O repertório histórico de objetos de cozinha

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O Repertório Histórico Ilustrado de Ferramentas e Equipamentos de Cozinha é o principal produto do projeto “Processamento de alimentos no espaço doméstico, São Paulo, 1860-1960”, coordenado pela Profa. Dra. Vânia Carneiro de Carvalho e executado pela equipe do GEMA junto ao Museu Paulista da USP (Museu do Ipiranga). Trata-se de uma publicação que vai reunir textos e ilustrações sobre mais de 150 objetos de cozinha, com o objetivo de trazer subsídios para outras coleções museológicas e para pesquisas históricas de modo geral.

Além de sanar as lacunas das coleções do museu, com informações sobre objetos existentes e sobre a necessidade de que outros ainda ausentes sejam adquiridos, a pesquisa também embasa a curadoria da sala “Trabalho e felicidade” da mostra Casas e Coisas, uma das exposições permanentes do Museu do Ipiranga, reinaugurado em setembro de 2022.

Histórico, hipóteses e questionamentos

Os artefatos ligados ao ritual de comer e ao processamento de alimentos passaram a atrair o interesse dos pesquisadores do Museu Paulista (Museu do Ipiranga) na década de 1990, quando se iniciou um movimento de renovação de suas coleções. A intenção era alinhar o acervo a problemáticas levantadas no âmbito da pesquisa acadêmica por meio da aquisição de objetos relacionados à experiência cotidiana de diferentes segmentos sociais – e não apenas das camadas privilegiadas, como costumava ocorrer até então.

Desde 2010, a curadoria do museu intensificou a aquisição de objetos de cozinha de diferentes períodos do século XX, que se juntaram a coleções pré-existentes amealhadas ainda nos anos 1990. Do conjunto desses objetos, um dado intrigante começou a saltar à vista: em meio a pontuais objetos elétricos produzidos pela indústria, havia uma significativa predominância de artefatos associados ao preparo artesanal ou mecânico dos alimentos.

Essa observação contrapunha-se a uma ideia comum e muito difundida sobre as transformações culinárias e tecnológicas de São Paulo: a de que, no século XX, assim como outros âmbitos da cidade, as cozinhas domésticas e a alimentação cotidiana simplesmente abandonaram qualquer caráter tradicional, substituindo-o por equipamentos elétricos e produtos processados.

Fundamentada pelos discursos produzidos pela indústria de alimentos e eletrodomésticos e por anúncios publicitários que se pautam em uma perspectiva evolutiva das inovações tecnológicas, essa ideia acaba por escamotear as disputas, as tensões e as resistências inerentes às dinâmicas históricas da sociedade.

A partir da coleção de artefatos culinários do museu, foi possível constatar que, a despeito das contundentes e inegáveis transformações que se deram no espaço doméstico ao longo dos séculos XIX e XX, as mudanças não foram imediatas nem inabaláveis. Como já havia observado João Luiz Máximo da Silva em seu livro Cozinha modelo (2008), os fogões a gás intensamente divulgados nas primeiras décadas do século XX não substituíram de uma hora para outra os fogões a lenha.

Mesmo em residências abastadas, com acesso aos encanamentos de gás, os modernos equipamentos eram adquiridos, mas, muitas vezes, instalados na copa ou na sala de jantar, para serem exibidos como sinais de prestígio da família ou para aquecerem a comida. Na cozinha, as refeições seguiam sendo preparadas nos velhos fogões a lenha.

A convivência de objetos manuais, mecânicos e elétricos e, consequentemente, de práticas tradicionais e “modernas” suscitou diversos questionamentos, que buscamos responder com nossas pesquisas. Por que, afinal, artefatos manuais e mecânicos permaneceram de maneira tão significativa no cotidiano doméstico da cidade? Quais fatores, para além das desigualdades socioeconômicas, podem ter contribuído para a resistência a certos objetos?

Um desses fatores – e esta é nossa principal hipótese – relaciona-se com a presença maciça de empregadas domésticas em residências de diferentes estratos sociais, por longo período, tanto em São Paulo quanto no Brasil como um todo. Remanescentes da escravidão, na virada do século XIX para o XX, as pessoas negras e pobres não tiveram oportunidades de estudo ou trabalho garantidas pelo Estado. As mulheres, sobretudo, não tiveram muitas chances além de seguirem atuando com o trabalho doméstico, em “casas de família”.

Desvalorizadas e mal pagas, as empregadas supriam, por um lado, a necessidade de as famílias investirem na compra de equipamentos e produtos vendidos como facilitadores das pesadas atividades domésticas e culinárias. Por outro, elas eram tidas no senso comum como atrasadas e ignorantes, sem conhecimento ou cuidado suficiente para usarem esses artefatos. A própria recorrência ao serviço dessas mulheres estruturava-se em uma moral escravocrata que, como já observou Elizabeth Bortolaia Silva em diversos artigos (conheça nossa bibliografia aqui), tacitamente impunha a regra de que o acesso cotidiano de empregadas a eletrodomésticos e a produtos caros ou de manuseio não intuitivo deveria ser evitado ou expressamente proibido.

Situação diferente parece ter se desenrolado em outros países, em especial nos Estados Unidos. A partir do fim do século XIX e das duas grandes guerras, as indústrias norte-americanas empregaram um número considerável de mulheres antes engajadas no trabalho doméstico. Sozinhas, donas de casa de classes médias e baixas foram incentivadas de forma cada vez mais insistente a consumir equipamentos elétricos e produtos processados, anunciados pela indústria como “atalhos” que diminuíam o trabalho em casa e o tempo gasto com ele.

Ainda que se saiba, por meio de obras como More Work for Mother (1983), de Ruth Cowan, e Something From the Oven (2004), de Laura Shapiro, que o trabalho doméstico não exatamente se reduziu nem os equipamentos e produtos industrializados foram aceitos de imediato, é inegável que a inserção desses objetos e alimentos no dia a dia estadunidense se deu de maneira mais intensa do que no contexto brasileiro ou paulistano.

Como se percebe, os problemas sociais, raciais e de gênero próprios ao Brasil, ainda que semelhantes em certos aspectos aos de outros países, fundem-se às hipóteses e aos questionamentos que surgiram a partir da observação da coleção de objetos culinários do Museu Paulista e que vêm sendo analisados e discutidos em nossas pesquisas.

Mais uma vez citando o caso dos Estados Unidos, a notória aderência aos produtos e equipamentos trazidos pela indústria naquele país parece ter contribuído com uma série de publicações preocupadas em catalogar e historicizar os objetos relacionados ao trabalho doméstico: The Housewares Story: A History of the American Houseware Industry (1973), America at Home: a Celebration of Twentieth-Century Housewares (1996), From Hearth to Cookstove: An American Domestic History of Gadgets and Utensils Made or Used in America from 1700 to 1930 (1978), 300 Years of Kitchen Collectibles (1984), Kitchen Utensils: Names, Origins, and Definitions Through the Ages (2000), Encyclopedia of Kitchen History (2004), entre outros (leia mais em nossa bibliografia).

No Brasil, até onde pudemos buscar, não há publicações desse tipo, dedicadas a contar a história das cozinhas e de seus objetos – a não ser, diga-se, a seção de objetos domésticos e culinários inserida no amplo tesauro voltado a museus, organizado por Helena Dodd Ferrez em 1987 e atualizado em 2016. Para suprir essa lacuna, o Repertório Histórico Ilustrado de Ferramentas e Equipamentos de Cozinha é um instrumento de pesquisa que pretende contribuir com coleções museológicas e também com pesquisas históricas de modo geral, interessadas nas relações entre as materialidades domésticas e a sociedade.

Bases teórico-metodológicas

“A chamada ‘cultura material’ participa decisivamente na produção e reprodução social. No entanto, disso temos consciência superficial e descontínua. Os artefatos, por exemplo, são não apenas produtos, mas vetores de relações sociais. Que percepção temos desses mecanismos? Não se trata, apenas, portanto, de identificar quadros materiais de vida, listando objetos móveis, passando por estruturas, espaços e configurações naturais, a ‘obras de arte’. Trata-se, isto sim, de entender o fenômeno complexo de apropriação social de segmentos da natureza física – e, mais ainda, de apreender a dimensão material da vida social.”

Ulpiano Bezerra de Meneses

Assim como as fontes textuais, as fontes materiais – em nosso caso, os objetos das coleções do Museu Paulista (Museu do Ipiranga) – podem contribuir com o entendimento dos processos históricos. A partir dos estudos de autores como os antropólogos Daniel Miller, Bruno Latour, Nicole Boivin e Jean-Pierre Warnier e o historiador brasileiro Ulpiano Bezerra de Meneses, consideramos que os objetos não são reflexos ou meros produtos da sociedade que os criou e os utilizou, mas agentes ativos e importantes na construção dessa própria sociedade. Ao superar a dualidade objetos/sujeitos, o foco de análise recai sobre a relação de interação e de constituição mútua entre eles.

Como passam por uma inevitável descontextualização ao serem integrados a acervos museológicos, os objetos precisam ser compreendidos em seus antigos contextos para que possam se tornar documentos. Esse processo de “recontextualização”, por assim dizer, estrutura as pesquisas para o Repertório e se baseia no conceito de “biografia dos objetos“, proposto por Igor Kopytoff (1986) e revisto por Ulpiano Bezerra de Meneses (1998). Para este autor, os artefatos passam por transformações morfológicas, funcionais e simbólicas intimamente ligadas às suas trajetórias no mundo social. Por isso, devem ser analisados “em situação”, ou seja, devem ser reinseridos em seus emaranhados de usos, apropriações e destruição para que suas atuações possam ser conhecidas e discutidas.

Para viabilizar essa análise biográfica, partimos da materialidade dos objetos, mas não nos restringimos a ela. Um múltiplo conjunto de fontes, em especial textuais, foi mobilizado para tornar possível a definição e a discussão das biografias desses utensílios. Menções a objetos culinários em jornais e revistas, anúncios publicitários, livros de receitas, manuais domésticos, inventários, entre outras fontes, vêm sendo buscadas e analisadas com algumas questões em mente: quando determinado objeto circulou? Era produzido artesanalmente ou pela indústria? Quais funções tinha no preparo dos alimentos? Como era manuseado ou acionado? Quem o utilizava? Com quais materiais chegou a ser produzido? Como foi chamado e como seu nome se modificou ao longo do tempo?

Cada objeto encontrado na pesquisa é inserido em uma base de dados, com todas as informações possíveis sobre seus usos no momento de produção do documento histórico em questão. Com mais de 12 mil dados, essa base enseja relatórios que, a partir da compilação de informações sobre cada um dos objetos selecionados, nos permite traçar biografias. A reunião desses objetos, biografados e ilustrados, é que dará forma ao Repertório.


Leia mais

  • Conheça a sala “Trabalho e felicidade“, sobre a cozinha e seus objetos, na exposição Casas e Coisas do Museu Paulista da USP (Museu do Ipiranga)
  • Mais informações sobre a base de dados e as fontes de nossas pesquisas
  • Bibliografia do projeto “Processamento de alimentos no espaço doméstico, São Paulo, 1860-1960”