PODCAST 2: O SONO DO PAI

Neste episódio, leremos o conto “O Sono Do Pai”, de Eduardo Bione, sobre o impacto da ditadura militar nas relações de um filho com o pai, durante a vida e após a morte dele.
Após a leitura do conto, temos uma conversa com José Genoíno e Vera Paiva, ambos testemunhas oculares do período da ditadura militar – com mediação de Belinda Mandelbaum e Maria Tendlau, respectivamente do Instituto de Psicologia e do Teatro da USP. A partir da leitura e escuta do conto, os convidados traçam um panorama do período citado e suas refrações no tempo atual, de sequelas e repetições históricas.
Boa escuta.

O SONO DO PAI

 

Eduardo Bione

Ter um filho há de ser, sempre, um ato de resistência.
Julián Fuks, A resistência.

 

 

O silêncio da casa, talvez seja essa a principal lembrança dos anos de infância. No pouco mais de quatorze anos em que convivemos, talvez seja melhor trocar o convivemos por estivemos na mesma casa, o seu sono materializava quase sempre a sua presença. Para a minha percepção infantil, a situação era simples: seus plantões durante a madrugada lhe obrigavam a trocar a noite pelo dia; eu, como estudava pela manhã, dormia à noite. Assim, no final da tarde, nos víamos e, eventualmente, alguma troca de palavra. Mas essa aparente equação lógica não era tão simples assim, só me dei por isso anos depois. A regra familiar do “psiiiu, fale baixo, seu pai está dormindo”, para não lhe incomodar enquanto você descansava e se recuperava para mais outro plantão, acabou por silenciar quase tudo o que precisava ser dito. Às vezes penso que essa assincronia da vida familiar acabou, no final das contas, por tornar possível o nosso convívio. A simultaneidade da nossa presença no mesmo espaço e tempo não era das mais tranquilas, nossas diferenças de percepção nos acusavam e nos separavam mais que uma possível aproximação sugerida pelas nossas semelhanças físicas. Esse desconforto era ainda mais intensificado quando a sua presença, por algum motivo que exigisse a lei paterna a dar o seu veredicto, era convocada aos impasses da casa. Mas, a despeito das incompreensões de criança diante dos limites que se me impunham, era o silêncio quem, entre nós, ganhava corpo e morada com o avançar lento dos anos. Muita coisa se perdeu nesse espaço desabitado em que tudo poderia ter sido olho-d’água, fonte cristalina a minar. Assim, no espaço das possibilidades, sim, tudo poderia ter sido. Tudo preservado em estado de latência, em promessa de, em devir. Porém, na prática, a materialidade das nossas disposições, de um em relação ao outro, não avançava muito além da formalidade de nossos papéis. Das nossas tentativas de diálogo, dois solilóquios com a contundência de uma promotoria pública acabavam por se instalar já nos primeiros minutos de nossa fala. Eu a leste, você a oeste, simples assim. E dessa forma nos preservávamos das certezas um do outro. Essa escassez de tato foi-nos a relação possível, concluí ao receber o impacto da notícia de sua morte através de um telefonema numa madrugada de inverno longe da casa. Pensei que o luto, agora definitivamente materializado, de alguma forma já se havia instalado entre nós. Só consegui chorar um mês depois. Um aluno, no meio de um café depois da aula, na cafeteria da faculdade, me perguntou se alguma coisa tinha acontecido, pois as aulas de literatura tinham perdido um pouco do habitual entusiasmo. Sequer tive tempo de devolver a xícara à mesa e, no meio do gesto, o choro minou transbordando a conversa. Um ano até que eu pudesse retornar a casa e, de alguma forma, fechar o luto. Sozinho, de pé, diante do seu túmulo por quase uma hora em silêncio, me dei conta de que, talvez, aquele momento fosse o mais longo que já tivemos juntos, sem uma discussão. Pensei nas circunstâncias da sua morte, lamentei a precocidade de tudo, mas ao mesmo tempo procurei entender. Ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece. Esses versos não me saíam da cabeça o tempo todo em que ali estive. Já em casa, resolvi que encomendaria uma pedra com os versos. Uma forma de te assegurar promessa de luz. Ao anotar as informações na agenda para passar à casa mortuária, percebi a cronologia das coisas. Em preto e branco, a imagem borrada de uma fotografia perdida na infância voltou. Seu uniforme se impondo antes mesmo de qualquer expressão ser percebida no rosto daquele jovem de dezoito anos. Único meio de garantir alguma possibilidade de futuro para o menino que, aos quatorze anos, perdera o pai e tivera de assumir, junto com a mãe, a responsabilidade de alimentar uma fratria de oito irmãos. Sua entrada na aeronáutica deu-se assim, sem escolhas, único caminho possível ao arrimo que, a partir dos dezesseis anos, passara a ter direito a uma ração maior que os irmãos para conseguir desenvolver bem o corpo e, com alguma sorte, ser selecionado na primeira hora do alistamento. Mas o ano de sua entrada, e disso só me dei conta ao escrever o seu nascimento na agenda, foi no olho do furacão. Tempo de suspensão total do Estado de direitos. Do seu sonho de um dia ser engenheiro aeronáutico soube indiretamente pela sua insistência, anos depois, em me convencer a retomar os passos que as circunstâncias violentamente lhe interromperam. Não sei exatamente o que se passou nos seus dois anos de caserna, mas, pela sua saída, deixando para trás o seu sonho de uma carreira profissional, pelo seu engajamento na militância política, no movimento sindical, pelo seu entusiasmo na campanha pelas Diretas já, que, criança, pude ver de perto, sei que aqueles anos não lhe foram nada fáceis. Quando, já no doutorado, comecei a estudar textos escritos pelos que viveram os anos de chumbo, passei a identificar as semelhanças dos efeitos pós-traumáticos das personagens daquelas narrativas e o conjunto de fragmentos guardados numa nebulosa da memória infantil. Realizei que o seu primeiro surto psíquico acontecera sete anos após o fim do regime e, mais importante, até ele acontecer, vários sinais foram dados e nós simplesmente não entendíamos o que se passava. Seu sono se alargava mais e mais. O diagnóstico de uma depressão profunda pegou todos de surpresa. Duas tentativas de suicídio se seguiram. E seu silêncio parecia querer nos poupar das barbáries do arbítrio. As reações do seu inconsciente durante o sono denunciavam a força do rio subterrâneo que você tentava conter. As frases repetidas em pavor durante o surto confirmavam a violência que você sofrera. Mas tudo isso, quando aconteceu, não fazia sentido algum para mim. Só pude elaborar e ressignificar esses fragmentos no momento em que anotei aquele ano de nascimento na minha agenda. Até dessa informação primária – sua idade e, consequentemente, sua localização no tempo – o silêncio do sono me privou. Não tinha cabeça para entender o que se passava, os fatos apenas se acumulavam de forma fragmentada, um após o outro, diante dos olhos de uma criança atônita, que via a imagem de um homem imenso e forte – o mais forte do mundo! – ser estilhaçada dia após dia. Passada a efêmera euforia da campanha por uma anistia problemática, passada a movimentação do engajamento pela reabertura democrática, o peso das ruínas acumuladas nesse permanente tempo de exceção em que vivemos não demorou a lhe aniquilar. Foram quarenta anos de luta quotidiana vitoriosa contra os seus algozes. Até que, no meio duma noite de inverno, rompendo o silêncio do exílio, o meu telefone tocou.

O Estado brasileiro pode não ter apertado o gatilho, mas hoje sei que foi ele quem pôs a arma na sua mão.

Desperto do longo sono, agora o teu voo é livre.

Primavera, 3 de novembro de 2020.

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Nesta imagem, aparece de costas para a câmera um agente de estado armado observando a passagem de uma família com crianças, durante o período da ditadura militar. Uma das crianças carrega um brinquedo (como em oposição à arma que o agente carrega), enquanto os adultos caminham indiferentes à presença do agente. A outra criança observa o homem e nos convida a refletir sobre o sentido de seu olhar. Em diálogo com a leitura do conto e a escuta do podcast, o olhar da criança na imagem é tomado aqui como síntese de um dos conflitos mobilizados neste episódio, a saber, o de como as gerações posteriores ao período do regime militar têm lidado (ou não) com esse legado traumático.

A imagem em questão é uma fotografia de família, de um pai acompanhado de sua filha. Trata-se do já falecido Rubens Beyrodt Paiva, que havia sido engenheiro civil e deputado federal, e de sua filha Vera Paiva, hoje psicóloga, professora de Psicologia Social na USP e uma das convidadas deste episódio do podcast. O aparente registro de um momento feliz em família ganha outro tom quando se toma em consideração que a filha não teria muito tempo com o pai. Afinal, Rubens Paiva foi preso, torturado e morto por agentes do estado, no contexto da ditadura militar. Esse foi um lamentável e trágico episódio para a política brasileira e especialmente para a família de Rubens, como parte do conjunto de consequências devastadoras produzidas pelo regime militar.

 

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PODCAST 1: FOI EM UM POÇO

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Neste primeiro episódio do podcast Fabulações da Família Brasileira apresentamos o conto “Foi em um poço” de autoria de Lorraine Carvalho da Silva. Nele, encontramos uma história que nos fala de uma época e de um lugar, de uma condição de vida e de uma subjetividade marcada pela repetição e pelo cansaço. As palavras da autora banham com sutileza e sensibilidade a rotina de Maria Jerônima em uma São Paulo dos anos 50. O palco dessa história é o próprio poço, e o protagonismo é dividido entre uma mulher, sua mania e sua dor. A condição feminina e negra da protagonista atravessa de ponta a ponta a narrativa, amarrando o cotidiano com os afazeres domésticos e a monotonia do lar.

No segundo momento do podcast, escutaremos uma conversa com duas psicanalistas: Maria Lucia da Silva, psicóloga e psicanalista, diretora do Instituto Amma Psique e Negritude; e Mariléia de Almeida, historiadora, escritora e psicanalista – com mediação de Belinda Mandelbaum e Maria Tendlau, respectivamente da psicologia e do teatro USP. Nessa conversa, disparada pela leitura e escuta do conto Foi em um poço, as pensadoras convidadas refletem e constroem sentidos em temas como o racismo, branquitude, literatura e psicanálise.

 

Boa escuta.

FOI EM UM POÇO

Lorraine Carvalho Silva

A data não sei precisar. Não foi possível preservar por completo nossas memórias. Posso dizer que era Brasil, São Paulo especificamente, nos anos de 1950. Exercício de aproximação. Algumas de vocês, talvez, se situem no incômodo da época e pela impossibilidade dos registros.

Mãe em 1915, tornou-se avó em 1939 e isso a distinguia de outras Marias Jeronimas de sua época. Casada, claro. Vida simples de muito trabalho em casa, limpar, cozinhar, lavar e passar, cuidar, arrumar, organizar, educar. Dia sim e o seguinte, por vezes, um pouco diferente, educar, organizar, arrumar, cuidar, lavar e passar, cozinhar, limpar. E seguia assim, em alternância na mesma rotina e com uma obsessão, a limpeza.

Fazendo jus à distinção dessa Maria Jeronima devo registrar sua impetuosidade com limpeza. A força do braço exposta pelas veias onde o sangue passa veloz e fervoroso. O suor. O esfregão. O sabão. E vai ao poço. Joga o balde. Puxa o balde. Enche o balde. Pega água. Equilibra na cabeça. A limpeza. Não está tão limpo. Mais limpeza. Esfrega mais. Mais sabão. Mais força. Mais água. E volta ao poço. Joga o balde. Puxa o balde. Enche o balde. Pega água. Equilibra na cabeça. Esfrega.

A obsessão de Maria Jeronima era comentada entre as vizinhas, entre a família. O marido não se incomodava. Quer fazer mais esforço, faça. É dever da esposa a limpeza. Até que gosto do cheiro do sabão.

Poço. Água. Sabão. Esfrega. Na realidade, a maior das rotinas de Jeronima era essa. Poço. Água. Sabão. Esfrega.

Ninguém sabia dizer quando esse vício se iniciara, nem mesmo Jeronima. Para ela, nascera assim. Esfregando. Uma memória de menina era o cheiro do sabão, o caminhar na rua de terra, o poço. Não lembrava dos pais, não havia convivido com eles, então não tinha como perguntar se sempre foi assim, se algo aconteceu para ser desse jeito, para ter essa mania. Mais nova, lamentava não ter conhecido os pais. Quando para pegar água do poço, já não necessitava de uma pilha de pedras para alcançar a corda, deixou de lamentar.

Cresceu entre a rua de terra, o poço e o cheiro de sabão. A limpeza excessiva a acalmava, ainda que não soubesse explicar o motivo de seu descontrole. Precisava limpar com força. Com raiva.

Refletindo, talvez fosse incontrolável a raiva que se tornava um vício na limpeza. Maria Jeronima pensava sobre isso e logo afastava o pensamento. De que adianta tanto pensar? O pensar não é limpo e não há jeito de organizar a mente não. Então, melhor varrer da cabeça e pronto. Esfrega mais, precisa ficar mais limpo. Ah, esse cheiro de sabão. A água está acabando.

Bota o chinelo. A idade já não permitia tanto agilidade, não por ser tão velha, mas por estar muito cansada. A filha já era mãe e ela viúva. O neto até que trazia alegrias, menino danado. Às vezes, acompanhava a avó ao poço, e mesmo na nova geração a obsessão pela limpeza era comentada. Ih, dizia a filha ao neto, a avó é assim mesmo, não fique importunando menino.

Caminhando na rua, ainda de terra, os olhos já não enxergam bem, mas o caminho é um velho conhecido para sua raiva. A raiva é uma velha conhecida de sua limpeza. Seguiu ao poço. Combustível da raiva. Saudades do cheiro de sabão. Um vício. Uma necessidade.

De uso coletivo, ficava furiosa quando deixavam o balde fora do poço. Passa bicho. Passa tudo. Agarra a corda. Os braços estão cansados desde o despertar às 5 da manhã à hora de dormir. Joga o balde. Sobe o balde. Pesado, se inclina.

Maria Jeronima não voltou para casa. A filha achou estranho. Será que parou na vizinha. Não é de fazer isso quando se prepara para esfregar. Pergunta aqui, pergunta ali. Nada. Vai ao poço. Curiosos seguem. O chinelo largado é familiar. Ilumina aqui. Lá no fundo do poço a filha encontrou uma dor. O enterro foi discreto. Ela iria querer assim.

Esbranquiçada de tão preta, a filha sempre achou que as esfregadas eram um desejo da mãe de sumir.

A pele de Maria Jeronima era uma marca. Cicatriz dolorosa que lhe causava uma raiva profunda. Por que preta? Precisava ser esfregada. Força no braço. Cheiro de sabão.

Limpa a dor. Água. Ela pensava e repetia e esfregava. Esfolava. Sangrava.

Esbranquiçada pela imposição do não ser por ser preta. Viveu com a raiva na força do braço sobre a pele. Dor de não caber no coração. Até que a compulsão do esfregar a tomou por inteira, quando então o fundo do poço magnetizou a gravidade de seu pesar.


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