PODCAST 10: GEMADA DE QUATRO OVOS

No décimo episódio do Fabulações da Família Brasileira mergulhamos nas memórias gastronômicas de uma família rural, e suas reminiscências sobre um prato que existe praticamente em todo o Brasil: a gemada. Porém, tão diversa como a  população desse imenso país, a gemada muda conforme as regiões onde ela é preparada. A questão levantada e que depois é discutida com a professora Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo, da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará do Campus de Ananindeua, trata justamente da diversidade gastronômica e suas infinitas variedades no país. Acompanhe essa história saborosa, e descubra qual a sua gemada.
Boa escuta.

GEMADA DE QUATRO OVOS

Bianca Giordana Zaniratto

Tudo começou na granja perto de casa. O prédio imponente, com letreiro prateado gigante, comprova que o ovo, alimento versátil e relativamente barato, ainda é unanimidade nos lares brasileiros. Além dos caminhões-baús com caixas até o teto, responsáveis por levar a maravilha para além da região, há uma loja improvisada para atender a demanda do bairro.Pois bem, estou eu a comprar a bandeja semanal de ovo tipo jumbo, jumbo porque, se tiver alguma sorte, um ou dois dos 30 ovos serão contemplados com duas gemas e não há maior júbilo nesta vida do que a felicidade de quebrar a casca e testemunhar as duas gemas estalando na frigideira logo cedo.Enfim, as visitas infalíveis ao estabelecimento renderam certa intimidade coma moça responsável pela venda miúda no centro de distribuição de ovos. Do tipo mignon arretada, há tempos saiu do Sertão dos Inhamuns para tentar a vida em alguma terra que manasse leite e mel.No vai e vem da prosa, ela confidenciou-me que apreciava gemada. Era sagrado fazer para ela e as filhas, toda semana. Eu, na minha mimadice de garota paulistana, já visualizei mamãe batendo com vigor as gemas no fundo do copo, misturadas ao achocolatado. Em casa, a meleca levava leite fervente e era engolida com prazer por mime por meus irmãos menores.“Não”, ela me disse, dissipando meus pensamentos de guria. “Minha gemada é a legítima.” Aquilo mexeu com meus brios e quis mais detalhes. “Eu bato bem as claras. Depois, coloco as gemas e um bocadinho de polvilho doce e açúcar. Lambo os beiços.” Paguei minha bandeja com os trinta ovos jumbo da semana e rapidamente fui bisbilhotar na internet essa tal gemada diferentona. Batata, lá estava: “gemada tradicional”. Na próxima ida à casa de mamãe, antes mesmo dos cumprimentos habituais, já sentenciei: “Mãe, a gemada que você fazia para a gente não é a verdadeira”. Minha avó, sempre atenta às conversas, já emendou: “Gemada tem de ser com polvilho doce. Quando trabalhava na fiação, lá em Alvinópolis, levantava às 4h e fazia uma gemada com quatro ovos. Dava uma pratada. Que absurdo!”, relembrou, às gargalhadas. Pronto, enigma desvendado.
1945. Zona rural de Alvinópolis. 4h. Minha bisavó, que eu conheci no fim da vida, já em São Paulo, despertava minha avó, então com 16 anos. “Pulava da cama, lavava o rosto e ia fazer minha gemada. Fazia com quatro ovos, uma pratada. Pegava meu tamanco, colocava na sacola e ia para o portão esperar a Rita e a Ana, que vinham de longe, do Carimba. Depois, passávamos na casa da Ana Zita, da Conceição, na rua de baixo. Ia juntando o bloquinho. Umas seis, sete moças, além do Vicente. Estava escuro ainda e quando chovia era lama até o joelho.”O turno matinal começava às 5h30, após todas lavarem devidamente os pés na torneira instalada na entrada da fábrica. Até as 9h30, trabalhadoras e trabalhadores dedicavam-se aos pavieiros, espuladeiras e às outras máquinas de fiação. “Voltava para casa, outra boa meia hora de caminhada, já levando o que faltava para mamãe fazer o almoço, um bom pedaço de carne bovina ou uma feta de toucinho.”Assim que chegava, a jovem já se armava com dois latões e descia até a mina d ́água para abastecer o tambor disposto ao lado da porta da cozinha. O líquido era usado nas demandas domésticas até o dia seguinte. Na casa de chão batido com sala-cozinha-dois-quartos moravam mãe e três filhos. Minha avó era a do meio. Antonio, o Gordo, irmão mais velho, lavrava a roça de milho e meneava dúzias de cabeças de gado do tio; e Zito, o caçula, ainda era criança. O pai morrera havia seis anos. A mãe, minha bisa, ganhava trocados fazendo costuras ocasionais na pequena Singer a manivela.Após o almoço, tocava à menina-arrimo pegar novamente a estrada rumo à antiga Fábrica de Tecidos do Rio do Peixe, para o turno vespertino, das 14h às 18h. Mais umas boas horas entre cardas, rolos de fitas de algodão, pavios e filatórios para fechar o expediente. Situada contígua a um resquício de Mata Atlântica, a fábrica, ainda hoje é força motriz da economia do município. O rasgão, como tratavam o curso d ́água, fonte de inspiração nos primórdios para nomear a fábrica, passava abaixo da casa e era onde instalara-se o banheiro da família: um trono vazado de madeira malemá protegido com tábuas para preservar integridade e intimidade do usuário, o qual tinha vista privilegiada dos peixes durante os trabalhos. À noite, as obras e demais sujidades encontravam repouso nos penicos, até serem devidamente devolvidas à cadeia alimentar.

Com a morte precoce do pai, coube a Antonio manobrar os dois irmãos menores. Desde cedo, Zito mal chegava da escola e já corria para candear os bois, em auxílio ao irmão mais velho. O menino ia na frente, para tocar a manada, e se chorasse de dor nas pernas recebia como resposta um cabo de guiada na cabeça.Certa feita, durante umas férias da fábrica, Gordo ordenou que minha avó trabalhasse para ele. A irmã fazia a comida, enchia os tabuleiros, acomodava-os na cabeça e seguia rumo à roça. Findado o período, recebeu um corte de pano que ganharia forma de vestido pelas habilidosas mãos da mãe, na velha máquina de costura. Passado um tempo, o irmão pediu o corte de volta, para presentear a namorada, Geni. A resistência da garota amainou assim que recebeu a ordem da severa mãe para devolver o tecido. Após sete anos na fiação e por volta dos 20 anos de idade, minha avó ouviu da mãe que não carecia de labutar mais com o algodão, pois estava com casamento marcado. A menina-que-ficou-sem-o-vestido, então, sem titubear, nunca mais percorreu a boa meia hora na estrada de terra rumo à fabril e logo seus pés já marcavam o barro da periferia da terra da garoa.As reminiscências dos tempos das Minas Gerais foram celebradas com uma boa pratada de gemada de quatro ovos, espumante, deliciosa, finalizada com um bocadinho de canela em pó. Mamãe não quis partilhar a iguaria.Acho que prefere a gemada fru-fru.

 


VEJA MAIS:

Richard Billingham é um fotógrafo, cineasta e professor de arte inglês. Um de seus principais trabalhos é o fotolivro Ray’s a Laugh (1996) que documenta a vida de seu pai alcoólatra e de sua mãe obesa. Essas fotos são tiradas desse livro e escolhidas em função de sua relação com a comida.

Julie & Julia (2009)

Julie & Julia é um filme norte-americano de 2009. O roteiro e a direção são de Nora Ephron, baseado em duas histórias reais. A de Julia Child (Meryl Streep), chef de cozinha americana, e Julie Powell (Amy Adams), uma escritora mal sucedida até então. A história é contada em dois eixos narrativos: a de Julia Child logo quando chega na França, com seu marido, na década de 40, e a de Julie Powell, moradora nova-iorquina que, décadas depois, cansada de seu trabalho monótono, cria um blog com o nome de Julie/Julia Project.
Julia Child é uma figura histórica de grande importância para o cenário da Gastronomia Mundial. Ela morou em alguns países devido ao trabalho de seu marido Paul. Quando esteve em Paris durante quatro anos, buscando algo para se ocupar, cursou a masculina escola de cozinha Le Cordon Bleu. Foi muito emblemática por popularizar a cozinha francesa nos Estado Unidos, sendo autora de livros sobre o assunto e apresentadora de um programa de TV, muito marcado por seu carisma e sua espontaneidade.

A Fuga Das Galinhas (2000)

A Fuga das Galinhas combina momentos de ação, suspense, comédia e romance. A história se passa numa granja no norte da Inglaterra, em meados dos anos 50, onde Ginger (Julia Sawalla), a líder do bando, tenta mil maneiras de escapar do lugar, com suas colegas. Quando está a ponto de fugir, surge o galo picareta, Rocky (Mel Gibson), que convence as galinhas da área de que ele é capaz de voar e, assim, vai ensiná-las a transpor a cerca da prisão/granja a caminho da liberdade.

Estômago (2007)

O filme Estômago é um suspense com pitadas de humor que conta, paralelamente, a história de dois assassinatos. O narrador é o personagem central, autor dos dois crimes, Raimundo Nonato. O protagonista é interpretado por João Miguel, que fez o marcante O Céu de Suely (Karim Ainouz) e o terno Cinema, Aspirinas e Urubús (Marcelo Gomes). O roteiro foi inspirado no conto Presos pelo Estômago, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, escrito por Lusa Silvestre. Trata-se do primeiro longa metragem do diretor Marcos Jorge, lançado em 2007. O site oficial diz que ”Estômago é a história da ascensão e queda de Raimundo Nonato, um cozinheiro com dotes muito especiais. Trata de dois temas universais: a comida e o poder. Mais especificamente, a comida como meio de adquirir o poder. E pode ser definido como uma fábula nada infantil sobre poder, sexo e culinária”.

A Festa De Babette (1987)

Na Jutlândia, península da Dinamarca, no século XIX, um pastor abnegado cria suas duas lindas filhas dentro de rígidos padrões religiosos e de desapego aos bens materiais. Uma delas atrai um oficial vaidoso e ambicioso, que abre mão dela em busca das glórias materiais. A outra encanta um cantor francês, que quer fazê-la uma grande cantora no circuito lírico; mas ela abre mão disso para se manter no seu vilarejo pobre e perdido naquele fim de mundo.

Ratatouille (2007)

Em Ratatouille, Remy (Patton Oswalt) é apenas um rato de esgoto que sonha em ser mais do que seu pai quer que ele seja. Um dia, inspirado por um programa culinário de um famoso chef francês, Gusteau (Brad Garrett), Remy parte em busco de usar suas novas técnicas culinárias para fazer com que sua família coma comida boa – segundo seu paladar. Porém, em um fatídico dia tentando fazer uma receita mirabolante com seu irmão, ele acaba fazendo com que sua família tenha que se mudar, acabando se separando dela nas redes de esgoto. Por sua sorte, a tubulação o leva a Paris, a cidade da gastronomia – e bem em frente ao restaurante do chef. Entrando no local para realizar um sonho, ele acaba conhecendo Linguine (Lou Romano), filho bastardo do renomado chef que acabou de ser contratado para limpar a cozinha. Em uma ideia mirabolante dos dois, Remy passa a ser o real “cozinheiro” que comanda Linguine embaixo de seu chapéu de chef, usando suas receitas e habilidades culinárias para que o menino reivindique o restaurante como herdeiro.


LEIA MAIS:

AMADO, Paloma Jorge. A comida baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Arcanjo com as merendas de Dona Flor. 1ª edição – São Paulo: Editora Panelinha, 2014.

 

ALENCAR, José de. Senhora. 4a. edição, Editora Melhoramentos.

 

FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. 4ª ed. ver. – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006.

 

AZEVEDO, Aluísio de. O Cortiço.16ª edição. Editora Ática. 1986.

 

______________. Casa de Pensão (1884). São Paulo. Ed. Martins. 1960.

 

CARVALHO, Marques de. Hortência. Ed. especial. Belém: Cejup/ Secult, 1997.

 

ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó, 1904

 

Stoker, Bram. Drácula: vol I Bram Stoker;trad: Adriana Lisboa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018

 

Macêdo, Sidiana da Consolação Ferreira de. A Cozinha Mestiça uma história da alimentação em Belém. (Fins do século XIX e início do século XX). PPGHIST. UFPA,  2016. p, 19.

http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/

SITE: https://www.daquiloquesecomeoficial.com/

 

O REI E A OMELETE
Walter Benjamin
(tradução de Leandro Konder)

Era uma vez um rei que tinha todos os poderes e tesouros da Terra, mas
apesar disso não se sentia feliz e a cada ano ficava mais melancólico. Um dia
ele chamou o seu cozinheiro preferido e disse: Você tem cozinhado muito bem
para mim e tem trazido para a minha mesa as melhores iguarias, de modo que
eu lhe sou agradecido. Agora porém, quero que você me dê uma última prova
de sua arte. Você deve me preparar uma omelete de amoras igual àquela que
comi há cinquenta anos, na infância. Naquele tempo, meu pai tinha perdido a
guerra contra o reino vizinho e nós precisamos fugir; viajamos dia e noite
através da floresta; chegamos a uma cabana, onde morava uma velhinha, que
nos acolheu generosamente. Ela preparou para nós uma omelete de amoras.
Quando a comi fiquei maravilhado: a omelete era deliciosa e me trouxe novas
esperanças ao coração. Na época eu era criança, não dei importância à coisa.
Mais tarde, já no trono, lembrei-me da velhinha, mandei procurá-la, vasculhei
todo o reino, porém não foi possível localizá-la. Agora, quero que você me
atenda a esse desejo: faça uma omelete de amoras igual à dela. Se você
conseguir, eu lhe darei o ouro e o designarei meu herdeiro, meu sucessor no
trono. Se não conseguir, entretanto, mandarei matá-lo.
Então o cozinheiro falou: Senhor, pode chamar imediatamente o carrasco. É
claro que eu conheço todos os segredos da preparação de uma omelete de
amoras, sei empregar todos os temperos. Conheço as palavras mágicas que
devem ser pronunciadas enquanto os ovos são batidos e a melhor técnica para
batê-los. Mas isso não me impedirá de ser executado, porque a minha omelete
jamais será igual à da velhinha. Ela não terá os condimentos que lhe deixaram,
senhor, a impressão inesquecível. Ela não terá o sabor picante do perigo, a
emoção da fuga, não será comida com o sentido alerta do perseguido, não terá
a doçura inesperada da hospitalidade calorosa e do ansiado repouso, enfim
conseguido. Não terá o sabor do futuro estranho e do futuro incerto.
Assim falou o cozinheiro. O rei ficou calado, durante algum tempo.
Não muito mais tarde, consta que lhe deu muitos presentes, tornou-o um
homem rico e despediu-o do serviço real.


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