Leticia Artiles Visbal
O movimento de mulheres do início do século XXI herdou das últimas duas décadas do século anterior uma importante novidade conceitual: a reivindicação da “igualdade entre os gêneros” substituiu a antiga e reducionista fronteira dos “direitos da mulher”. Mais ampla que os conceitos de “mulher” e “feminino” – baseados na diferenciação biológica, em oposição a “homem” e “masculino” –, a noção de gênero é uma construção ideológica e incorpora diferentes relações de poder. Gênero é o conjunto das determinantes culturais que diferenciam os homens das mulheres, que os coloca em diferentes posições diante dos recursos materiais e do poder político. As diferenças de gênero expressam-se em símbolos, estereótipos e papéis diferentes desempenhados por homens e mulheres nos espaços públicos e na vida cotidiana.
O movimento e as reivindicações “de gênero” dão, assim, continuidade às bandeiras do movimento feminista. Por feminismo, ficaram conhecidos o programa e a ideologia nascidos das históricas mobilizações das mulheres que, desde fins do século XIX, conquistaram um sem-número de direitos antes negados a elas. Desde o pioneiro sufragismo, que mobilizou centenas de milhares de mulheres pelo direito ao voto, no início do século XX, o feminismo avançou até contemplar, além do voto, também demandas sociais, como a eliminação da discriminação civil para as mulheres casadas, o acesso à educação, ao trabalho remunerado e ao poder público.
Em sua expressão latino-americana, o feminismo nasceu em contraposição à ideologia patriarcal que vinculou historicamente a mulher da região ao espaço privado, doméstico, e aos papéis de mãe e dona de casa. Para deslegitimar essa ideologia e seus estereótipos, o movimento feminista latino-americano considerou o padrão patriarcal injusto e ilegítimo, identificou suas causas e buscou criar propostas alternativas que conduzissem as mulheres à tomada de consciência, para, modificando a realidade, eliminarem a dupla reprodução do patriarcalismo: em sua subjetividade e em sua prática cotidiana.
Nas últimas décadas do século XX, o feminismo na região desenvolveu-se sob a égide de regimes ditatoriais e teve importante papel nas lutas democráticas para derrubar as ditaduras. A articulação entre feminismo e luta democrática terminou por enriquecer a ambos, pois as mulheres buscavam o reconhecimento de seus direitos como direitos humanos e exigiam sua participação em espaços sociais e políticos limitados a todos até então.
Nos anos 1960 e 1970, o movimento feminista latino-americano obteve importantes avanços, ao promover os direitos políticos das mulheres e introduzir no debate público temas até aquele momento não tocados, como o da violência contra a mulher no âmbito doméstico e o do assédio sexual. Na transição da década de 1970 para a de 1980, esteve em pauta uma aparente contraposição entre as reivindicações que respondiam às necessidades das mulheres e a luta pelos direitos civis e políticos para todos. Os defensores da priorização das bandeiras gerais, em detrimento das demandas feministas, argumentavam que os direitos coletivos (as liberdades democráticas) eram mais importantes que os direitos civis individuais (as bandeiras das mulheres).
Grupos de mulheres ativistas, nascidos no seio das organizações da classe operária, de sindicatos, entidades de desempregadas, partidos políticos de esquerda e organizações camponesas, levaram desde cedo, o movimento feminista latino-americano a se aliar aos movimentos sindicais e populares. Do intercâmbio entre as organizações feministas e as dos movimentos sociais aliados emergiu um feminismo operário e popular mais radical.
A vertente feminista operária-popular introduziu nos debates temas sobre política sexual, modos de organização autônoma das mulheres, fomento à consciência e à participação femininas na tomada de decisões, e incentivo ao fortalecimento pessoal e coletivo. Tal evolução política foi possível graças ao apoio, aos movimentos locais de mulheres, de organizações feministas globais. Conferências regionais e internacionais, oficinas e encontros supranacionais de mulheres ajudaram a construir o programa das mulheres latino-americanas.
Pobreza cresce e se faz mais feminina
Entre o fim da década de 1980 e o início dos anos 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU), em consequência de pressões feministas em seu interior, comprometeu-se a financiar a participação de grupos locais e regionais de mulheres em conferências supranacionais sobre temas de desenvolvimento. No Terceiro Mundo, organizações não governamentais de mulheres passaram a contar com fontes cada vez maiores de financiamento externo, o que tornou seu crescimento mais dependente de recursos provenientes de instituições ligadas à ONU, aos governos de países industrializados e às fundações privadas.
Contraditoriamente, o movimento de mulheres da América Latina e do Caribe se ampliou em meio ao empobrecimento crescente da região – que se traduziu na degradação dos padrões de vida de homens e mulheres, com um peso cada vez maior de mulheres entre os pobres, e na redução do Estado e seus serviços essenciais por meio de programas de ajuste fiscal impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM).
Nesse contexto, a mobilização das mulheres pobres da cidade, do campo e dos povos indígenas passou a ter como eixos a sobrevivência, a criação de redes de ajuda mútua e o resgate de valores comunais. A ideologia feminista incorporou também a luta pelos direitos da mulher no espaço doméstico e nas comunidades. Em um determinado momento, a luta pela “política sexual” foi o centro das preocupações e teve êxito, ao ampliar espaços políticos para as mulheres de diferentes classes sociais.
No entanto, o apoio financeiro do FMI, do BM e de outras agências de cooperação, condicionado à aceitação, pelos beneficiários, do projeto político-econômico neoliberal, levou a alianças de organizações feministas com elites políticas e econômicas conservadoras, que, longe de oferecer independência econômica às mulheres, conduziram-nas à inserção na economia informal, muitas vezes explorando seus próprios filhos e filhas, e aumentando a competitividade entre elas.
Em busca do poder político real
Na primeira década do século XXI, o movimento feminista latino-americano havia conquistado algumas políticas públicas graças à vitória obtida na Conferência de Viena (1993), que reconheceu o direito das mulheres como um direito humano. Apesar dos avanços nos espaços públicos e nas pautas dos debates oficiais (ainda que nem sempre estivessem presentes nas mesas de decisão política), as mulheres continuaram, ao despontar o século XXI, afastadas das grandes decisões.
O quadro regional impunha, portanto, que o movimento de mulheres continuasse reforçando seus mecanismos de diálogo com o Estado e com a sociedade civil para alcançar um poder político real, que permitisse minimizar as resistências à incorporação da igualdade entre os gêneros como princípio organizador da democracia e que minimizasse a reação dos homens, com interesses afetados ao concorrer com mulheres nos espaços públicos e privados. Era preciso, mais do que nunca, debater os conteúdos da democracia, da institucionalidade, dos diferentes sistemas de interlocução no interior da sociedade e do Estado e a execução de políticas públicas.
Nas décadas de 1980 e 1990, os países da América Latina e do Caribe viveram um surto de crescimento da produção de bens e serviços, com a abertura (e subordinação) de suas economias ao mercado internacional, com governos altamente centralizadores. Apesar da expansão sem precedentes e das políticas com que os governos buscaram distribuir os benefícios desse crescimento, os indicadores de mortalidade infantil, do analfabetismo, da escolaridade, do emprego e da renda mostravam a marginalização da população feminina, entre outros grupos sociais. Eram as mulheres o gênero com menor participação na força de trabalho, com maiores índices de analfabetismo, as menos representadas na atividade política, e com participação ainda minoritária nas artes, na ciência e na tecnologia.
Com as ações empreendidas pela ONU a partir da I Conferência Mundial da Mulher, em 1975, a participação das mulheres no desenvolvimento começou a ser considerada requisito fundamental para o êxito do processo. Nos vinte anos que se sucederam, destacaram-se a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), que traçou as bases jurídicas para a igualdade e a incorporação das mulheres ao desenvolvimento, e a decisão da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), que aprovou o Plano de Ação Regional sobre a Integração da Mulher ao Desenvolvimento Econômico e Social.
Enfoques diversos para objetivo comum
Entre a década de 1950 e a de 1970, as mulheres foram consideradas receptoras passivas do desenvolvimento. O chamado “enfoque do bem-estar” privilegiou o papel da mulher como mãe e educadora dos filhos e da comunidade. Dessa visão, resultaram políticas voltadas para especializar as mulheres no trabalho reprodutivo e nos programas de ajuda alimentar e materno-infantil. A educação e a capacitação profissional em tarefas não tradicionais não eram valorizadas.
Na Década Mundial da Mulher, celebrada pela ONU entre 1975 e 1985, surgiu o chamado “enfoque mulher e desenvolvimento”, que passou a considerar a atividade econômica da mulher e seu acesso ao mercado de trabalho e à renda como pontos-chave para reduzir a desigualdade entre homens e mulheres. Subproduto dessa visão, o “enfoque antiprobreza” buscou incentivar estratégias de sobrevivência das mulheres e satisfação de suas necessidades básicas, no contexto da profunda crise econômica e da deterioração das condições da vida da população.
Em contrapartida, também como corrente derivada do enfoque “mulher e desenvolvimento”, surgiu nos anos 1980 o “enfoque da eficiência”, que incentivou projetos baseados na responsabilidade do cumprimento de compromissos de produção por parte das mulheres. Esses projetos lançaram mão do trabalho feminino gratuito para as comunidades – em tarefas tradicionais como cozinha, limpeza, atenção à saúde e cuidado de crianças e idosos – e de gestão comunitária como estratégias para diminuir o impacto da redução de gastos sociais pelos Estados nacionais. O trabalho da mulher, nesses casos, resultou em custos não contabilizados por qualquer estatística.
A partir da década de 1980, um novo enfoque, chamado “gênero e desenvolvimento”, pregou a atuação sobre as causas da desigualdade de poder entre os gêneros, nos âmbitos público e privado. As estratégias dessa corrente consistiram em incentivar a conquista de maiores espaços de poder pelas mulheres, um controle igualitário sobre recursos e benefícios materiais e maior participação nos mecanismos de poder político e social.
Coexistindo em um mesmo período ou substituindo umas às outras, as diferentes visões sobre a participação feminina no desenvolvimento buscavam, todas, pôr fim à relação tradicional de subordinação de um gênero a outro, por meio da luta pela autonomia das mulheres, seu controle sobre os recursos materiais e participação na tomada de decisões com igualdade em relação aos homens. No entanto, as estratégias nunca foram independentes dos projetos político-econômicos de desenvolvimento propostos a um país ou a uma região, o que ficava evidente ao constatar-se o impacto negativo do modelo neoliberal sobre a vida das mulheres.
Políticas para consagrar direitos
As mulheres não eram e não são maioria no mundo político da América Latina e do Caribe. Tendiam, em pleno início do século XXI, a ser mais objetos do que sujeitos de direitos, devido ao fato de que as “políticas de Estado”, de cumprimento obrigatório, ainda eram decididas por grupos minoritários de poder, compostos sobretudo de homens. Segundo o Índice de Desenvolvimento de Gênero (IDG) do Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2004, Cuba era o país onde as mulheres tinham a maior participação no Parlamento (36%), seguido da Costa Rica (35,1%) e da Argentina (31,3%). Embora constituíssem metade da população, as mulheres latino-americanas tinham, em 2004, participação parlamentar média de 30%.
A renda estimada da parcela feminina da América Latina e do Caribe mantinha-se inferior à dos homens. Segundo o IDG, a renda mais próxima à dos homens era a das mulheres da Jamaica, que ficavam em média com o equivalente a 66% da renda masculina. As políticas públicas na região demonstravam a falta de sensibilidade de Estados e governos à desigualdade entre os gêneros.
Os executores dessas políticas moviam-se entre duas forças poderosas. De um lado, havia um nacionalismo masculinizado, sustentado em um padrão cultural que impunha historicamente às mulheres o papel de reproduzir a espécie, biológica e socialmente, e assim circunscrever-se ao espaço privado, longe do poder político. De outro lado, a hegemonia cada vez maior do capital transnacional na região fazia surgir novas formas de exploração de mulheres e homens.
O capitalismo globalizado incluiu na economia mulheres e homens de estratos sociais altos, deu a eles oportunidades de educação, informação e comunicação. Facilitou a poucas mulheres a fuga do controle masculino tradicional e a ocupação dos espaços públicos (ainda que no espaço privado continuassem oprimidas cultural, social e psicologicamente). Nas camadas sociais mais baixas, no entanto, o analfabetismo, a pobreza, a fome, a violência e a migração excluíam cada vez mais as mulheres dos sistemas educacionais e das possibilidades de ascensão. Sobrecarregadas com o cuidado dos filhos e idosos, cada vez mais responsáveis pelo sustento da família, trabalhando em dupla jornada, cumprindo múltiplos papéis, deteriorando sua saúde e reduzindo a expectativa de vida, as mulheres tornaram a pobreza latino-americana cada vez mais “feminina”.
O discurso político hegemônico, de cunho “primeiro-mundista”, branco e de classe média, buscava legitimar as práticas patriarcais. Esse neopatriarcalismo facilitou às elites a tarefa de defender o projeto imperialista neoliberal e ocidentalizante. Os baixos salários, os empregos precários, as tarefas em geral monótonas e estressantes e o trabalho doméstico não remunerado, reservados às mulheres, não foram e não são considerados objetos de políticas públicas. A violência doméstica ainda não foi elevada à condição de problema de saúde pública.
O tratamento legal do aborto
Na América Latina e no Caribe o aborto é um grave problema de saúde pública e um tema crítico no campo dos direitos humanos das mulheres. Em 1998, estudo do Comitê Latino-Americano para a Defesa dos Direitos da Mulher, realizado em catorze países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico e Uruguai), apurou que as legislações mantinham, até então, seu caráter repressivo, por meio da criminalização da prática. Diagnosticou também uma polarização absoluta, no debate político sobre o tema, entre os que defendiam a erradicação do aborto ilegal, em nome do direito à vida, à saúde e à autodeterminação das mulheres, e os que se prendiam ao direito à vida do não nascido. Todos os países, mesmo os de legislação mais repressiva, tinham previsto em lei, em algum momento, o aborto terapêutico e a tendência das legislações era incorporar mais hipóteses para a prática legal da interrupção da gravidez.
Os defensores da legalização do aborto argumentavam então, no campo do direito penal, que a punição ao ato era inadequada porque não servia para coibir sua prática generalizada, levando, ao contrário, todo aborto provocado a uma situação de clandestinidade que colocava em risco a saúde e a vida das mulheres. Notava-se um deslocamento da discussão para os alcances do direito à vida do não nascido e os limites da intervenção do Estado quando esse direito colidia com os direitos da mulher em decidir.
Àquela altura, indicava o diagnóstico, a intervenção dos grupos de mulheres contra a repressão do aborto buscava mais evitar retrocessos legais (como os registrados em El Salvador e Honduras) do que avançar para a legalização. Fazia-se necessário aos defensores da descriminalização do aborto promover iniciativas que contrabalançassem as ações intensivas dos grupos “Pró-Vida” dos não nascidos e acompanhar de forma mais permanente as discussões parlamentares sobre o tema.
Nos últimos cinquenta anos (1956-2006), as políticas sobre direitos reprodutivos na região, inspiradas nas propostas dos organismos multilaterais como o BM, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID sigla em inglês), serviram na prática para controlar o crescimento da população. Disfarçados sob o discurso de “elevar a qualidade de vida das mulheres”, os projetos apenas reduziam as taxas de fertilidade. Os direitos sexuais e reprodutivos não foram incorporados às leis para contribuir com a redução de doenças e morte.
O alcance das políticas sobre o aborto foi muito limitado e as barreiras legais, religiosas e culturais mantiveram generalizada sua prática ilegal. Assim, em 2006, acontecia na região um aborto inseguro para cada três nascimentos e, de 20 milhões de interrupções de gravidez no mundo, 4 milhões ocorriam na América Latina. Alguns países latino-americanos promoviam acesso a métodos anticonceptivos, mas não à anticoncepção de emergência. Fortemente influenciados por grupos religiosos fundamentalistas e conservadores, os governos se opunham à legalização do aborto como política pública.
Raras eram as normas legais que defendiam, em 2005, a corresponsabilidade dos homens pela saúde sexual e reprodutiva da mulher, a paternidade consciente e o cuidado compartilhado dos filhos. A lacuna jurídica favorecia a continuidade do modelo cultural sexista, que se expressava em cifras alarmantes: na América Central, em 2001, 30% dos bebês recém-nascidos não eram reconhecidos pelo pai (CEPAL). Diante desses números, a maioria dos países da região adotou leis de “paternidade responsável”, que ainda não estavam totalmente incorporadas culturalmente mais de cinco anos depois.
Desigualdade de ritmos na região
Na década de 1990, as questões da mulher eram tratadas, na América Latina, de formas muito heterogêneas. Algumas democracias começavam a ser sensíveis aos interesses femininos. Outras, mais autoritárias, mostravam-se refratárias a mudanças nas relações de gênero. O Caribe foi a sub-região que mais avançou na inclusão de reivindicações de gênero em sua agenda de consolidação democrática. Ali foram criados organismos governamentais da mulher, instituídos para assegurar o cumprimento das convenções e declarações aprovadas pela Assembleia Geral da ONU e ratificadas pelos governos. Foi criada a Rede Regional de Organismos Governamentais da Mulher na América Latina e no Caribe, com o propósito de unir esforços e criar uma corrente de opinião regional que levasse à criação de mais organismos desse tipo.
De 1995 a 2005, as políticas públicas na área de saúde sexual e reprodutiva foram influenciadas pelas resoluções da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo (1994) e da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, na China (1995). As reuniões que ocorreram dez anos depois – a Cairo + 10 (2004) e a Beijing + 10 (2005) – concluíram que, apesar dos importantes avanços alcançados, o cumprimento das plataformas sobre direitos sexuais e reprodutivos na América Latina estava ameaçado pelo cenário político.
Em geral, os temas de gênero na região ainda estavam limitados à equação “mulher igual a mãe”. A violência doméstica foi incluída no discurso oficial, mas não deu origem a políticas públicas para combatê-la: as ações nessa área ficaram circunscritas a experiências como “casas-abrigo”, “grupos de ajuda” e outros mecanismos insuficientes. O aborto legal na região não era considerado parte dos direitos reprodutivos. A orientação sexual continuava limitada às campanhas contra a Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. Eram insuficientemente tratados os problemas da masculinidade, da diversidade sexual e suas consequências para a vida cotidiana e a saúde.
Entre os avanços daquela década, destacaram-se a inclusão, nas agendas nacionais e regionais, dos problemas da mulher na política, na economia e nos espaços públicos; a consolidação de redes e sub-redes regionais; e o progresso das reformas de legislação e dos projetos de desenvolvimento com participação da população feminina. Não obstante, faltaram recursos para garantir o acesso universal das mulheres a benefícios e serviços públicos de qualidade.
O gênero em um universo multicultural
Devido à ausência de um enfoque étnico na coleta de informações, existem poucos dados estatísticos sobre a situação cultural dos povos e das mulheres afrodescendentes e indígenas da América Latina e do Caribe. No entanto, é fundamental estabelecer a relação entre gênero e culturas em uma região com imensa diversidade de territórios e etnias. Afinal, as relações de poder entre os sexos estabelecem-se segundo padrões culturais específicos (com simbolismo, cosmovisão, imaginário e códigos de comunicação próprios de cada povo) e se manifestam em estruturas políticas, normas jurídicas e de conduta e níveis de acesso popular aos serviços sociais.
Havia na região, em 2005, cerca de 150 milhões de afrodescendentes, metade dos quais mulheres. A maioria delas encontrava-se no Brasil e na Colômbia. No Caribe, concentravam-se em Cuba e na República Dominicana. As afrodescendentes da América Latina viviam economicamente marginalizadas, com acesso reduzidíssimo a recursos reprodutivos, salários mais baixos que os dos homens e mulheres brancas com as mesmas competências e níveis de desempenho, e com grande participação na economia informal, sem nenhuma proteção trabalhista.
No mercado formal, no início do século XXI, cabiam às mulheres negras empregos em indústrias de baixa produtividade, o que limitava seus níveis de renda e aumentava a diferença salarial em relação aos brancos e brancas com instrução e capacidades similares. Na Colômbia, em Honduras e no Brasil, as mulheres afrodescendentes expulsas do mercado de trabalho eram obrigadas, para sobreviver, a emigrar ou a se tornar “chefes de família”, quando o migrante era o homem.
Afrodescendentes falam em Quito
Os problemas e as estratégias de sobrevivência das afrodescendentes não estavam, na transição entre os séculos XX e XXI, nos programas oficiais e não oficiais de cooperação na região. A Declaração de Mulheres Afrodescendentes ante o Foro das Américas pela Diversidade e a Pluralidade, promulgada em Quito em 2001, considerou que as práticas dos organismos estatais, as políticas públicas e os investimentos estatais demonstravam racismo, sexismo e xenofobia, ao negar as especificidades dos problemas das mulheres afrodescendentes.
A mesma declaração exigiu que Estados e organismos multilaterais e internacionais se comprometessem a adotar medidas para erradicar o racismo e a discriminação racial; que os Estados reconhecessem sua obrigação de garantir às afrodescendentes o pleno gozo dos diretos humanos, inclusive o direito ao desenvolvimento; e reivindicava que fosse condenada a exploração sexual e o tráfico de meninas, jovens e mulheres, além de medidas coercitivas contra essas práticas.
O documento denunciou que os Estados da região negavam às crianças e aos jovens afrodescendentes o direito de construir e reafirmar sua identidade, devido às políticas educacionais e culturais que promoviam uma falsa identidade nacional baseada na homogeneidade. O texto ainda exigiu que os Estados garantissem o pleno gozo dos direitos às desalojadas e refugiadas da região (como as da Colômbia), oferecendo a elas condições para uma inserção temporária ou permanente nas comunidades ou nos países que as recebessem.
Considerando que seu corpo serviu historicamente como laboratório de experimentação e que lhes foi negado não só o direito à informação, como o de decidir sobre ele, as mulheres afrodescendentes exigiram, na agenda de Quito, que os Estados garantissem o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. O texto pedia uma resposta efetiva dos governos e organismos multilaterais à alarmante incidência da Aids nas comunidades afrodescendentes.
As bandeiras das mulheres indígenas
Os indígenas da América Latina e do Caribe eram, em 2005, entre 45 milhões e 50 milhões de pessoas, ou 10,18% da população total da região. A América Central e os Andes concentravam 90% desse contingente. Os países com a maior porcentagem de população indígena (entre 43% e 71%) eram Bolívia, Guatemala, Peru e Equador. Desse contigente, metade eram mulheres. A dinâmica da globalização, a exploração de recursos naturais e os conflitos armados pontuais arrancavam desses povos seus costumes tradicionais, expulsavam-nos de suas terras e tiravam o status tradicional das mulheres indígenas.
Povos autóctones de diversos países deixavam de cultivar alimentos e eram jogados no novo mercado, aparentemente mais bem remunerado. Abandonavam, assim, seus comportamentos tradicionais, perdendo seus espaços naturais e culturais e sua independência. As instituições de Estado, locais e intergovernamentais, excluíam as mulheres indígenas das tomadas de decisão. Raras vezes elas tinham oportunidade de ocupar espaços de poder. Milhares de mulheres e meninas indígenas latino-americanas, empobrecidas pela perda de suas terras, eram vítimas fáceis do comércio sexual – o Brasil ocupava, em 2005, o segundo lugar do mundo em matéria de tráfico de menores. Indígenas eram mão de obra barata para a indústria, com jornadas extenuantes e salários menores que os de mulheres e homens brancos.
Vítimas de um delito, as indígenas não recebiam a mesma proteção legal que outros grupos sociais. A Declaração de Manila, resultante da Conferência Internacional sobre Resolução de Conflitos (2000), reconheceu o valor das mulheres indígenas na prevenção de confrontos armados e no estabelecimento de soluções pacíficas. O texto propunha o aproveitamento de seus conhecimentos e de suas habilidades como mediadores em missões multinacionais de paz.
A Declaração da Primeira Cúpula de Mulheres Indígenas das Américas, realizada na cidade mexicana de Oaxaca (2002), propôs resgatar os valores essenciais dos povos autóctones na busca da justiça social. Para isso, sugeriu o incentivo à transmissão intergeracional das cosmovisões indígenas, por meio das cerimônias e visitas a lugares sagrados, e pediu às igrejas de várias denominações que respeitassem as crenças e culturas autóctones, sem lhes impor nenhuma religião.
Para incentivar a participação efetiva e integral das mulheres indígenas nas tomadas de decisão, em âmbitos local, nacional, regional e internacional, a reunião de Oaxaca exigiu dos governos latino-americanos a implementação de políticas que levassem em conta a multiplicidade cultural dos vários países. Demandou aos Estados nacionais a inclusão, em suas agendas políticas, dos enfoques de gênero e etnia e o incentivo ao diálogo, à reflexão e ao debate construtivo entre homens e mulheres para fomentar o respeito, a confiança e a sabedoria ancestral das mulheres indígenas.
As indígenas reunidas em Oaxaca pediram ainda campanhas de conscientização e sensibilização para combater preconceitos. Exigiram da ONU a implementação de programas locais, nacionais e internacionais de fortalecimento das organizações de mulheres e jovens indígenas; programas de saúde, com ênfase na saúde sexual e reprodutiva, que respeitassem a identidade e a medicina tradicional dos povos e das comunidades autóctones; e o fim dos programas de esterilização forçada, implementados por alguns governos.
No alvo do ajuste econômico
A América Latina e o Caribe foram cenário dos experimentos mais conservadores e ortodoxos em matéria de ajustes neoliberais. Os programas político-econômicos não somente não contemplaram a igualdade entre os gêneros e a justiça social, como embutiram um traço machista, ao desvalorizar o trabalho das mulheres e desconhecer a contribuição econômica que representava o trabalho não remunerado dentro do lar.
Como consequência, políticas aparentemente sem relação com a questão de gênero – como as de redução de custos na produção, aumento da eficiência e terceirizações – significaram transferir determinados custos da economia remunerada à doméstica e à economia comunitária, baseadas total ou principalmente no trabalho feminino gratuito. Sob os planos neoliberais de ajuste, grande parte do trabalho das mulheres não foi contabilizado nos Produtos Internos Brutos (PIBs) e nas contas públicas.
Exemplo dessa realidade foi a redução significativa do gasto real per capita nos setores da educação e da saúde em todos os países da região. Na Jamaica, o gasto em saúde teve queda de 20%, entre 1980 e 1985, e no Brasil, de 40%, entre 1989 e 1992. A diminuição do apoio dos Estados ou sua completa retirada dos serviços sociais teve maior impacto sobre as mulheres, maioria entre os pobres. O fim dos subsídios alimentares afetou mulheres e crianças em primeiro lugar. O desemprego atingiu as mulheres, e a redução de suas atividades remuneradas repercutiu diretamente na renda das famílias.
O resultado dos ajustes para as mulheres ficou evidente na queda da renda em relação à renda dos homens, segundo o IDH de 2004. Na Costa Rica, a renda da população feminina representava, naquele ano, 39% da renda masculina. Na Colômbia, 53%. No Brasil, 42%. No México, 38%. Na Argentina, 37%. No Equador, 30%. Na Bolívia, 45%. No Chile, 38%. A crise econômica e os planos neoliberais reduziram as oportunidades de trabalho feminino no setor formal, empurrando as trabalhadoras a empregos precários. As mulheres tornaram-se maioria entre os contratados temporários e nos empregos domésticos. E continuavam minoria nas indústrias e serviços com tecnologia de ponta.
Mesmo as trabalhadoras mais qualificadas e com mais escolaridade tinham, então, salários bem menores que os dos trabalhadores de mesmo nível no setor privado. O acesso ao crédito por parte das mulheres era limitado. Entre 1995 e 2005, elas chegaram a constituir 50% da população latino-americana em condições de “pobreza absoluta”. Nesse contexto, fazia-se mais do que nunca necessário exigir que os Estados cumprissem o papel de contrabalançar o impacto negativo dessas políticas econômicas sobre as mulheres, não as abandonando ao sabor do mercado que as discriminava.