Para além do suor e do pão

A análise de duas experiências no atual mundo do trabalho retrata como os profissionais lidam de formas diferentes com a crescente exigência das grandes empresas

Darth

Não é raro, nos dias de hoje, sabermos de alguém que resolve mudar de carreira no meio do caminho. Também conhecemos pessoas que não se desviam de uma trajetória profissional inicialmente traçada. As motivações e os sofrimentos que envolvem estas escolhas, ou mesmo a falta delas, costumam ser complexos, e a expressão “cada caso é um caso” se encaixa bem neste tipo de questão. Entretanto, é inegável que tanto a história de vida do indivíduo quanto fatores externos a ele, como os contextos socioeconômicos, políticos e culturais, influem nas relações e condições de trabalho de um determinado momento histórico.Para investigar melhor o assunto, a psicóloga e também economista Estair Kindi estudou, em seu mestrado no Instituto de Psicologia da USP, de que modo o trabalho afeta o trabalhador em sua subjetividade (o “espaço íntimo” do indivíduo, que inclui suas crenças e valores). A pesquisadora afirma que seu estudo reflete o atual mundo do trabalho, com sua pluralidade e incoerências. Estair entrevistou dois sujeitos que embora apresentassem muitas semelhanças em seus perfis profissionais, responderam de forma muito diferente em relação às suas experiências de trabalho na área financeira de grandes multinacionais. Ambos são do sexo masculino, entre 35 e 40 anos, pós-graduados e com mais de 15 anos de carreira. Contudo, enquanto um teve uma experiência muito negativa nesse universo corporativo, sendo atualmente professor universitário, o outro permanece motivado como executivo. Mas o que estaria por trás dessa diferença? O que afinal causa sofrimento no trabalho?

Estruturante ou desestabilizande

De acordo com a Psicodinâmica do Trabalho, abordagem teórico-metodológica desenvolvida pelo psiquiatra francês Christophe Dejours e utilizada por Kindi para a análise das entrevistas, o sofrimento é inerente ao trabalho. O que faz com que ele seja fator de saúde ou doença mental depende tanto das condições psíquicas individuais (as vivências desde a infância) quanto da organização do trabalho como um todo.

Como integrantes do próprio sistema produtivo estão o excesso de trabalho,
as altas 
metas, o risco de desemprego e o comprometimento com a equipe

Estair explica que, para dar conta dos elementos envolvidos na relação entre trabalho e doença mental a abordagem de Dejours engloba conceitos tanto da Psicanálise quanto da Teoria Social, o que vai ao encontro de dois de seus grandes interesses, Psicologia e Economia: “ela integra em certa medida as duas visões que eu desenvolvi a partir de minha formação e prática profissional e clínica”, afirma a pesquisadora.

Da Psicanálise, por exemplo, Dejours toma emprestado o termo “sublimação” (não sendo aqui usado propriamente o conceito psicanalítico de sublimação) para elucidar o modo como o sofrimento do trabalho pode ser transformado em prazer, “reforçando a identidade profissional e pessoal”. A pesquisadora explica que essa transformação se dá pelo reconhecimento não do sujeito em si, mas de seu trabalho: “Na medida em que o trabalho demonstra que o sujeito tem a posse e o domínio do ‘saber fazer’, ele abre passagem para o reconhecimento do ‘ser’”. O reconhecimento do trabalho pelos colegas, superiores e clientes oferece o sentido de pertencimento (de possuir um espaço no mundo), além de atestar a utilidade da tarefa realizada, e, portanto, a contribuição do trabalhador para a organização.

Ao falar sobre o participante da pesquisa que mostrou estar bem adaptado em uma grande multinacional, Estair ressalta que a companhia na qual ele trabalha “é uma empresa que valoriza o esforço, que reconhece.” Assim, continua a pesquisadora, “ele tem prazer em trabalhar, apesar de ser sofrido”, devido às constantes e crescentes exigências. Ela ainda informa que na fala desse entrevistado foi notável a sua preocupação, como líder de equipe, com a política de desenvolvimento de pessoas, demonstrando ser essa uma de suas importantes atribuições e também um dos valores prioritários daquela corporação. Já o participante que mudou de carreira mesmo abrindo mão de uma boa remuneração, vivenciou o que é conhecido como ‘gestão pelo medo’. A empresa demitia por qualquer motivo, desligava as catracas para não computar a permanência de funcionários virando a noite, estipulava objetivos e prazos irreais, e seu único meio de retribuição vinha em forma de bônus financeiro, caso a meta fosse atingida.

Cinismo viril e realismo econômico

Tanto os incentivos da primeira empresa quanto os métodos coercitivos da segunda estão inseridos na lógica do sistema de produção vigente no Brasil e em grande parte do mundo: o capitalismo flexível [veja página anterior]. E é dentro dessa realidade que o trabalhador, como sujeito histórico, deve ser compreendido. Tal visão é uma das contribuições da Teoria Social para a Psicodinâmica do Trabalho. Atualmente, como integrantes do próprio sistema produtivo estão o excesso de trabalho, as altas metas, o risco de desemprego e o comprometimento com a equipe. Para se encaixar e suportar a demanda desse mercado de trabalho, os profissionais podem desenvolver certos mecanismos psíquicos de defesa, como o cinismo viril e o realismo econômico, de acordo com a abordagem de Dejours.

Estair explica que o cinismo viril “representa a situação do trabalhador que percebe objetivamente que não conseguirá realizar o trabalho, mas, mesmo assim, ilude-se subjetivamente de que irá ter sucesso, numa postura de demonstrar que tem o domínio da situação, que não tem medo”. Como no capitalismo flexível se trabalha intencionalmente com um quadro reduzido de empregados para aumentar    a produtividade e consequentemente os lucros, a organização se vale desse tipo de postura defensiva. Em caso do não cumprimento das metas estabelecidas, a empresa responsabiliza somente o trabalhador, “mesmo que saiba que isso não é verdade”, afirma Estair.

Na fala do participante ajustado à lógica da acumulação flexível, aparece a necessidade de saber lidar com tudo ao mesmo tempo, o que ele próprio chama de ‘enxurrada’. Ele diz ainda que é preciso priorizar (admitindo indiretamente que não é possível fazer tudo) e reconhece que muitas vezes adequa sua vida pessoal em função de seu trabalho. Estair comenta que ele “em nenhum momento fala de sofrimento no trabalho, ele se defende do sofrimento que sente”. O participante que mudou de carreira, por sua vez, não mostrou sinais de cinismo viril, apresentando, aliás, uma postura muito mais crítica em relação à empresa na qual trabalhara. Segundo Estair, ele “não se utilizou de mecanismos de defesa para não ver o que estava acontecendo”.

Quanto ao realismo econômico, ele é uma estratégia que de certo modo também reforça a ideia de que tudo depende exclusivamente do trabalhador. Partindo de uma crença de que a economia determina tudo, há uma visão geral de que “as coisas são assim mesmo”, que “a competição no mercado de trabalho existe” e que “é preciso aceitar as condições impostas pelo mercado e pelas empresas”. Ou seja, é o trabalhador quem deve se ajustar. A pesquisadora verificou traços de realismo econômico no entrevistado que se adaptou. “Ele tem  uma tendência de naturalizar o ritmo do trabalho”, afirma Kindi. Ainda segundo a pesquisadora, a flexibilização é  uma tendência, mas não é a única situação de trabalho encontrada no Brasil e no mundo, haja vista a própria carreira acadêmica, opção do entrevistado que não se adaptou. Entretanto, as oportunidades de emprego fora desse sistema estão cada vez mais raras, principalmente para pessoas com menos qualificação, caso da maioria da força de trabalho do país e do mundo. Fica a questão de até que ponto a flexibilidade do atual capitalismo, que se reflete na grande variedade de produtos, serviços e contratos de trabalho, estende-se à também grande variedade de indivíduos.

A flexibilização do capitalismo

Por Tatiana Iwata

Cid Edson Póvoas Flickr Creative Commons2A partir da década de 1970, a crescente automação, o acelerado avanço tecnológico, as crises econômicas e a ascendente globalização são acompanhados pela redução do emprego, aumento da informalidade, flexibilização dos contratos de trabalho e enfraquecimento dos sindicatos. Terceirizações, trabalhos temporários, autônomos, de meio período, estágios, bem como o ressurgimento de antigas práticas de trabalho (produção familiar de Hong Kong, sistema cooperativo da Terceira Itália, etc.)  ocupam  cada vez mais espaço do total de vagas. Em contrapartida, o emprego “convencional”, com maiores ganhos, plano de carreira, benefícios e todos os direitos trabalhistas garantidos vem se reduzindo gradativamente.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2010, cerca de 1 bilhão e meio de pessoas — pouco mais da metade da força de trabalho mundial — possuíam emprego vulnerável, que inclui tanto o trabalho informal como o familiar. Não apenas a produção se flexibiliza, como também o consumo. A demanda por produtos e serviços cada vez mais diferenciados estimula um grande desenvolvimento do marketing, da gestão de recursos humanos e do que é conhecido como trabalho imaterial — serviços voltados à educação, cultura, afeto, etc. Ao contrário do trabalhador objetivo, apto, por exemplo, a atividades repetitivas, exige-se um engajamento mais subjetivo. “Agora você é convocado a participar, a ser criativo, porque você precisa fazer trabalhos em grupo, uma outra configuração, uma outra demanda”, afirma Estair, que continua: “Na verdade, a subjetividade está em alta, de certa maneira”.
Por um lado, esse perfil de ‘profissional criativo que trabalha em equipe’ é benéfico. Ele prioriza a sociabilidade e reaproxima concepção de execução, anteriormente separadas pelo modelo de produção taylorista-fordista e resgatada a partir do toyotismo, segundo Estair. Contudo, existe uma contradição no discurso das organizações: elas querem, ao mesmo tempo, colaboração e competição (inerentes ao capitalismo). O toyotismo implantou também a alta produtividade por meio de empresas cada vez mais enxutas: procura-se ter desde um estoque mínimo até um quadro reduzido de empregados. Esse funcionamento continuamente no limite faz com que haja uma sobrecarga dos trabalhadores, que sempre terão mais tarefas a cumprir do que realmente podem.

Pesquisa de Estair Kindi – clique aqui

Por Tatiana Iwata e Victor Augusto de Souza
Edição e revisão por Islaine Maciel e Maria Isabel da Silva Leme


Veja também:

facebook 2015 logo detail

logo tm1As redes sociais na construção da imagem do sujeito | Pesquisador do IPUSP investiga como pessoas em situação de desemprego utilizam o Facebook e o LinkedIn para construir a própria imagem

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

VOCÊ PODE GOSTAR ...