PODCAST 7: INFÂNCIAS

Neste podcast voltamos ao passado, para acompanhar a história de um personagem que representa o Brasil: o imigrante. Busca de melhores condições de vida, fuga das guerras e da fome, encanto com a “terra prometida” dentre outras razões fazem com que a trajetória do protagonista cruze com a de tantos outros que vieram para este país no século XX. E a persistência das tradições, somada a uma iminente nostalgia da terra natal prendem esses personagens a dois mundos: ao da memória e ao da vida real. O texto tem a narração artística da atriz convidada Dora Wainer. Em seguida, temos uma conversa acerca dos temas da imigração com a Prof. Dr. Maria Luíza Tucci Carneiro, do Departamento de História da Universidade de São Paulo, que desenvolve pesquisas sobre a questão dos direitos humanos, intolerância, antissemitismo, etnicidade, escravidão, censura , nazismo e imigração judaica para o Brasil.

Boa escuta.

INFÂNCIAS

Alfredo Schechtman

Meu avô paterno imigrou para o Brasil na segunda metade da década de 1910, ainda rapaz bem jovem, fugindo da pobreza e dos sucessivos pogroms, em busca de oportunidades em um contexto menos opressivo do que o da Europa oriental.

Ele veio da Bessarábia (então romena, numa região em que as fronteiras se deslocavam constantemente); mais tarde, já razoavelmente estabelecido em terras tropicais, primogênito de uma prole numerosa, conseguiu trazer a maior parte da sua família, entre seus irmãos e irmãs.

Ainda em meados dos anos 20, percorrendo por uma única vez o caminho inverso, retornou à cidade natal para casar e voltar com minha então muito jovem avó; talvez fosse um casamento arranjado entre as famílias, como era de costume, mas disso não tenho certeza.

Nos anos de 1930, já em plena ascensão do nazismo alemão e seus tentáculos pelo território europeu, ele e os irmãos conseguiram trazer para cá o patriarca da família, em idade avançada, mas essa iniciativa foi malograda pela dificuldade absoluta que o pai encontrou em adaptar-se e experimentar novos ares àquela altura da vida, levando-o a retornar para um previsível desenlace dramático.

Para imigrantes judeus daquela época, egressos de um contexto de permanentes manifestações explícitas de antissemitismo, a chegada em novas terras americanas era percebida como promissora e potencialmente livre da pesada carga europeia.

No começo da jornada de meu avô por estas terras, quando ele aqui chegou, e como era frequente, ele foi recepcionado por um primo que o precedera e o albergou inicialmente, assim como lhe apontou a possibilidade do trabalho como prestamista de porta em porta. Como não falava o idioma local, nos primeiros tempos meu avô ateve-se a circular pela vizinhança imediata de sua moradia para tentar vender seus produtos, chegando a levantar suspeitas na vizinhança de que se tratasse de um olheiro para algum amigo do alheio, segundo conta a lenda familiar.

No seu novo país, como era uma pessoa bastante comunicativa, fazia-se entender por todos, ainda que sem dominar por completo a língua portuguesa nos mais de cinquenta anos em que aqui viveu. Já minha avó era seu oposto, com facilidade e fluência em vários idiomas.

Um fato da biografia de meus avós que sempre me pareceu quase inacreditável foi a ida deles para o interior de Minas Gerais, mal chegados ao Brasil, não sei como conseguiam se comunicar e ganhar a vida. Foi a perspectiva do nascimento do primeiro filho (meu pai) que os trouxe de volta ao Rio, pela necessidade que sentiram de ter um ambiente judaico aonde criar a nova família.

Meu avô não era um homem estritamente religioso, mas muito afeito à cultura judaica em seu sentido mais amplo. Em sua casa, o ídiche era a língua cotidiana predominante. Aquela geração nos transmitia uma vontade de encarar os desafios que se apresentassem, valorizando os laços de amizade e a participação comunitária. Essa herança nos foi legada.

Meus avós frequentavam o círculo local de escritores judeus (mais que escritores, eram leitores vorazes). Lembro-me de ser motivo de humor familiar a presença de uns banquinhos de madeira de três pernas que meu avô havia comprado para receber os amigos desse grupo de escritores, todos já em idade avançada para uso dessa peça de mobiliário de precário equilíbrio e grande desconforto. Sei também que durante um bom período o grande debate do grupo foi sobre qual dos dois irmãos Singer era melhor escritor; sempre saía vencedor Israel, e não Isaac (este ainda não era um Nobel).

Quando criança, meu avô me contava, fora enviado pela família muito pobre para estudar em outro shtetl, na verdade uma aldeia pouco maior que a sua, frequentando o cheder (escola judaica) e, em seguida, o seminário rabínico (yeshivá); comia a cada dia em uma casa diferente da comunidade, recurso comunal que permitia aos jovens sem recursos prosseguir seus estudos. A mim causava forte impressão sua evocação do trajeto percorrido entre estas cidadezinhas, com a presença constante da neve e de lobos das estepes de sua infância.

A casa de meus avós era o ponto de encontro de nossa família nas sextas-feiras à noite, nossos shabats, quando junto com tios e primos nos reuníamos para jantar e passar parte da noite juntos; as crianças, costumávamos encenar alguns pequenos esquetes cômicos de nossa própria lavra.

Como mais velho dos seus sete netos, desfrutei mais tempo da sua convivência; íamos muitas vezes fazer a feira aos domingos, comprar legumes e frutas. Chegando em casa, meu avô comia uma cebola crua inteira, hábito adquirido após sua primeira e inolvidável visita ao novo estado de Israel. Viagem aquela que durou três meses, de navio, com despedida e acolhida por todos da família no cais do porto da praça Mauá.

Ele nunca teve muitas habilidades práticas para ganhar a vida, cheio de planos mirabolantes e pouco retorno prático; iniciou vários negócios que produziram poucos frutos. O mais incrível foi a fabulosa compra de uma fábrica de geladeiras tradicionais (caixas de madeira com serragem onde eram colocadas barras de gelo para o resfriamento), um negócio potencialmente da China, se não coincidisse com o início da produção industrial de geladeiras elétricas. Não que não trabalhasse sempre, mas quem provia o sustento com maior regularidade era minha avó como professora de hebraico em escolas judaicas do Rio de Janeiro.

O que permanece, tantos anos depois, é a forte sensação de que meu avô e eu passeamos juntos nossa infância, seja nas longínquas estepes da Bessarábia, seja nas excursões cariocas aos domingos.


VEJA MAIS:

Navio de emigrantes  – Lasar Segall (1939/41)

Esta obra monumental de Lasar Segall foi concluída em 1941, no contexto do totalitarismo nazifascista e dos milhões de fugitivos do Holocausto.
Segall era ele próprio um judeu lituano, que emigrou para o Brasil em 1923, aonde já se encontravam alguns familiares, após ter participado do movimento expressionista na Alemanha e vivenciado de perto os primórdios do nazismo.
O tema da obra se articula com os processos migratórios em que grandes massas judaicas da Europa Oriental se deslocaram para as Américas.

Filme: KLEZMER (2015) , de Piotr Chrzan

Em 1943, a Polônia já está está sob ocupação alemã. Durante o verão, um grupo de jovens vão à floresta para pegar madeiras para uma fogueira. O momento é tomado por conversas sobre sonhos e planos para o futuro. O que eles não imaginavam era que, de uma hora para outra, o passeio teria uma consequência inesperada que mudaria suas vidas para sempre.

 


LEIA MAIS:

Histórias de avô e de avó. Arthur Nestrovski. Companhia das Letrinhas. 1998. Escrito pelo crítico e professor de música Arthur Nestrovski, Histórias de avô e avó integra a coleção Memória e História, voltada basicamente para o passado brasileiro e para as diferenças e semelhanças entre os inúmeros grupos que constituem a população do país. Neste livro, de cunho autobiográfico, Arthur fala de sua família, formada por imigrantes russos de origem judaica.

Imigrantes e mascates. Bernardo Kucinski. Companhia das Letrinhas. 2016.. Quando a Alemanha invadiu a Polônia no dia 1o. de setembro de 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial, Bernardo Kucinski estava prestes a completar dois anos de idade. Sua mãe, polonesa, tinha chegado ao Brasil havia apenas quatro anos e mal falava português. Neste livro, o autor conta sobre a sua infância no bairro da Água Fria, em São Paulo, a descoberta dos livros, a influência de seu pai em sua vida e, entre outros temas, sobre as dificuldades enfrentadas por uma família judaica em um dos períodos mais conturbados da história

Desterro: memórias em ruínas. Luis S. Krausz, Tordesilhas, 2011.O autor, educado num ambiente fortemente marcado pelo respeito à tradição judaica e à cultura de língua alemã, é neto de imigrantes judeus do antigo Império Austro-Húngaro, que se desintegrou com a Primeira Guerra Mundial. Seu livro é um percurso saudoso desses tempos de glória, aos quais seus avós se apegam com quase desespero. Cabe ao narrador, descendente de uma família de judeus austríacos desterrados em São Paulo, retratar seus parentes nesse novo meio.

Negócios e Ócios: histórias da imigração. Boris Fausto, Companhia das Letras, 1997.Incursionando pela primeira vez no memorialismo, em Negócios e ócios o historiador e cientista político Boris Fausto recria a história de sua própria família, que, como tantas outras, aportou nas Américas durante as primeiras décadas do século passado em busca de melhores condições de vida. Ao focalizar seu núcleo familiar, de extração judaica, Boris Fausto acaba homenageando todas as famílias de imigrantes que refundaram suas raízes
na cidade de São Paulo.

Entre Moisés e Macunaíma. Moacyr Scliar e Marcio de Souza, Garamond, 2011.Uma crônica da presença judaica no país que é fruto da colaboração de Márcio Souza, descendente dos antigos Bentes de Manaus, e Moacyr Scliar, filho da onda migratória que se instalou em Porto Alegre nos primeiros anos do século XX. Combinação perfeita: de Norte a Sul do Brasil, asquenazis e sefaradis dos quatro cantos do planeta aportaram ao longo dos séculos e aqui se instalaram, produziram, cresceram e se multiplicaram.

Os judeus no Brasil: estudos e notas. Nachman Falbel, Humanitas e EDUSP, 2008.Nos últimos anos tem crescido o número de estudos sobre a história dos judeus e do judaísmo no Brasil, e a criação do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, do qual o autor foi um dos fundadores, contribuiu para a sistematização das pesquisas e para sua publicação. Este livro contém uma coletânea significativa de estudos de Nachman Falbel que foram publicados nos últimos trinta anos em diferentes periódicos científicos, revistas e coletâneas acerca do tema.

Aventuras de uma língua errante. Jacó Guinsburg, Perspectiva, 1996.

J. Guinsburg se debruça sobre o ídiche, língua que se formou no século X e que servia como intercomunicação do dia-a-dia, já que o hebraico – língua sagrada – era usado para a comunicação com a divindade, desvendando ante nossos olhos as ricas produções que dela se originaram no campo da filosofia, literatura, arte e política.

OUÇA MAIS:

Tumbalalaika (Thedor Bikel canta)

Shteyt a bocher, shteyt un tracht,
tracht un tracht a gantze nacht.
Vemen tsu nemen un nit far shemen,
vemen tsu nemen un nit far shemen.
Tumbala, tumbala, tumbalalaika,
Tumbala, tumbala, tumbalalaika
tumbalalaika, shpiel balalaika
tumbalalaika – freylach zol zayn.
Meydl, meydl, ch’vel bay dir fregen,
Vos kan vaksn, vaksn on regn?
Vos kon brenen un nit oyfhern?
Vos kon benken, veynen on treren?
Narisher bocher, vos darfstu fregn?
A shteyn ken vaksn, vaksn on regn.
Libeh ken brenen un nit oyfhern.
A harts kon benkn, veynen on treren.

Tradução

O rapaz está quieto, quieto e pensando.
Pensa e repensa a noite toda em
como se declarar sem passar vergonha
como se declarar sem passar vergonha.
tumbala, tumbala, tumbalalaica
tumbala, tumbala, tumbalalaica
tumbalalaica, toque balalaica
tumbalalaica – e seja feliz.
Garota, garota, quero te perguntar
O que pode crescer, crescer sem chuva?
O que pode queimar sem parar?
O que pode ter saudade, chorar sem lágrimas?
Rapaz tolo, prá que perguntar?
Uma pedra pode crescer, crescer sem chuva.
O amor pode queimar sem parar.
Um coração pode ter saudade, chorar sem lágrimas.

Dona, Dona:

Efim Chorny – Oyfn veg shteyt a boym

Margaritkelekh

 Gib Mir Bessarabia

Leonard Cohen – Un As Der Rebbe Zingt 

Mentshn-freser – a Yiddish theater song about tuberculosis, polio, and war

אכציק ער און זיבעציק זי

Akhtsik er un zibetsik zi

S’iz haynt akurat gevorn fuftsik yor
Az zey lebn in eynem, dos alte por:
Zey hobn zikh geeltert -kukt aykh tsu!-
Akhtsik er un zibetsik zi
Khotsh der zeyde mit der bobe zaynen kurts un kleyn
Nor der zeyde mit der bobe zaynen mole kheyn:
Er mitn shpitsekhdikn berdele, mitn goyderl zi
Akhtsik er un zibetsik zi
Got hot zey mit oysher un koved baglikt
In lebn hobn zey zikh keyn mol nisht gekrigt:
Nor “Notele,” nor “Bobele” rufn zey zikh tsu
Akhtsik er un zibetsik zi
Der oylem hot genumen tsu bislekh vayn
Un dem zeydn mit der boben in rod arayn
Di eyniklekh hobn gepliesket tsu
Akhtsik er un zibetsik zi
Azoy hobn zey gehulyet biz a halber nakht
“Bobele” -zogt der zeyde- “A gute nakht!
Shlof mir gezunt un dek zikh gut tsu”
Akhtsik er un zibetsik zi

He eighty and she seventy

Today it’s been precisely fifty year
That they’ve been living together, this old pair
They’ve aged, look at them!
He eighty and she seventy
Although Grandpa and Grandma are short and small
Grandpa and Grandma are graceful
Him with the pointed goatee beard and her with the little double chin
He eighty and she seventy
God has rejoiced them with riches and honor
In their whole life they’ve never fought
And have called each other only “Notele” and “Bobele”
He eighty and she seventy
Everybody took sips of wine
And drew Grandpa and Grandma in the circle
The grandchildren clapped their hands
He eighty and she seventy
Thus have they rejoiced for half a night
“Grandma”, says Grandpa, “Good night
Sleep healthy and cover yourself well”19
He eighty and she seventy