem cronológica e é construída para revelar aos poucos e em todas suas nuances o estrago que a violência produz.


PARA DIVULGAR:

O que é possível fazer? Caso uma mulher seja exposta a violência física ela pode procurar:

1. Delegacias especializadas no atendimento à mulher, onde pode ser registrado o B.O e requerida uma medida protetiva

2. Centro de Defesa da Mulher, onde recebe atenção psicossocial e pode solicitar um abrigamento sigiloso para ela e eventuais filhos

3. CRM – Centro de Referência da Mulher

4. Casa da Mulher Paulistana

Em caso de exposição da criança à violência ou em caso de negligência:

1. Disque denúncia anônima, Disque 100

2. Conselhos Tutelares

3. SPVV- Serviço de Proteção Social à Criança e Adolescente Vítima de Violência.

(Os serviços citados podem ter outras nomenclaturas fora de SP)

Esse Guia da Cidadania, desenvolvido pelo Departamento de Medicina Preventiva da USP, é voltado para mulheres e meninas em situação de violência, e lista os serviços de atendimento localizados na região da Grande São Paulo.

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OUÇA MAIS:

PODCAST 7: INFÂNCIAS

Neste podcast voltamos ao passado, para acompanhar a história de um personagem que representa o Brasil: o imigrante. Busca de melhores condições de vida, fuga das guerras e da fome, encanto com a “terra prometida” dentre outras razões fazem com que a trajetória do protagonista cruze com a de tantos outros que vieram para este país no século XX. E a persistência das tradições, somada a uma iminente nostalgia da terra natal prendem esses personagens a dois mundos: ao da memória e ao da vida real. O texto tem a narração artística da atriz convidada Dora Wainer. Em seguida, temos uma conversa acerca dos temas da imigração com a Prof. Dr. Maria Luíza Tucci Carneiro, do Departamento de História da Universidade de São Paulo, que desenvolve pesquisas sobre a questão dos direitos humanos, intolerância, antissemitismo, etnicidade, escravidão, censura , nazismo e imigração judaica para o Brasil.

Boa escuta.

INFÂNCIAS

Alfredo Schechtman

Meu avô paterno imigrou para o Brasil na segunda metade da década de 1910, ainda rapaz bem jovem, fugindo da pobreza e dos sucessivos pogroms, em busca de oportunidades em um contexto menos opressivo do que o da Europa oriental.

Ele veio da Bessarábia (então romena, numa região em que as fronteiras se deslocavam constantemente); mais tarde, já razoavelmente estabelecido em terras tropicais, primogênito de uma prole numerosa, conseguiu trazer a maior parte da sua família, entre seus irmãos e irmãs.

Ainda em meados dos anos 20, percorrendo por uma única vez o caminho inverso, retornou à cidade natal para casar e voltar com minha então muito jovem avó; talvez fosse um casamento arranjado entre as famílias, como era de costume, mas disso não tenho certeza.

Nos anos de 1930, já em plena ascensão do nazismo alemão e seus tentáculos pelo território europeu, ele e os irmãos conseguiram trazer para cá o patriarca da família, em idade avançada, mas essa iniciativa foi malograda pela dificuldade absoluta que o pai encontrou em adaptar-se e experimentar novos ares àquela altura da vida, levando-o a retornar para um previsível desenlace dramático.

Para imigrantes judeus daquela época, egressos de um contexto de permanentes manifestações explícitas de antissemitismo, a chegada em novas terras americanas era percebida como promissora e potencialmente livre da pesada carga europeia.

No começo da jornada de meu avô por estas terras, quando ele aqui chegou, e como era frequente, ele foi recepcionado por um primo que o precedera e o albergou inicialmente, assim como lhe apontou a possibilidade do trabalho como prestamista de porta em porta. Como não falava o idioma local, nos primeiros tempos meu avô ateve-se a circular pela vizinhança imediata de sua moradia para tentar vender seus produtos, chegando a levantar suspeitas na vizinhança de que se tratasse de um olheiro para algum amigo do alheio, segundo conta a lenda familiar.

No seu novo país, como era uma pessoa bastante comunicativa, fazia-se entender por todos, ainda que sem dominar por completo a língua portuguesa nos mais de cinquenta anos em que aqui viveu. Já minha avó era seu oposto, com facilidade e fluência em vários idiomas.

Um fato da biografia de meus avós que sempre me pareceu quase inacreditável foi a ida deles para o interior de Minas Gerais, mal chegados ao Brasil, não sei como conseguiam se comunicar e ganhar a vida. Foi a perspectiva do nascimento do primeiro filho (meu pai) que os trouxe de volta ao Rio, pela necessidade que sentiram de ter um ambiente judaico aonde criar a nova família.

Meu avô não era um homem estritamente religioso, mas muito afeito à cultura judaica em seu sentido mais amplo. Em sua casa, o ídiche era a língua cotidiana predominante. Aquela geração nos transmitia uma vontade de encarar os desafios que se apresentassem, valorizando os laços de amizade e a participação comunitária. Essa herança nos foi legada.

Meus avós frequentavam o círculo local de escritores judeus (mais que escritores, eram leitores vorazes). Lembro-me de ser motivo de humor familiar a presença de uns banquinhos de madeira de três pernas que meu avô havia comprado para receber os amigos desse grupo de escritores, todos já em idade avançada para uso dessa peça de mobiliário de precário equilíbrio e grande desconforto. Sei também que durante um bom período o grande debate do grupo foi sobre qual dos dois irmãos Singer era melhor escritor; sempre saía vencedor Israel, e não Isaac (este ainda não era um Nobel).

Quando criança, meu avô me contava, fora enviado pela família muito pobre para estudar em outro shtetl, na verdade uma aldeia pouco maior que a sua, frequentando o cheder (escola judaica) e, em seguida, o seminário rabínico (yeshivá); comia a cada dia em uma casa diferente da comunidade, recurso comunal que permitia aos jovens sem recursos prosseguir seus estudos. A mim causava forte impressão sua evocação do trajeto percorrido entre estas cidadezinhas, com a presença constante da neve e de lobos das estepes de sua infância.

A casa de meus avós era o ponto de encontro de nossa família nas sextas-feiras à noite, nossos shabats, quando junto com tios e primos nos reuníamos para jantar e passar parte da noite juntos; as crianças, costumávamos encenar alguns pequenos esquetes cômicos de nossa própria lavra.

Como mais velho dos seus sete netos, desfrutei mais tempo da sua convivência; íamos muitas vezes fazer a feira aos domingos, comprar legumes e frutas. Chegando em casa, meu avô comia uma cebola crua inteira, hábito adquirido após sua primeira e inolvidável visita ao novo estado de Israel. Viagem aquela que durou três meses, de navio, com despedida e acolhida por todos da família no cais do porto da praça Mauá.

Ele nunca teve muitas habilidades práticas para ganhar a vida, cheio de planos mirabolantes e pouco retorno prático; iniciou vários negócios que produziram poucos frutos. O mais incrível foi a fabulosa compra de uma fábrica de geladeiras tradicionais (caixas de madeira com serragem onde eram colocadas barras de gelo para o resfriamento), um negócio potencialmente da China, se não coincidisse com o início da produção industrial de geladeiras elétricas. Não que não trabalhasse sempre, mas quem provia o sustento com maior regularidade era minha avó como professora de hebraico em escolas judaicas do Rio de Janeiro.

O que permanece, tantos anos depois, é a forte sensação de que meu avô e eu passeamos juntos nossa infância, seja nas longínquas estepes da Bessarábia, seja nas excursões cariocas aos domingos.


VEJA MAIS:

Navio de emigrantes  – Lasar Segall (1939/41)

Esta obra monumental de Lasar Segall foi concluída em 1941, no contexto do totalitarismo nazifascista e dos milhões de fugitivos do Holocausto.
Segall era ele próprio um judeu lituano, que emigrou para o Brasil em 1923, aonde já se encontravam alguns familiares, após ter participado do movimento expressionista na Alemanha e vivenciado de perto os primórdios do nazismo.
O tema da obra se articula com os processos migratórios em que grandes massas judaicas da Europa Oriental se deslocaram para as Américas.

Filme: KLEZMER (2015) , de Piotr Chrzan

Em 1943, a Polônia já está está sob ocupação alemã. Durante o verão, um grupo de jovens vão à floresta para pegar madeiras para uma fogueira. O momento é tomado por conversas sobre sonhos e planos para o futuro. O que eles não imaginavam era que, de uma hora para outra, o passeio teria uma consequência inesperada que mudaria suas vidas para sempre.

 


LEIA MAIS:

Histórias de avô e de avó. Arthur Nestrovski. Companhia das Letrinhas. 1998. Escrito pelo crítico e professor de música Arthur Nestrovski, Histórias de avô e avó integra a coleção Memória e História, voltada basicamente para o passado brasileiro e para as diferenças e semelhanças entre os inúmeros grupos que constituem a população do país. Neste livro, de cunho autobiográfico, Arthur fala de sua família, formada por imigrantes russos de origem judaica.

Imigrantes e mascates. Bernardo Kucinski. Companhia das Letrinhas. 2016.. Quando a Alemanha invadiu a Polônia no dia 1o. de setembro de 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial, Bernardo Kucinski estava prestes a completar dois anos de idade. Sua mãe, polonesa, tinha chegado ao Brasil havia apenas quatro anos e mal falava português. Neste livro, o autor conta sobre a sua infância no bairro da Água Fria, em São Paulo, a descoberta dos livros, a influência de seu pai em sua vida e, entre outros temas, sobre as dificuldades enfrentadas por uma família judaica em um dos períodos mais conturbados da história

Desterro: memórias em ruínas. Luis S. Krausz, Tordesilhas, 2011.O autor, educado num ambiente fortemente marcado pelo respeito à tradição judaica e à cultura de língua alemã, é neto de imigrantes judeus do antigo Império Austro-Húngaro, que se desintegrou com a Primeira Guerra Mundial. Seu livro é um percurso saudoso desses tempos de glória, aos quais seus avós se apegam com quase desespero. Cabe ao narrador, descendente de uma família de judeus austríacos desterrados em São Paulo, retratar seus parentes nesse novo meio.

Negócios e Ócios: histórias da imigração. Boris Fausto, Companhia das Letras, 1997.Incursionando pela primeira vez no memorialismo, em Negócios e ócios o historiador e cientista político Boris Fausto recria a história de sua própria família, que, como tantas outras, aportou nas Américas durante as primeiras décadas do século passado em busca de melhores condições de vida. Ao focalizar seu núcleo familiar, de extração judaica, Boris Fausto acaba homenageando todas as famílias de imigrantes que refundaram suas raízes
na cidade de São Paulo.

Entre Moisés e Macunaíma. Moacyr Scliar e Marcio de Souza, Garamond, 2011.Uma crônica da presença judaica no país que é fruto da colaboração de Márcio Souza, descendente dos antigos Bentes de Manaus, e Moacyr Scliar, filho da onda migratória que se instalou em Porto Alegre nos primeiros anos do século XX. Combinação perfeita: de Norte a Sul do Brasil, asquenazis e sefaradis dos quatro cantos do planeta aportaram ao longo dos séculos e aqui se instalaram, produziram, cresceram e se multiplicaram.

Os judeus no Brasil: estudos e notas. Nachman Falbel, Humanitas e EDUSP, 2008.Nos últimos anos tem crescido o número de estudos sobre a história dos judeus e do judaísmo no Brasil, e a criação do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, do qual o autor foi um dos fundadores, contribuiu para a sistematização das pesquisas e para sua publicação. Este livro contém uma coletânea significativa de estudos de Nachman Falbel que foram publicados nos últimos trinta anos em diferentes periódicos científicos, revistas e coletâneas acerca do tema.

Aventuras de uma língua errante. Jacó Guinsburg, Perspectiva, 1996.

J. Guinsburg se debruça sobre o ídiche, língua que se formou no século X e que servia como intercomunicação do dia-a-dia, já que o hebraico – língua sagrada – era usado para a comunicação com a divindade, desvendando ante nossos olhos as ricas produções que dela se originaram no campo da filosofia, literatura, arte e política.

OUÇA MAIS:

Tumbalalaika (Thedor Bikel canta)

Shteyt a bocher, shteyt un tracht,
tracht un tracht a gantze nacht.
Vemen tsu nemen un nit far shemen,
vemen tsu nemen un nit far shemen.
Tumbala, tumbala, tumbalalaika,
Tumbala, tumbala, tumbalalaika
tumbalalaika, shpiel balalaika
tumbalalaika – freylach zol zayn.
Meydl, meydl, ch’vel bay dir fregen,
Vos kan vaksn, vaksn on regn?
Vos kon brenen un nit oyfhern?
Vos kon benken, veynen on treren?
Narisher bocher, vos darfstu fregn?
A shteyn ken vaksn, vaksn on regn.
Libeh ken brenen un nit oyfhern.
A harts kon benkn, veynen on treren.

Tradução

O rapaz está quieto, quieto e pensando.
Pensa e repensa a noite toda em
como se declarar sem passar vergonha
como se declarar sem passar vergonha.
tumbala, tumbala, tumbalalaica
tumbala, tumbala, tumbalalaica
tumbalalaica, toque balalaica
tumbalalaica – e seja feliz.
Garota, garota, quero te perguntar
O que pode crescer, crescer sem chuva?
O que pode queimar sem parar?
O que pode ter saudade, chorar sem lágrimas?
Rapaz tolo, prá que perguntar?
Uma pedra pode crescer, crescer sem chuva.
O amor pode queimar sem parar.
Um coração pode ter saudade, chorar sem lágrimas.

Dona, Dona:

Efim Chorny – Oyfn veg shteyt a boym

Margaritkelekh

 Gib Mir Bessarabia

Leonard Cohen – Un As Der Rebbe Zingt 

Mentshn-freser – a Yiddish theater song about tuberculosis, polio, and war

אכציק ער און זיבעציק זי

Akhtsik er un zibetsik zi

S’iz haynt akurat gevorn fuftsik yor
Az zey lebn in eynem, dos alte por:
Zey hobn zikh geeltert -kukt aykh tsu!-
Akhtsik er un zibetsik zi
Khotsh der zeyde mit der bobe zaynen kurts un kleyn
Nor der zeyde mit der bobe zaynen mole kheyn:
Er mitn shpitsekhdikn berdele, mitn goyderl zi
Akhtsik er un zibetsik zi
Got hot zey mit oysher un koved baglikt
In lebn hobn zey zikh keyn mol nisht gekrigt:
Nor “Notele,” nor “Bobele” rufn zey zikh tsu
Akhtsik er un zibetsik zi
Der oylem hot genumen tsu bislekh vayn
Un dem zeydn mit der boben in rod arayn
Di eyniklekh hobn gepliesket tsu
Akhtsik er un zibetsik zi
Azoy hobn zey gehulyet biz a halber nakht
“Bobele” -zogt der zeyde- “A gute nakht!
Shlof mir gezunt un dek zikh gut tsu”
Akhtsik er un zibetsik zi

He eighty and she seventy

Today it’s been precisely fifty year
That they’ve been living together, this old pair
They’ve aged, look at them!
He eighty and she seventy
Although Grandpa and Grandma are short and small
Grandpa and Grandma are graceful
Him with the pointed goatee beard and her with the little double chin
He eighty and she seventy
God has rejoiced them with riches and honor
In their whole life they’ve never fought
And have called each other only “Notele” and “Bobele”
He eighty and she seventy
Everybody took sips of wine
And drew Grandpa and Grandma in the circle
The grandchildren clapped their hands
He eighty and she seventy
Thus have they rejoiced for half a night
“Grandma”, says Grandpa, “Good night
Sleep healthy and cover yourself well”19
He eighty and she seventy

 

PODCAST 6: RUA MAESTRO ELIAS LOBO, 406

Nesse sexto episódio do Podcast Fabulações da Família Brasileira vamos adentrar o cotidiano de uma família paulistana nos anos 60, com todas as suas arquiteturas – as sociais e as estruturais – que determinaram o modo de vida de grande parte da população nesta década. Memória e construção histórica fazem o tecido dessa narrativa reviver, por vezes de forma árida e crua, o cotidiano da narradora, que empresta sua voz para a própria narrativa. Em seguida, uma conversa com Angelo Bucci, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, amplia o pensamento sobre o espaço da casa e sua repercussão na estrutura familiar do Brasil.

Boa Escuta!

Rua Maestro Elias Lobo, 406

Ana Sofia Schmidt Oliveira

Na casa da minha infância, os territórios eram bem demarcados.

Na sala da frente estava o temido sofá de veludo vermelho. Tento pensar nele como apenas… um sofá, mas ele se impõe simbolicamente, com sua austeridade e sisudez. Não se tratava, de forma alguma, de um sofá desses em que a gente se joga ao chegar em casa: exigia compostura. Não sei quais eram suas medidas, mas quem ali se sentava ficava menor do que era. Nós, os filhos, quando convocados para uma “conversa no sofá vermelho”, éramos reduzidos ao tamanho da nossa fragilidade. Pequenas Alices. Coração disparado, olhos fixos no chão. Medo. O sofá agia como a longa manus da autoridade paterna.

A sala da frente era o espaço mais solene da casa. Eventualmente, alguma irmã mais velha recebia ali um namorado. Mas o sofá vermelho não poderia jamais ser cúmplice do desejo adolescente. Com que constrangimento desempenhei eu o papel de guardiã dos bons costumes ocupando a almofada do meio, sendo o muro da fronteira, impedindo que mãos mexicanas avançassem sobre as preciosidades escondidas na América do Norte.

Entre a sala da frente e a seguinte, em um hall que dava acesso à sala de jantar e à escada que levava ao andar superior, foi instalado, em meados dos anos 70, um equipamento que virou atração turística.  A mesa de som feita de aço trazia a grife “Josias Studio”, indicativa de status nas sociedades carioca e paulistana. A empresa, fundada no Rio na década de 50, chegou a São Paulo em 1974.  Gravador de rolo, toca discos, amplificador, caixas acústicas, um revestimento espelhado. Embora a tal mesa de som fosse um sopro de modernidade, na minha lembrança ela se submetia à autoridade do sofá vermelho.

A sala de jantar. À mesa sentavam-se pai, mãe e filhos maiores. E algum convidado – geralmente, um dos padres amigos da família. Sob a mesa de jacarandá maciço, o tapete persa. Seu imenso valor, real ou imaginário, ensejava severas advertências. “Presta atenção!” “Cuidado com o tapete!”. O medo de derrubar um grão de arroz que fosse transformava aqueles dois ou três metros que separavam as travessas de comida do meu lugar à mesa num campo minado. Passos tensos e cautelosos. Um equilibrista na corda bamba. Sem rede de proteção.

Não lembro ao certo com que idade pude – eu, a caçula – ocupar um lugar à mesa dos adultos. Sete ou oito anos? A promoção, da copa para a sala, exigia o domínio dos bons modos. Segurar corretamente os talheres, apoiar apenas os punhos na borda da mesa, tomar sopa e mastigar sem produzir qualquer ruído; para que se aprendesse a não “abrir as asas”, isto é, não afastar os cotovelos do corpo, era colocado um talher nas axilas. Se caísse, ainda não era hora de passar para a mesa dos adultos. Na copa, em tudo mais amigável, não se rezava antes das refeições como se fazia à mesa grande; talvez a vida de criança fosse já uma oração. Mesmo assim, a promoção não deixava de ser um desejo infantil. Um desejo de fazer parte sempre presente na minha vida, pelo qual paguei preços variados.

Depois da sala de jantar com seus móveis austeros, o jardim de inverno. Um bar, um sofá, a poltrona do meu pai, uma cadeira de couro modernosa, pufes, a mesa de mármore ao centro. E um tapete que não dava medo. Ali, minha mãe, elegante e sempre sociável, fumava usando piteira, tomava whisky e recebia amigos (as bitucas maiores eram preciosidades para as empregadas – e para mim, quando quis descobrir como fumar). Falava-se de política, o golpe de 64 era chamado de revolução. Durante muitos anos aquele era, para mim, o território dela, de minha mãe. Depois, quando meu pai passou a viajar menos por ter vendido as fazendas, era ele quem ocupava aquele espaço que, diante de sua severidade, foi deixando de ecoar risos e conversas. Era um silêncio pesado que reverberava de sua poltrona.

Na parte de cima da casa, os quartos. No primeiro, dormiam as duas irmãs que me antecediam em idade, o do meio era do meu irmão, único menino dentre os seis filhos. As duas irmãs mais velhas ocupavam o terceiro. Havia um outro, onde ficava a rouparia, ligado à suíte dos meus pais por um pequeno corredor. Esse quarto de passagem, além de ser rouparia, era o meu. À noite, um ouvido tentava captar o que se passava nos quartos dos irmãos; o outro, o que se passava no quarto dos meus pais.

Atravessando uma espécie de ponte que fazia a ligação da casa com a construção dos fundos, chegava-se a um escritório amplo, o “salão”. Uma escada de madeira levava à garagem. Ali estava a pequena oficina do meu pai. Ele gostava de armas, revólveres, espingardas e facas. Gostava de limpá-los. Gostava de trabalhar com couro. Fazia cintos, coldres e bainhas. Não sei se era porque sua arte precisava ser vista, não sei se era porque ele precisava de companhia. Não sei era por maldade ou por amor. Só sei que muitas vezes eu era convocada para ficar ao lado dele. O tempo era infinito, o ar era pesado. Úmido. Cheiros misturados, óleo lubrificante e couro. De pé, sem tocar em nada, calada, encostada no batente da porta daquele quartinho, sem poder contestar a convocação, passaram-se as horas mais longas da minha infância.

Nos fundos da casa, no alto, a caixa d’água. Chegar exigia esforço. Ali, deitada no cimento, olhando o céu, assistindo o desfile de todas as coisas em forma de nuvens, eu era feliz. Observava os pássaros e tinha certeza de que, se observasse bem, aprenderia a voar.

Cheguei à idade que meu pai tinha quando morreu em 1984. Temos hoje, ele e eu, 57 anos. Por isso, posso falar para ele que me cansa ter que assistir enquanto ele trabalha com o couro e limpa as armas. Posso falar, quando ele me chama para uma conversa no sofá vermelho, que prefiro conversar com ele na mesa da copa, tomando um vinho. Posso convidá-lo, quando ele está sisudo em sua poltrona, para passear no jardim. Posso mostrar para ele a caixa d’agua em que eu me perdia em devaneios quando era criança e perguntar: “E você, quais eram os seus sonhos? Será que ainda posso realizar algum deles?”

VEJA MAIS:

Filme Aquário

Clara (Sonia Braga), uma viúva de 65 anos que é a última moradora do edifício que dá título à obra, na orla da praia de Boa Viagem, no Recife. No decorrer do filme, acompanhamos o dia a dia da protagonista, sua relação com seus amigos e familiares, e a investida de uma construtora que pretende comprar o prédio a todo custo, visando erguer um mais moderno no local. Assim, o longa-metragem aborda temas como especulação imobiliária, passagem do tempo e memórias, e discute ideias preconcebidas sobre a vida e sexualidade de uma mulher na terceira idade.

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/pt/8/80/Aquarius_%28filme%29.jpg

 

Filme A Vida Invisível

Baseado no livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, da escritora Martha Batalha, o filme conta a história de duas irmãs no Rio de Janeiro de 1950. Guida é uma mulher de ímpeto que busca o amor e uma vida mais livre; Eurídice deseja se tornar uma pianista profissional. Entretanto, no decorrer do filme vemos a união das irmãs ser irremediavelmente rompida e o sonho de cada uma delas ser eclipsado pela força da família e da sociedade patriarcal. No longa, temas como maternidade solo, obrigatoriedade do casamento, maternidade compulsória, relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, prostituição, conservadorismo na família e histerização feminina são abordados com muita sensibilidade, demonstrando todo o impacto nocivo da moral familiar sobre os corpos e mentes da mulheres – impacto este que atravessa gerações e mostra seus horrores até os dias de hoje

 

Em “The Perverted Guide to Vinema”, o filósofo Slavoj Zizek oferece uma leitura psicanalítica crítica de diversos filmes. Dentre eles, ao analisar o filme Psicose, de Alfred Hitchcock (1960), ele faz uma analogia entre os níveis da casa e a organização do aparelho psíquico, tal como proposta por Freud: Id – Ego – Superego. O trecho em questão está entre os minutos 08:39 a 11:35.

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Isidoro Berenstein – Familia Y Enfermedad Mental

A Lógica do Condomínio ou: o Síndico e seus Descontentes Christian Ingo Lenz DunkerRevista Leitura Flutuante – Volume 1

A Natureza do Espaço – Milton Santos

Tudo Sobre a Casa – Anatxu Zabalbeascoa

Gaston Bachelard – A Poética do Espaço

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PODCAST 5: O ENGANO

Nesse episódio do podcast Fabulações da Família Brasileira conheceremos a história do velório de Margarida, que apresenta os ritos fúnebres praticados por grande parte da população brasileira, com seus vínculos a tradições populares e religiosas, e juntamente com outros ritos compartilha do espaço sacro das igrejas.

Também conversamos com a pesquisadora Maria Júlia Kovacs sobre os processos funerários, suas implicações psíquicas e sociais e seu poder de agregação social.
Boa escuta!!!

 O ENGANO

                                                                                       Lucas Neiva da Silva

Papai conta que aconteceu o seguinte:

Num dia do verão de 1970, a chuva caía ininterrupta. Chuva do plantio de milho, de feijão, de abóbora. Chuva forte de fazer os caçadores mais impetuosos ficarem reclusos em casa e os homens da lida do campo também. E toda essa chuvarada levou a alma de Dona Margarida. Desligou-se desse mundo repentinamente. Logo, a má notícia se espalhou pela redondeza. Com isso, o povo foi chegando ao casebre onde se concentrava o singelo ato fúnebre. Gente chorando pelos cantos e Margarida indolente estirada no banco da sala. As mulheres, que aglomeravam na cozinha, sussurravam e diziam palavras de consolo e tentavam dizer muito mais coisas, mas as palavras lhes fugiam ligeiramente. Então, apenas choravam baixinho. Seus murmúrios somavam-se aos gemidos da lenha, que crepitava em contato com o fogo bravo por causa da umidade de muitos dias. Na varanda ao lado, ouvia-se o barulho dos martelos, dos pregos, das tábuas e dos serrotes. Os homens não falavam da finada. Estavam apressados para terminar o caixão e dar um novo lar à Margarida. E também a chuva dava mais assuntos. As cheias das várzeas, o feijão viçoso, flor do capim de maio; enfim, faziam maquinalmente o trabalho.

Feito esse trabalho e tendo cumprido todo o ritual, já no período da tarde, numa guinada ligeira e acostumada, ombros calejados de outros esquifes suspenderam o caixão improvisadamente artesanal e partiram em linha de frente na última peregrinação de Margarida, da forma mais confortável possível, rumo ao Cemitério, na cidadezinha mais próxima. Margarida descansa e confia totalmente nos amigos. Margaridas sacudiam-se num gesto desesperado e triste nos “canteiros sem fim” do jardim, num ato de devoção e gratidão pelas mãos caridosas que de quando em vez retirava as ervas daninhas e muito mais fazia. Órfãs estavam agora. A descida era íngreme, as pedras soltas e muito barro. Mas os pés calejados e firmes dão segurança à Margarida até o ponto do em que o caminhão esperava por eles. Ao chegarem nesse local, o caixão foi cuidadosamente ajeitado no centro da carroceria do automóvel, em volta a família e os amigos. Nem parecia uma viagem fúnebre. As lágrimas ficaram lá nas bordas do fogão. As mais resistentes até ao portãozinho do alpendre, somente. Agora, tratavam-se de agarrar as mãos onde se podia segurar. Barro, buracos, ziguezaguear frenético do caminhão, e Margarida calmamente apoiava as mãos amarelas de fumo de rolo no peito.

Porém, Margarida não ficaria isenta da última peça do destino. Este sempre aprontava com ela. Até já desconfiava daquela tranquilidade toda.

Chegam ao arraial no final da tarde, neste momento, já se ouvia o tilintar das poucas lojas fechando as suas portas em reverência ao cortejo fúnebre.  Povo determinado que cuida dos seus até o fim, no mais o Deus e os santos ajeitam.  “Não passem na igreja católica”  foi a recomendação do viúvo que não descera a serra para o enterro sabe-se lá por quê. Mas o povo não cede a honraria. “Todo morto há de ser benzido!  e padre não nega a bênção, não, gente”, disse o líder do cortejo. Em seguida, o sino da matriz badalou. “Escutem, o vigário já tá em prontidão, podemos ir lá”. E entre sinais da cruz e um abaixar tímido de chapéus entram pela igreja rapidamente rompendo o silêncio que antecede a um matrimônio. Olhos ansiosos para ver a noiva, mas deparam com um esquife.  Chegam ao altar. O noivo, certamente, foi o que mais se desesperou. Saiu correndo porta a fora, maldizendo-se: “Oh! Indivíduo atingido por excremento fecal de abutre”. Se bem que não falou assim. Disse mesmo “sou cagado de urubu! Esperando minha noiva e chega um defunto”. Os olhos lutuosos ficam fixos no caixão, não interpretam a situação. Miúdas lágrimas começam a brotar novamente. “Melhor benzer esta filha de meu Deus, senão esta gente não sai daqui não” (assim entendeu o vigário).  Três gotas mal jogadas de água benta. Margarida nem as sente. Mas, satisfeitos, pegam o caixão e partem para o cemitério. Agora sim. Almas leves e corações certos de serviço feito completo. É nossa gente!

(Não se sabe o que aconteceu com a cerimônia de casamento depois do ocorrido, pois meu pai já não estava lá mais. Penso que, certamente, foi o casamento mais comentado e divertido daquela vilazinha por muito tempo).

 

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A artista autodidata mineira Maria Auxiliadora (1935-1979) retratou em suas obras festas, danças, ritos e danças afro-brasileiras e a morte. Depois de receber um diagnóstico de câncer, doença que eventualmente tirou sua vida, ela passou a fazer autorretratos em circunstâncias fúnebres e celestiais. Em “Velório da noiva” vemos uma cena que lembra “O engano”: trata-se de um velório aparentemente no interior do país, envolvendo toda uma comunidade, além de uma referência ao casamento. Chama a atenção seus traços que desconsideram as convenções de perspectiva, além das cores chamativas e os detalhes em alto-relevo. 


No cinema, o tema da morte, em diferentes facetas, aparece em clássicos como “O sétimo selo”, “A falecida” e “Ensina-me a viver”. No japonês “A partida” (de Yōjirō Takita, 2008), a morte é retratada em seus rituais funerários a partir da figura do nōkanshi, pessoa responsável por limpar e acondicionar os corpos no caixão diante da família enlutada. Embora seja um rito importante para os vivos que sofrem a perda, paradoxalmente a profissão – e a morte, de modo geral – é estigmatizada no Japão por estar relacionada a uma ideia de impureza. Já no documentário brasileiro “Terra deu, terra come” (de Rodrigo Siqueira, 2010), acompanhamos um funeral no quilombo Quartel do Indaiá, em Diamantina, Minas Gerais. Ali, Pedro de Alexina tenta manter viva a tradição dos vissungos, cantos africanos usados no garimpo, em funerais e em outras atividades cotidianas. Os cantos funerários também se fazem presente na cena a seguir de “Bacurau” (de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019), em que, assim como no conto “O engano”, a comunidade se reúne para se despedir de uma importante figura.

Okurubito – A Partida

Terra Deu, Terra Come

Bacurau

 

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Essa é uma obra do Walter Hugo Mãe, na qual ele lida com a relação entre a vida e a morte de forma especialmente poética. O link leva a um trecho do livro, já diretamente em relação com nosso tema:

Homens Imprudentementes Poéticos


Neste ótimo artigo do graduando em ciências sociais Thiago Tavares, é-nos apresentado como o “bem morrer” se modificou desde a Idade Média até os dias atuais, mostrando como a morte foi progressivamente “desritualizada” pela ciência e pela ética burguesa.

Um Ritual de Passagem -Thiago Tavares


Em  A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, a referida ética burguesa em relação a morte é abordada através de um enredo inteligente, direto e ácido. Isso se nota logo na primeira cena, quando, ao receber a notícia da morte de Ivan Ilitch, seus colegas de trabalho se põem a pensar em qual deles substituirá sua posição e quanto ganhará com isso; além de ficarem felizes com o pensamento de que “antes ele do que eu”. Além de conciso, é um livro gostoso de ler por conta das reflexões que causa.

A Morte de Ivan Ilitch – Liev Tolstoi


 

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PODCAST 4: PAI DE FAMÍLIA(S)

No quarto episódio do Fabulações da Família Brasileira trazemos um conto que convoca o arquétipo patriarcal do pai – que constrói várias relações amorosas e enlaça o destino de duas famílias – história que guarda nos seus detalhes inúmeras outras que acontecem nos territórios geográficos e imaginários do Brasil. O autor, Luíz Henrique Gurgel, narra a história que ouviu de uma amiga sobre as peripécias amorosas do pai e plasma um retrato que poderia figurar em muitas paredes das casas brasileiras, retrato que confunde histórias privadas com a própria construção social do País.
Boa escuta.

 

PAI DE FAMÍLIA(S) OU UMA PEQUENA HISTÓRIA PATRIACAL

Luiz Henrique Gurgel

Só uma noite o pai dormiu sozinho no hospital. No dia seguinte, mal a filha saiu do elevador e a enfermeira chefe lhe fez sinal para falar, algo desagradável, o seu Elias tinha sumido na noite anterior. A filha arregalou os olhos e antes de dizer qualquer coisa a enfermeira a tranquilizou, estava tudo bem, ele tinha voltado. Havia só um detalhe, naquela noite uma enfermeira do plantão também sumira. A enfermeira chefe fez cara de reticência e Laila, a filha constrangida, saiu disposta a esganar o pai, apesar dos seus 85 anos. Entrou no quarto e ele foi logo falando, entusiasmado, filha, tem aqui uma enfermeira muito bondosa e cuidadosa comigo, muito carinhosa e atenciosa. Você precisa me fazer um favor, vá comprar uma caixa de bombons finos, chocolate belga, importados, para eu dar a ela.

Vinte anos antes, no mesmo hospital, Elias se internara por causa de um câncer. Não dura dois meses, disse o médico. Às vésperas da cirurgia, Laila e o irmão, Khalil, aguardavam no corredor do hospital quando viram passar uma  moça pouco mais velha que eles, 35 anos, talvez, elegantemente vestida e perfumada. Passou e entrou no quarto do pai. A filha levantou-se, ela deve ter se enganado, vou avisá-la. Abre a porta e a moça enlaçava e beijava o convalescente na boca. A filha gritou, o pai pediu calma, ela é minha noiva. Elias só esquecera de dizer à moça que tinha esposa. Por um bom tempo a noiva ainda ligou para casa da família e Laila explicava com doce paciência, olha, meu pai ainda é casado…

Mas foi no metrô que a filha, aos 19 anos, levou o primeiro grande susto. Na escada rolante, degraus acima, viu o pai abraçado a uma mulher grávida. Ela começou a tremer e decidiu seguir o casal. Desistiu no meio do caminho, sem coragem. No velório do pai, anos depois, achou estranha a despedida emocionada de um rapaz desconhecido, vinte e tantos anos. Ninguém foi abordá-lo e ele saiu antes do enterro. Jamais soube se era o menino da barriga da mulher do metrô.

Jorge Elias tinha um visível amor à vida, às paixões, ao existir, às mulheres. Nascera no Estado do Rio em 1924, filho de um libanês e de uma mineira. Seguiu o caminho do pai, caixeiro viajante mascateando do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul.

Elegante, charmoso, fama de sedutor e carismático, contador de causos, viajava nas próprias histórias, em grandes e fantasiosos projetos, um sonhador.

Contou à filha que seu primeiro casamento tinha acontecido num acampamento cigano. Chegou ao lugar para vender seus tecidos, tesouras, linhas, colares e anéis. O líder do grupo – presenteado com um potente canivete suíço – autorizou que abrisse suas malas, as mulheres correram até ele. Homens também. Acabou convidado para jantar e pernoitar. Aceitou de bom grado depois de ver a moça morena e tímida que manuseava faixas de renda e seda. O pernoite virou uma semana de estadia e ele já bebia com o pai e os irmãos da moça na barraca da família. Não demorou para se falar em dote e na semana seguinte casamento. Dois dias depois de consumado, fugiu de madrugada. Os ciganos ficaram no seu encalço por mais de um mês rodando o Espírito Santo e Minas.

Também confidenciou à filha a história de um trauma que fez com que nunca mais dançasse, justo ele, exímio pé de valsa. Tudo por ter se envolvido numa tragédia, provocada por seu irresistível apego a rabos-de-saia. No interior de Minas foi a um baile onde conheceu outra linda mulher. Só havia um porém, era casada. Dançaram bastante e dançariam mais, não fosse o marido ciumento interromper tudo: no balanço dos corpos, mirou errado e num volteio do casal, ao invés de acertar o cavalheiro, acertou em cheio a dama, matando a própria esposa.

No norte paulista, em Bebedouro, é que começou a formar – sem querer – a família. A primeira. Lá conheceu Zulmira, filha de tradicionais fazendeiros, decaídos. Não se passaram cinco dias e já namoravam às escondidas. Mas tinha que partir para outras paragens e sequer avisou a moça que estaria longe na manhã seguinte.

Dois meses mais tarde, na Serra Gaúcha, batem na porta do quarto de pensão onde se hospedara e dá de cara com o próprio pai. Mais que inesperada visita, achou ainda mais estranha a forma gentil e carinhosa com que falava, convidando-o para jantar, vinho, conselhos, lembrou ao filho que ele já era mais que um homem feito e que a vida já tinha lhe proporcionado muitos prazeres. Saíram pela rua sem rumo até pararem em frente à zona da cidade e o velho Abraão disse que já estava tudo pago, ele podia se divertir, seria sua despedida de solteiro, pois no dia seguinte seguiria com ele para São Paulo casar com Zulmira.

Laila tinha 4 anos quando uma mulher bonita, gentil e educada, bateu em casa procurando seu pai. Carla, a mãe de Laila, a recebeu. Não lembra da conversa, mas recorda que era permeada de silêncios, de palavras sussurradas. Quando o pai chegou do trabalho, entrou na sala e viu as duas mulheres tomando chá. Ficou paralisado e lívido. A visita o olhava fixamente, em silêncio, até explodir. Ele ainda tentou explicar o inexplicável.

Os cinco anos de vida dupla terminavam ali, ruidosamente, em 1967, quando saiu definitivamente do primeiro para se instalar exclusivamente no segundo lar. Tinha quatro filhos com Zulmira e agora mais dois com Carla. A diferença de idade de Omar, o caçula do primeiro casamento, e Laila, a primeira do segundo, era de 6 anos.

A mãe de Laila se justificou a ela anos depois, disse que nunca soube que ele continuava casado até a visita de Zulmira. Elias contou que começou o relacionamento paralelo num momento muito ruim de sua vida, sem trabalho, sem perspectiva, angustiado. Certo dia, zanzando pela Estação da Luz, sentou-se num banco para ver os trens. Achou num jornal o anúncio de vagas para corretor de imóveis, vender era algo que sabia fazer. A secretária que o atendeu encheu seus olhos, acendeu desejos. Foi uma obra da vida conhecê-la, justificava. Não demorou e a bela secretária rompeu o noivado com um jovem empresário para morar com o galante e envolvente Jorge Elias. Desgosto supremo da família da moça, por anos rejeitada, a prostituta, a que não se casou.

Laila, aos quatro anos, ouvia cada vez mais algo sobre “filhos do Elias”. Também ouvia vagas referências, da boca das tias – como se falassem dela e do irmão – usando uma palavra esquisita, bastardos. Anos depois, estranhou que a mãe preparava um almoço especial e o pai parecia eufórico em ajudar na arrumação da casa. Carla chamou os dois filhos, Laila e Khalil, falou que umas pessoas viriam almoçar em casa, os filhos do seu pai. Foi um choque ver aquela gente chamando o pai dela de pai.

Omar, filho de Zulmira, conta o outro lado. A mãe nunca fora amarga por causa do imbróglio. Pouco depois de o pai ir embora de casa, ela contou aos quatro – Jaber, Cassim, Julia e o próprio Omar – que eles tinham mais dois irmãos. Um tanto diferente de Carla que se referia aos outros filhos do marido como “eles”, “os filhos do seu pai”, ainda que depois passasse a se dar bem com todos.

Esse primeiro encontro entre os irmãos ficou marcado para sempre nas retinas de Omar e Laila, uma grande surpresa, encontro feliz. O patriarca se sentia orgulhoso em ver a prole reunida. Beberam, comeram, cantaram. A menina Laila, assustada no começo, depois contente em descobrir uma família maior. A partir desse encontro passou a corrigir a mãe: filhos do pai, não! Meus irmãos!

No fim da vida, Zulmira fez contato, queria falar com Elias antes de morrer. Foi Laila quem o convenceu a ir, o intimou, era dever dele. Eles nunca tinham conversado sobre tudo o que acontecera. Foi pouco antes da morte dos dois, Zulmira se foi em 2007, Elias em 2009. Eles se desculparam, ou Zulmira o perdoou. Falaram do antigo amor, aquilo que os uniu tinha sido belo e profundo.

Fã de um bom samba-canção, de Nelson Gonçalves e, claro, de Lupicínio Rodrigues, o otimista inveterado e absurdamente conservador, defensor da ditadura militar, da pena de morte e de frases como “mulher não pode ser inteligente e nem trabalhar fora”, passou a vida confrontado – com gosto – pela filha feminista, de vários casamentos, e que guarda essa história como um pedaço dela.

 


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Arthur Júlio Wischral e João Baptista Groff se tornaram célebres por serem os autores de alguns dos principais registros fotográficos da Curitiba do início do século 20. Wischral era o repórter fotográfico da revista ilustrada, humorística e literária A Bomba (PR), e realizou importantes registros da vida cotidiana paranaense na primeira metade do séc XX. Abaixo, algumas fotos de famílias imigrantes e nativas registradas por ele.

 


Eu, Tu, Eles  (2000, dirigido por Andrucha Waddington)
Inspirado na história de uma família do interior do Ceará, o filme de Andrucha Waddington (menção honrosa no Festival de Cannes de 2000) traz a história de Darlene (Regina Casé), cortadora de cana que é o centro de uma família com três maridos (interpretados por Lima Duarte, Stênio Garcia e Luiz Carlos Vasconcelos), além de filhos, numa construção que subverte e ao mesmo tempo naturaliza padrões – ou justamente demonstra que padrões são construídos – com arranjos implícitos ou não, e onde até os conflitos fazem a família “funcionar”


Samba-Canção
Com o sugestivo título de “Samba-canção” e citando a famosa marchinha “Taí”, gravada por Carmem Miranda, neste poema de Ana Cristina César (do livro A teus pés) a ótica é feminina e sem qualquer romantismo ou pieguice. Não há o estereótipo da mulher sonhadora, passiva ou vingativa. Pelo contrário, é racional e franca em falar do seu desejo e de estratégias para manter o seu amor (“eu fiz tudo pra você gostar/fui mulher vulgar”). Ama sem tirar os pés do chão, é alguém que assume as rédeas de seu sentimento.

Samba-Canção, in A Teus Pés
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…

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Antonio Cândido, nesse texto escrito em 1951, observa e descreve a família brasileira em suas diferentes formações a partir de uma perspectiva evolucionista, ou seja, supondo um processo evolutivo que iria da “promiscuidade” – o termo é retirado dos primeiros antropólogos evolucionistas que estudaram relações de parentesco – das senzalas ao matriarcado e, mais tarde, ao patriarcado, arranjo no qual o homem ocupa o lugar central, como autoridade econômica e moral da família, e o mando da mulher é centrado no espaço doméstico: ele é o pater familiae, ela é a dona de casa.

“É provável que os escritores tenham exagerado sobre a submissão total da mulher, quase eliminando-a como pessoa autônoma em vista da prepotência do marido. Quase universal é o estereótipo do marido autoritário, rodeado de concubinas escravas, à vista da esposa, enquanto ela, seus sentimentos brutalizados, desenvolve-se como uma flor de estufa indolente e enervada, repousando na rede e a abusar dos negros. Diante da formação social no sul do Brasil, pelo menos, a realidade não está de acordo com esta imagem. Embora ela fosse sujeita ao marido e o respeitasse muito, e embora os figurinos a condenassem a um sistema de reclusão, o fato é que na gestão dos assuntos da casa ela sempre desempenhou um papel tão importante, que não podemos pensar nela como carente de capacidades de comando e iniciativa.”

Antonio Candido “The Brazilian Family”, in Brazil: Portrait of Half a Continent. 1951


Lévi-Strauss, nesse livro publicado em 1983, recorre a um conjunto de evidências etnográficas sobre famílias em diferentes sociedades a partir de uma perspectiva estruturalista. Ele nos apresenta a diversidade dos arranjos familiares no mundo, ainda que afirme o predomínio universal da família nuclear, aquela composta por pai, mãe, filhos e, eventualmente, agregados ao núcleo central, vivendo numa unidade doméstica independente. A poligamia, segundo o autor, seria um arranjo mais encontrável em sociedades nas quais há um desequilíbrio entre o número de homens e mulheres. Mas, mesmo nesses casos, seria possível discernir uma hierarquia entre as famílias constituídas pelo mesmo homem ou mulher, sendo uma a principal e, as outras, secundárias ao núcleo familiar central.

O Olhar Distanciado – Claude Lévi-Strauss


Com seu estilo genial e irônico, o mordaz Quino – criador de Mafalda – analisa detalhadamente a vida em casal. Uma coletânea ideal para quem tem companhia, para quem quer ter, e até para quem deseja não ter. No final, em questões de amor, alguém sempre terá a última palavra: Sí… cariño.

Sí, Cariño – Quino

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PODCAST 3: GUARDA

Nesse capítulo do podcast Fabulações da Família Brasileira trazemos a questão dos objetos guardados como tentativas de manter o tempo congelado na passagem da vida, nas relações que criamos com essas posses e o domínio delas no cotidiano. O entrevistado deste episódio é Enrique Mandelbaum, psicanalista e doutor em Literatura pela USP com a obra “Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível”, de 2003. Fez o pós doutorado em Literatura Comparada estudando Borges. Seus escritos versam sobre Psicanálise, Crítica Literária e Judaísmo.
Boa escuta.

 Guarda

Gabriela Conserva

Minha avó conserva variados costumes: toma banho com aquele sabonete, da caixa verde, desenhada com flores, que mulheres de alma antiga apreciam; passa talco; usa anágua, porque mulher de vergonha não mostra os fundos; empresta alho, cebola, sal, xícara de açúcar, cominho, colorau, mas não pede emprestado, porque tomar empréstimo é feio; paga em dia aos vendedores prestamistas que passam vendendo na porta; compartilha pratos de comida com as vizinhas, sobretudo, quando faz algo diferente e jamais devolve o prato ou o pote de plástico que veio cheio vazio. Minha avó também conserva inúmeras coisas: trajes do meu avô, porque – isso de cada cônjuge ter seu closet é coisa moderna –  no tempo dela, quem se casa o faz para dividir tudo, logo, o guarda-roupa é tão importante quanto o sobrenome, tratando-se de um bem; roupas que ela usa e roupas do tempo do ronca que não mais lhe servem também são preservadas e mesmo que a moda retorne ela jamais usa as peças adormecidas; potes de botões e agulhas; álbuns, com fotos de gente viva e morta, sim minha avó tem retrato de defuntos, no plural mesmo, e não é de gente que já bateu as botas viva, mas enquanto era velada, sobre isso não sei se é mais estranha a antiga prática de tirar foto de cadáver ou a minha avó preservar essas memórias dos mortos, mortos dentro do caixão, imagens nada atrativas que certamente não são a melhor coisa para mostrar às visitas, tampouco são mostradas porque o tempo de achar tais fotos faria com que a visita se tornasse hóspede. Contas de luz, água, telefone, sim ela tem telefone, sendo até redundante chamar de fixo, porque se assim não fosse, seria celular; carnês de plano funerário, ninguém próximo a ela morreu, mas, precavida, já está pagando o caixão de algumas pessoas que entraram como dependentes dela – preciso confessar que tenho medo de ser a primeira a estrear esse serviço, porque usar sei que irei. Extratos bancários da aposentadoria; documentos dela e do filho homem, o preferido dela; cartões; escritura da casa na cidade, comprada com a venda do terreno lá no Angico Torto; cremes; perfumes; óleos; pentes; frisos; laços com redinhas para cabelo e inúmeras bolsas que ela jamais usará, porque não passeia, tudo isso dentro do guarda-roupa que obviamente está no quarto dela. Você pode achar pouco, mas a cama também não escapa, debaixo dela: sacolas de lojas, embrulhos e papeis de presentes, exames. Por que tudo isso, sobretudo, dentro do quarto? Porque vovó gosta de guardar e o quarto é o seu autorretrato.

O guarda-roupa de vovó não pode ser movido, em virtude do peso, assim como o coração e a opinião que ela detém. Vovó guarda e se mantém em guarda, é atenta e astuta, nada acontece sem que ela não “pegue no ar” e se posicione. Embora não possa mais cuidar da casa, o lugar onde moro é dela e mesmo o que está dentro não tenha sido comprado por ela, ainda assim ela acha que lhe pertence.

A última briga que tive com vovó teve como motivo um guarda-roupa. Esse objeto doméstico foi motivo de conflito, razão para eu ser novamente ameaçada a ser expulsa de casa e constrangida durante uma semana com o voto de silêncio dela para comigo. O que fiz com o guarda-roupa dela? Nada! Apenas, decidi jogar fora o guarda-roupa da minha mãe que estava caindo aos pedaços, cheio de poeira, servindo de abrigo para aranhas e cupins. Por tomar tal inciativa, fui chamada de cobra e de ser a ruína da filha dela – acredito que ela também se referia ao fato de a minha mãe ter engravidado e ter me criado sem pai – no fundo ela jogou em mim o que guardava desde 1993, em virtude de ela não ter conseguido guardar a minha mãe, como desejava.

Não faço ideia de onde o guarda-roupa que quebrei à marreta e chutes, e joguei fora está – foi violentamente terapêutico me desapegar –, embora parte dele permaneça aqui, pois vovó resgatou do lixo algumas partes e transformou-as em prateleiras para guardar vasilhas e pote, a fim de me lembrar que a liberdade nunca é completa. Assim como vovó fez com o guarda-roupa, ela faz com os sentimentos, transforma-os, dá à mágoa uma nova roupagem, mas a lembrança continua ali. Talvez, por isso, ela jamais perdoou o meu pai, embora diga que tenha feito.

Mainha, nunca foi a lugar algum, diferente do guarda-roupa dela, comprou um novo, na verdade, mandou fazer, mas esse móvel não é móvel, é de gesso e madeira, é arraigado, inalterável, perdurável, estático não dá para ser mudado. Confesso que esse guarda-roupa me amedronta, não só o dela, o que está no meu quarto também, por ser igual, porque está fixado nas paredes da casa que não é minha. Tenho medo de nunca sair da guarda da minha avó e ficar para sempre aqui, como a minha mãe. Mas, por outro lado, tenho esperança: a vida cheia de gavetas e portas. Não seria bom, mobiliar a minha casa somente com o que é meu? Usar roupas que me cabem? Será que o futuro me guarda isso?

VEJA MAIS:

Objetos dos depoimentos

 

livro A Evolução das coisas úteis, de Henry Petroski, Ed. Zahar, 2007

 

LEIA MAIS:

Trecho do conto A Estória de Amor, de João Guimarães Rosa, de Manuelzão e Miguilim (Corpo de Baile). No conto, a população de um lugarejo traz objetos para uma festa, tudo que lhes lembre algum requinte, alguma pompa: são suas “esturdias alfaias”.

Como informa o professor Wellington Andrade (Cásper Líbero), Alfaia é uma palavra antiga do Português, originária do árabe, que aparece em Gregório de Matos, por exemplo, no poema “Ao casamento de certo advogado com uma moça mal reputada” (“Deram-lhe em dote muitos mil cruzados,/ Excelentes alfaias, bons adornos,/ De que estão os seus quartos bem ornados”); na “Helena”, de Machado de Assis (“Cinco ou seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa redonda, uma cômoda e uma marquesa, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de latão, sobre a mesa um vaso de louça com flores, e na parede dois pequenos quadros cobertos de escumilha [gaze] encardida, tais eram as alfaias da sala”); e na obra do Guimarães. A dissertação de mestrado da Profa. Sandra Vasconcellos (FFLCH-USP) sobre o Guimarães chama-se “Baú de alfaias”.

 


“O romance se passa em um dia de maio de 2000. São 70 episódios, alternando entre diferentes gêneros literários, que formam uma estrutura polifônica. Selecionamos aqui dois desses por dialogarem fortemente com o conto Guarda”

Capitulo 24                        Capitulo 32


Trecos, Troços e Coisas (Daniel Miller)

O Colecionador – Walter Benjamin

 

OUÇA MAIS:

 

QUEM SOMOS

Profa. Belinda Mandelbaum  – Instituto de Psicologia da USP

Helena Kon –  Psicanalista e Mestre em Psicologia Clínica PUC-SP

Profa. Helena Bastos – Departamento de Artes Cênicas ECA-USP

Maria Tendlau –  Orientadora de Arte Dramática do TUSP

Francisco Serpa Peres – Orientador de Arte Dramática do TUSP

Eduardo Bione – Doutorando em Literatura na UnB;

Camila Chahud Sabsud – Graduanda de Psicologia do IP-USP

Jorge Vítor Guimarães Santos – Graduando de Psicologia do IP-USP;

Letícia Alves Draghi – Graduanda de Fonoaudiologia-USP;

Luis Augusto Santos Silva – Graduando de Filosofia-USP;

Roberto de Freitas Soares – Graduando de Audiovisual ECA-USP.

Rafael Borsanelli – Instituto de Estudos Avançados da USP

Richard Klaus Meckien – Instituto de Estudos Avançados da USP

PODCAST 2: O SONO DO PAI

Neste episódio, leremos o conto “O Sono Do Pai”, de Eduardo Bione, sobre o impacto da ditadura militar nas relações de um filho com o pai, durante a vida e após a morte dele.
Após a leitura do conto, temos uma conversa com José Genoíno e Vera Paiva, ambos testemunhas oculares do período da ditadura militar – com mediação de Belinda Mandelbaum e Maria Tendlau, respectivamente do Instituto de Psicologia e do Teatro da USP. A partir da leitura e escuta do conto, os convidados traçam um panorama do período citado e suas refrações no tempo atual, de sequelas e repetições históricas.
Boa escuta.

O SONO DO PAI

 

Eduardo Bione

Ter um filho há de ser, sempre, um ato de resistência.
Julián Fuks, A resistência.

 

 

O silêncio da casa, talvez seja essa a principal lembrança dos anos de infância. No pouco mais de quatorze anos em que convivemos, talvez seja melhor trocar o convivemos por estivemos na mesma casa, o seu sono materializava quase sempre a sua presença. Para a minha percepção infantil, a situação era simples: seus plantões durante a madrugada lhe obrigavam a trocar a noite pelo dia; eu, como estudava pela manhã, dormia à noite. Assim, no final da tarde, nos víamos e, eventualmente, alguma troca de palavra. Mas essa aparente equação lógica não era tão simples assim, só me dei por isso anos depois. A regra familiar do “psiiiu, fale baixo, seu pai está dormindo”, para não lhe incomodar enquanto você descansava e se recuperava para mais outro plantão, acabou por silenciar quase tudo o que precisava ser dito. Às vezes penso que essa assincronia da vida familiar acabou, no final das contas, por tornar possível o nosso convívio. A simultaneidade da nossa presença no mesmo espaço e tempo não era das mais tranquilas, nossas diferenças de percepção nos acusavam e nos separavam mais que uma possível aproximação sugerida pelas nossas semelhanças físicas. Esse desconforto era ainda mais intensificado quando a sua presença, por algum motivo que exigisse a lei paterna a dar o seu veredicto, era convocada aos impasses da casa. Mas, a despeito das incompreensões de criança diante dos limites que se me impunham, era o silêncio quem, entre nós, ganhava corpo e morada com o avançar lento dos anos. Muita coisa se perdeu nesse espaço desabitado em que tudo poderia ter sido olho-d’água, fonte cristalina a minar. Assim, no espaço das possibilidades, sim, tudo poderia ter sido. Tudo preservado em estado de latência, em promessa de, em devir. Porém, na prática, a materialidade das nossas disposições, de um em relação ao outro, não avançava muito além da formalidade de nossos papéis. Das nossas tentativas de diálogo, dois solilóquios com a contundência de uma promotoria pública acabavam por se instalar já nos primeiros minutos de nossa fala. Eu a leste, você a oeste, simples assim. E dessa forma nos preservávamos das certezas um do outro. Essa escassez de tato foi-nos a relação possível, concluí ao receber o impacto da notícia de sua morte através de um telefonema numa madrugada de inverno longe da casa. Pensei que o luto, agora definitivamente materializado, de alguma forma já se havia instalado entre nós. Só consegui chorar um mês depois. Um aluno, no meio de um café depois da aula, na cafeteria da faculdade, me perguntou se alguma coisa tinha acontecido, pois as aulas de literatura tinham perdido um pouco do habitual entusiasmo. Sequer tive tempo de devolver a xícara à mesa e, no meio do gesto, o choro minou transbordando a conversa. Um ano até que eu pudesse retornar a casa e, de alguma forma, fechar o luto. Sozinho, de pé, diante do seu túmulo por quase uma hora em silêncio, me dei conta de que, talvez, aquele momento fosse o mais longo que já tivemos juntos, sem uma discussão. Pensei nas circunstâncias da sua morte, lamentei a precocidade de tudo, mas ao mesmo tempo procurei entender. Ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece. Esses versos não me saíam da cabeça o tempo todo em que ali estive. Já em casa, resolvi que encomendaria uma pedra com os versos. Uma forma de te assegurar promessa de luz. Ao anotar as informações na agenda para passar à casa mortuária, percebi a cronologia das coisas. Em preto e branco, a imagem borrada de uma fotografia perdida na infância voltou. Seu uniforme se impondo antes mesmo de qualquer expressão ser percebida no rosto daquele jovem de dezoito anos. Único meio de garantir alguma possibilidade de futuro para o menino que, aos quatorze anos, perdera o pai e tivera de assumir, junto com a mãe, a responsabilidade de alimentar uma fratria de oito irmãos. Sua entrada na aeronáutica deu-se assim, sem escolhas, único caminho possível ao arrimo que, a partir dos dezesseis anos, passara a ter direito a uma ração maior que os irmãos para conseguir desenvolver bem o corpo e, com alguma sorte, ser selecionado na primeira hora do alistamento. Mas o ano de sua entrada, e disso só me dei conta ao escrever o seu nascimento na agenda, foi no olho do furacão. Tempo de suspensão total do Estado de direitos. Do seu sonho de um dia ser engenheiro aeronáutico soube indiretamente pela sua insistência, anos depois, em me convencer a retomar os passos que as circunstâncias violentamente lhe interromperam. Não sei exatamente o que se passou nos seus dois anos de caserna, mas, pela sua saída, deixando para trás o seu sonho de uma carreira profissional, pelo seu engajamento na militância política, no movimento sindical, pelo seu entusiasmo na campanha pelas Diretas já, que, criança, pude ver de perto, sei que aqueles anos não lhe foram nada fáceis. Quando, já no doutorado, comecei a estudar textos escritos pelos que viveram os anos de chumbo, passei a identificar as semelhanças dos efeitos pós-traumáticos das personagens daquelas narrativas e o conjunto de fragmentos guardados numa nebulosa da memória infantil. Realizei que o seu primeiro surto psíquico acontecera sete anos após o fim do regime e, mais importante, até ele acontecer, vários sinais foram dados e nós simplesmente não entendíamos o que se passava. Seu sono se alargava mais e mais. O diagnóstico de uma depressão profunda pegou todos de surpresa. Duas tentativas de suicídio se seguiram. E seu silêncio parecia querer nos poupar das barbáries do arbítrio. As reações do seu inconsciente durante o sono denunciavam a força do rio subterrâneo que você tentava conter. As frases repetidas em pavor durante o surto confirmavam a violência que você sofrera. Mas tudo isso, quando aconteceu, não fazia sentido algum para mim. Só pude elaborar e ressignificar esses fragmentos no momento em que anotei aquele ano de nascimento na minha agenda. Até dessa informação primária – sua idade e, consequentemente, sua localização no tempo – o silêncio do sono me privou. Não tinha cabeça para entender o que se passava, os fatos apenas se acumulavam de forma fragmentada, um após o outro, diante dos olhos de uma criança atônita, que via a imagem de um homem imenso e forte – o mais forte do mundo! – ser estilhaçada dia após dia. Passada a efêmera euforia da campanha por uma anistia problemática, passada a movimentação do engajamento pela reabertura democrática, o peso das ruínas acumuladas nesse permanente tempo de exceção em que vivemos não demorou a lhe aniquilar. Foram quarenta anos de luta quotidiana vitoriosa contra os seus algozes. Até que, no meio duma noite de inverno, rompendo o silêncio do exílio, o meu telefone tocou.

O Estado brasileiro pode não ter apertado o gatilho, mas hoje sei que foi ele quem pôs a arma na sua mão.

Desperto do longo sono, agora o teu voo é livre.

Primavera, 3 de novembro de 2020.

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Nesta imagem, aparece de costas para a câmera um agente de estado armado observando a passagem de uma família com crianças, durante o período da ditadura militar. Uma das crianças carrega um brinquedo (como em oposição à arma que o agente carrega), enquanto os adultos caminham indiferentes à presença do agente. A outra criança observa o homem e nos convida a refletir sobre o sentido de seu olhar. Em diálogo com a leitura do conto e a escuta do podcast, o olhar da criança na imagem é tomado aqui como síntese de um dos conflitos mobilizados neste episódio, a saber, o de como as gerações posteriores ao período do regime militar têm lidado (ou não) com esse legado traumático.

A imagem em questão é uma fotografia de família, de um pai acompanhado de sua filha. Trata-se do já falecido Rubens Beyrodt Paiva, que havia sido engenheiro civil e deputado federal, e de sua filha Vera Paiva, hoje psicóloga, professora de Psicologia Social na USP e uma das convidadas deste episódio do podcast. O aparente registro de um momento feliz em família ganha outro tom quando se toma em consideração que a filha não teria muito tempo com o pai. Afinal, Rubens Paiva foi preso, torturado e morto por agentes do estado, no contexto da ditadura militar. Esse foi um lamentável e trágico episódio para a política brasileira e especialmente para a família de Rubens, como parte do conjunto de consequências devastadoras produzidas pelo regime militar.

 

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