PODCAST 6: RUA MAESTRO ELIAS LOBO, 406

Nesse sexto episódio do Podcast Fabulações da Família Brasileira vamos adentrar o cotidiano de uma família paulistana nos anos 60, com todas as suas arquiteturas – as sociais e as estruturais – que determinaram o modo de vida de grande parte da população nesta década. Memória e construção histórica fazem o tecido dessa narrativa reviver, por vezes de forma árida e crua, o cotidiano da narradora, que empresta sua voz para a própria narrativa. Em seguida, uma conversa com Angelo Bucci, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, amplia o pensamento sobre o espaço da casa e sua repercussão na estrutura familiar do Brasil.

Boa Escuta!

Rua Maestro Elias Lobo, 406

Ana Sofia Schmidt Oliveira

Na casa da minha infância, os territórios eram bem demarcados.

Na sala da frente estava o temido sofá de veludo vermelho. Tento pensar nele como apenas… um sofá, mas ele se impõe simbolicamente, com sua austeridade e sisudez. Não se tratava, de forma alguma, de um sofá desses em que a gente se joga ao chegar em casa: exigia compostura. Não sei quais eram suas medidas, mas quem ali se sentava ficava menor do que era. Nós, os filhos, quando convocados para uma “conversa no sofá vermelho”, éramos reduzidos ao tamanho da nossa fragilidade. Pequenas Alices. Coração disparado, olhos fixos no chão. Medo. O sofá agia como a longa manus da autoridade paterna.

A sala da frente era o espaço mais solene da casa. Eventualmente, alguma irmã mais velha recebia ali um namorado. Mas o sofá vermelho não poderia jamais ser cúmplice do desejo adolescente. Com que constrangimento desempenhei eu o papel de guardiã dos bons costumes ocupando a almofada do meio, sendo o muro da fronteira, impedindo que mãos mexicanas avançassem sobre as preciosidades escondidas na América do Norte.

Entre a sala da frente e a seguinte, em um hall que dava acesso à sala de jantar e à escada que levava ao andar superior, foi instalado, em meados dos anos 70, um equipamento que virou atração turística.  A mesa de som feita de aço trazia a grife “Josias Studio”, indicativa de status nas sociedades carioca e paulistana. A empresa, fundada no Rio na década de 50, chegou a São Paulo em 1974.  Gravador de rolo, toca discos, amplificador, caixas acústicas, um revestimento espelhado. Embora a tal mesa de som fosse um sopro de modernidade, na minha lembrança ela se submetia à autoridade do sofá vermelho.

A sala de jantar. À mesa sentavam-se pai, mãe e filhos maiores. E algum convidado – geralmente, um dos padres amigos da família. Sob a mesa de jacarandá maciço, o tapete persa. Seu imenso valor, real ou imaginário, ensejava severas advertências. “Presta atenção!” “Cuidado com o tapete!”. O medo de derrubar um grão de arroz que fosse transformava aqueles dois ou três metros que separavam as travessas de comida do meu lugar à mesa num campo minado. Passos tensos e cautelosos. Um equilibrista na corda bamba. Sem rede de proteção.

Não lembro ao certo com que idade pude – eu, a caçula – ocupar um lugar à mesa dos adultos. Sete ou oito anos? A promoção, da copa para a sala, exigia o domínio dos bons modos. Segurar corretamente os talheres, apoiar apenas os punhos na borda da mesa, tomar sopa e mastigar sem produzir qualquer ruído; para que se aprendesse a não “abrir as asas”, isto é, não afastar os cotovelos do corpo, era colocado um talher nas axilas. Se caísse, ainda não era hora de passar para a mesa dos adultos. Na copa, em tudo mais amigável, não se rezava antes das refeições como se fazia à mesa grande; talvez a vida de criança fosse já uma oração. Mesmo assim, a promoção não deixava de ser um desejo infantil. Um desejo de fazer parte sempre presente na minha vida, pelo qual paguei preços variados.

Depois da sala de jantar com seus móveis austeros, o jardim de inverno. Um bar, um sofá, a poltrona do meu pai, uma cadeira de couro modernosa, pufes, a mesa de mármore ao centro. E um tapete que não dava medo. Ali, minha mãe, elegante e sempre sociável, fumava usando piteira, tomava whisky e recebia amigos (as bitucas maiores eram preciosidades para as empregadas – e para mim, quando quis descobrir como fumar). Falava-se de política, o golpe de 64 era chamado de revolução. Durante muitos anos aquele era, para mim, o território dela, de minha mãe. Depois, quando meu pai passou a viajar menos por ter vendido as fazendas, era ele quem ocupava aquele espaço que, diante de sua severidade, foi deixando de ecoar risos e conversas. Era um silêncio pesado que reverberava de sua poltrona.

Na parte de cima da casa, os quartos. No primeiro, dormiam as duas irmãs que me antecediam em idade, o do meio era do meu irmão, único menino dentre os seis filhos. As duas irmãs mais velhas ocupavam o terceiro. Havia um outro, onde ficava a rouparia, ligado à suíte dos meus pais por um pequeno corredor. Esse quarto de passagem, além de ser rouparia, era o meu. À noite, um ouvido tentava captar o que se passava nos quartos dos irmãos; o outro, o que se passava no quarto dos meus pais.

Atravessando uma espécie de ponte que fazia a ligação da casa com a construção dos fundos, chegava-se a um escritório amplo, o “salão”. Uma escada de madeira levava à garagem. Ali estava a pequena oficina do meu pai. Ele gostava de armas, revólveres, espingardas e facas. Gostava de limpá-los. Gostava de trabalhar com couro. Fazia cintos, coldres e bainhas. Não sei se era porque sua arte precisava ser vista, não sei se era porque ele precisava de companhia. Não sei era por maldade ou por amor. Só sei que muitas vezes eu era convocada para ficar ao lado dele. O tempo era infinito, o ar era pesado. Úmido. Cheiros misturados, óleo lubrificante e couro. De pé, sem tocar em nada, calada, encostada no batente da porta daquele quartinho, sem poder contestar a convocação, passaram-se as horas mais longas da minha infância.

Nos fundos da casa, no alto, a caixa d’água. Chegar exigia esforço. Ali, deitada no cimento, olhando o céu, assistindo o desfile de todas as coisas em forma de nuvens, eu era feliz. Observava os pássaros e tinha certeza de que, se observasse bem, aprenderia a voar.

Cheguei à idade que meu pai tinha quando morreu em 1984. Temos hoje, ele e eu, 57 anos. Por isso, posso falar para ele que me cansa ter que assistir enquanto ele trabalha com o couro e limpa as armas. Posso falar, quando ele me chama para uma conversa no sofá vermelho, que prefiro conversar com ele na mesa da copa, tomando um vinho. Posso convidá-lo, quando ele está sisudo em sua poltrona, para passear no jardim. Posso mostrar para ele a caixa d’agua em que eu me perdia em devaneios quando era criança e perguntar: “E você, quais eram os seus sonhos? Será que ainda posso realizar algum deles?”

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Filme Aquário

Clara (Sonia Braga), uma viúva de 65 anos que é a última moradora do edifício que dá título à obra, na orla da praia de Boa Viagem, no Recife. No decorrer do filme, acompanhamos o dia a dia da protagonista, sua relação com seus amigos e familiares, e a investida de uma construtora que pretende comprar o prédio a todo custo, visando erguer um mais moderno no local. Assim, o longa-metragem aborda temas como especulação imobiliária, passagem do tempo e memórias, e discute ideias preconcebidas sobre a vida e sexualidade de uma mulher na terceira idade.

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Filme A Vida Invisível

Baseado no livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, da escritora Martha Batalha, o filme conta a história de duas irmãs no Rio de Janeiro de 1950. Guida é uma mulher de ímpeto que busca o amor e uma vida mais livre; Eurídice deseja se tornar uma pianista profissional. Entretanto, no decorrer do filme vemos a união das irmãs ser irremediavelmente rompida e o sonho de cada uma delas ser eclipsado pela força da família e da sociedade patriarcal. No longa, temas como maternidade solo, obrigatoriedade do casamento, maternidade compulsória, relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, prostituição, conservadorismo na família e histerização feminina são abordados com muita sensibilidade, demonstrando todo o impacto nocivo da moral familiar sobre os corpos e mentes da mulheres – impacto este que atravessa gerações e mostra seus horrores até os dias de hoje

 

Em “The Perverted Guide to Vinema”, o filósofo Slavoj Zizek oferece uma leitura psicanalítica crítica de diversos filmes. Dentre eles, ao analisar o filme Psicose, de Alfred Hitchcock (1960), ele faz uma analogia entre os níveis da casa e a organização do aparelho psíquico, tal como proposta por Freud: Id – Ego – Superego. O trecho em questão está entre os minutos 08:39 a 11:35.

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Isidoro Berenstein – Familia Y Enfermedad Mental

A Lógica do Condomínio ou: o Síndico e seus Descontentes Christian Ingo Lenz DunkerRevista Leitura Flutuante – Volume 1

A Natureza do Espaço – Milton Santos

Tudo Sobre a Casa – Anatxu Zabalbeascoa

Gaston Bachelard – A Poética do Espaço

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