“Trabalho e felicidade” na exposição Casas e Coisas do Museu do Ipiranga

Como amplamente noticiado em todo o país, o Museu Paulista da USP (Museu do Ipiranga) reabriu em 7 de setembro de 2022, totalmente restaurado e cheio de novas atrações. Entre as 11 exposições de longa duração, Casas e Coisas reúne objetos cotidianos para discutir a construção das identidades femininas e masculinas no ambiente doméstico. E tem uma sala especialmente dedicada a utensílios de cozinha.

Intitulada “Trabalho e felicidade“, a sala foi idealizada e produzida a partir das pesquisas de Viviane Soares Aguiar, Laura Stocco Felicio e Maria Eugênia Gomes, com a coordenação de Vânia Carneiro de Carvalho. Enfoca as relações entre as cozinhas domésticas, seus objetos, as práticas culinárias e a constituição de identidades e subjetividades das mulheres. Responsáveis pela nutrição da família por tanto tempo, elas também recebiam o dever de garantir a felicidade do lar – em especial, dos homens – por meio da administração da casa e da mesa. 

Com objetos do acervo do Museu Paulista, anúncios publicitários, fotografias e vídeos, a exposição se divide em sete núcleos:

A cozinha é teu lugar?
Uma marchinha de Carnaval da década de 1930, interpretada neste áudio pelo famoso artista da época Gastão Formenti, incitou a ideia deste núcleo, que procura mostrar como certos objetos moldaram (e foram moldados a partir de) uma identidade feminina vinculada a alusões à natureza e aos trabalhos culinários. Ao mesmo tempo que potes, bandejas e filtros ornados com flores, folhas e pássaros dão continuidade à construção de uma feminilidade associada à terra (em oposição a uma masculinidade ligada à cultura e à técnica), objetos de madeira como os rolos de massa e as colheres de pau, nas mãos das mulheres, servem até hoje como símbolos de força, braveza e comando perante a família – e as outras mulheres da casa. O multimídia “Memórias da cozinha” traz depoimentos de mulheres que deixaram registros de sua atuação como empregadas domésticas e cozinheiras (como Dona Risoleta, Carolina Maria de Jesus e Preta Rara) ou como uma dona de casa (Floriza Barboza Ferraz), interpretados em vídeo por atrizes do ColetivE Ato de Resistência. Um dos ricos relatos de Carolina Maria de Jesus em seu Diário de Bitita é especialmente lido por sua filha, Vera Eunice de Jesus.

Guardar e conservar
O trabalho de guarda e conservação dos alimentos tinha grande importância no passado, sobretudo antes da popularização dos refrigeradores elétricos – algo que só começou a acontecer depois dos anos 1960, com a consolidação da indústria brasileira de eletrodomésticos, apesar de modelos importados (como aquele que está em exposição) terem sido difundidos entre as classes mais altas desde a década de 1920. Função estruturante da culinária tradicional ou “caipira”, que predominou na domesticidade da cidade de São Paulo até pelo menos meados do século XX, a conservação dependia de técnicas dominadas pelas mulheres em articulação com potes e garrafas de diversos tipos e tamanhos e o guarda-comida, um armário de metal ou madeira com gavetas e compartimentos específicos para cada alimento (como o que está exposto na sala) ou prateleiras e porta revestida por uma tela de arame para permitir a circulação do ar e evitar a umidade dos itens ali mantidos.

Abrir, cozinhar e consumir
Os enlatados e os acessórios fabricados para seu uso, como os abridores, compõem este núcleo para mostrar um pouco do impacto da industrialização no preparo cotidiano dos alimentos. Produzidas entre o fim do século XVIII e o início do século XIX na França e nos Estados Unidos para resolver o problema da conservação dos alimentos, as latas de folhas de flandres permitiam que os alimentos fossem acondicionados sem a entrada de ar e umidade, garantindo assim uma extensão da validade. Ainda no século XIX, já era possível encontrar em São Paulo latas importadas, de ostras a sopas de tartaruga. Mas somente no fim do século XIX, elas passaram a ser produzidas por aqui, com a nascente indústria de Francisco Matarazzo, que investiu, inicialmente, em latas de banha de porco, a gordura mais utilizada no Brasil desde o período colonial até a expansão das latas de óleo de caroço de algodão, nas primeiras décadas do século XX. Algumas latas que resistem desse período estão na exposição, além de objetos artesanais feitos pela população que mostram como velhos ingredientes conviveram com os industrializados por muito tempo. Um deles é um coador de gordura feito a partir da junção de uma lata de banha com uma lata de óleo Sol Levante, a primeira marca de um óleo vegetal produzida no Brasil, também pelas Indústrias Matarazzo. Usos tradicionais, como o de coar gordura depois de sua utilização, foram mantidos a partir do reaproveitamento dos novos enlatados.

O coador de gordura feito da junção de uma lata de banha e de uma lata de óleo vegetal: ambas as gorduras conviveram por longo período

Campo, mercado e quintal
Apesar de as narrativas identitárias de São Paulo serem embasadas na ideia de uma modernização avassaladora da cidade, capaz de ter substituído de uma vez os elementos antigos pelos “modernos”, esse processo foi mais complexo do que se imagina. A persistência de cepos de madeira para o trato com a carne de animais recém-abatidos, de raladores de mandioca e moedores de grãos para processar alimentos in natura e até mesmo de chocadeiras mecânicas ou elétricas revela uma cidade que, até meados do século XX, permaneceu profundamente ruralizada, fosse nas suas chácaras e casas com grandes quintais, fosse nos próprios hábitos da população. O convívio com os alimentos comprados já processados nos mercados e nas feiras livres não acabou, de uma hora para a outra, com os costumes de se criar galinhas e de manter hortas e pomares em casa.

Mais tempo, mais trabalho
No decorrer do século XX, as revistas e os jornais se encheram de anúncios publicitários de equipamentos que, quase sempre elétricos, prometiam uma revolução na cozinha: o fim das técnicas demoradas e do manejo de ferramentas pesadas de madeira e o início de uma suposta era em que as atividades domésticas seriam todas produzidas por auxiliares que, ligados na eletricidade, fariam sozinhos todo o trabalho, como os liquidificadores e as batedeiras. No entanto, o anúncio de que as donas de casa teriam, assim, mais tempo para se dedicarem a outras tarefas e, quem sabe, a si mesmas, se revelou duvidoso. Se de fato se ganhava mais tempo ao se deixar de moer grãos no pilão e passar a processá-los em um desses equipamentos, também se ganhava mais trabalho com a nova obrigação de lavar pecinhas por pecinhas depois do uso e de preparar as inúmeras novas receitas que surgiram com esses aparelhos, muitas vezes descritas em seus próprios manuais de funcionamento. O multimídia “Siga o manual” mostra um pouco desse trabalho por vezes dobrado que se ganhou com a chegada de equipamentos como os refrigeradores elétricos e os liquidificadores.

Forno e fogão
Nem sempre o forno esteve acoplado ao fogão. Esta, na verdade, foi uma inovação consolidada pelos fogões elétricos e a gás, que demoraram a se difundir nas casas paulistanas, tanto por causa do alto custo quanto por causa de hábitos arraigados. Cozinhar e assar exigiam tipos diferentes de suportes para o fogo: a primeira ação podia ser feita em trempes (armações de madeira ou metal em que se penduravam caldeirões), fogareiros improvisados no chão, espiriteiras de ferro, fogões de alvenaria (“de poial”) ou de ferro (os chamados fogões econômicos, a carvão); o ato de assar, por sua vez, requeria fornos, às vezes inseridos em pequenos vãos dos fogões de poial, quase sempre montados em estruturas circulares de barro instaladas nos quintais. A tarefa de controlar o fogo tanto nos fogões quanto nos fornos exigia das mulheres o pesado manejo da lenha e a experiência corporal, por meio da visão e do toque, para saber a temperatura ideal para cada preparo. Ter o domínio desses equipamentos tornava possível a chancela de “cozinheira de forno e fogão”. Além deles, ferramentas acessórias faziam parte do saber-fazer: caldeirões, frigideiras, tachos, escumadeiras, colheres, conchas, entre outras, integravam o complexo das atividades em torno do fogo. O multimídia “Qual é o seu fogão?” conta um pouco da história dos fogões a lenha, a carvão e elétrico.

Eu que fiz
Transmitidos de geração em geração de mulheres, os antigos cadernos de receitas eram muito mais do que meros compilados com os modos de fazer de pratos e doces. Resultavam de construções que combinavam escrita e colagem, receitas e poesias, anotações cotidianas e bilhetinhos, feitas e assinadas pelas mulheres que lhe davam nome. Produziam e reproduziam, perenemente ou pelo período em que suas descendentes os quisessem preservar, o orgulho que muitas tinham de suas criações culinárias. Na exposição, um caderno de receitas feito a partir de reproduções de páginas de cadernos reais pode ser manuseado à vontade pelo público, inclusive por pessoas com deficiências visuais, já que contém descrições táteis e em braille. Ao lado dele, uma vitrine reúne fôrmas de bolos e doces e um aparelho de chá, mostrando a finalidade de boa parte das receitas compiladas em cadernos de fins do século XIX e início do XX: garantir a distinção social da família, por meio de quitutes que representavam as donas da casa e a própria família. Mandar mimos açucarados em troca de favores foi, afinal, principalmente entre as elites, uma ação costumeira.


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