A situação de confinamento domiciliar, alteração da rotina de trabalho ou estudo, a atmosfera de temor e indeterminação, bem como o fato de que nossa vida psíquica anterior ao coronavírus nem sempre ser um mar de rosas, reúne muitos ingredientes que incrementam a demanda por psicoterapias ou por escutas de apoio e cuidado. O Conselho Federal de Psicologia dispensou psicólogos do credenciamento usualmente requerido para atendimento online, nos meses de março e abril.
Reúno aqui [veja o vídeo abaixo] um conjunto de ponderações e de referências, tanto para aqueles que estão dando seguimentos a tratamentos psicológicos anteriores, agora de modo compulsoriamente virtual, quanto para aqueles que pretendem ou precisam recorrer a este suporte.
Psicólogos que trabalham em hospitais, na saúde geral ou na saúde mental em outros países têm sido lembrado de que o cuidado de si é condição essencial e primeira para cuidar dos outros. Isso implica atenção às condições de trabalho, por exemplo, praticar horários de plantão de forma a racionalizar tanto a circulação dentro da cidade quanto a favorecer o atendimento por telefone ou online.
A Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar manifestou-se pela importância do uso de medidas protetivas (como uso da máscara N95) quando em contato direto com pacientes infectados pela covid-19, mas na situação que se avizinha, nem sempre isso será possível. Daí a importância de se discutir o atendimento à distância como alternativa real. Ainda assim vários de nossos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) têm forçado plantões de cadastro e acolhimento, mas que nem sempre redundam ou progridem para a escuta à distância.
Quando procurar?
Todos estamos sofrendo com a situação pandêmica sem precedentes. O ineditismo pede respostas subjetivas originais, mas também convoca experiências anteriores para o trabalho de simbolização do inesperado. Perdas, contrariedades e perseguições conhecidas são usadas para compensar o nosso desconhecimento de epidemias e guerras. Reações de desamparo e angústia tendem a parasitar o medo e suas medidas protetivas. Mas nem sempre o sofrimento é suficiente para desencadear demanda de ajuda. Aqui existe uma regra, que pode ser adaptada da clínica com crianças. Está brincando? Está muito angustiada? Houve uma transformação súbita em sua atitude, por exemplo de recolhimento ou reatividade? Pais e cuidadores sabem que crescer envolvem momentos difíceis, durante os quais conversamos, pensamos juntos, tomamos medidas e às vezes vamos em frente.
Outras vezes isso tudo é insuficiente, portanto, antes de procurar um profissional experimente mobilizar os recursos “naturais” que temos para enfrentar o sofrimento: a palavra compartilhada, o afeto e a compreensão, a empatia e a tolerância. Não esqueça de usar a inteligência e a sabedoria, própria ou a que buscamos em nossas genealogias e relações.
Quando isso não é suficiente, quando mesmo assim a angústia permanece, considere a existência de um segundo critério, a emergência de sintomas: ideias fixas e circulares, dores, fobias, repetições ingratas. Tudo o que foi alterada para mais ou para menos nas próprias funções psíquicas: humor, atenção, sono, alimentação, sexo ou excreção. Nem toda forma de sofrimento requer tratamento, mas o sofrimento mal tratado, negado ou não reconhecido evolui para a formação de sintomas.
Considere ainda que existem pessoas que, surpreendentemente, vão melhorar com esta situação de perigo e com o recolhimento às suas casas. É o chamado “efeito terapêutico do real”, uma espécie de ajustamento psíquico da reconfiguração da realidade e que permite certa separação, ainda que transitória, de nossos fantasmas, preocupações imaginárias e delírios. Se tal não for o caso, considere procurar um psicólogo, um terapeuta ou um psicanalista. Ninguém precisa colocar-se muito além do que pode suportar em relação à sua própria vida e seus sofrimentos.
Como encontrar um psicoterapeuta neste momento?
Muitas iniciativas de solidariedade estão se formando em torno da urgência e necessidade de escutar tantas pessoas, que por diferentes motivos precisam de ajuda. A maior parte dos clínicos está atendendo por alguma plataforma virtual. Instituições de formação, universidades e sociedades científicas estão se organizando para oferecer disponibilidade de tratamento à distância, mas isso é bastante complexo e exige ações coordenadas que ainda não estão claras. Por isso farei algumas indicações no final desta matéria, usando este espaço para aceitar e agregar outras iniciativas que nos cheguem, considerando diferentes modalidades de psicoterapia.
Psicoterapias têm sua eficácia ligada a duas condições: a potência transformativa do que se fala e a qualidade experiencial da relação entre paciente e psicoterapeuta. Isso significa que há bons terapeutas em todas as abordagens, ainda que algumas dediquem-se a comprovar esta eficácia mais do que outras.
Pesquisas sugerem que os ganhos de uma psicoterapia são proporcionais a qualidade da relação que se forma, principalmente quando predomina confiança, empatia e empenho, mas que, como qualquer tratamento, podem ocorrer efeitos adversos. Se a coisa não vai bem, divida suas razões e partilhe a dificuldade, no fim não hesite em mudar até achar alguém apropriado. Não desista do desejo de melhorar, enfrentando suas inibições e obstáculos psíquicos, ainda que sempre eles pareçam um tanto irracionais.
Recomendações sobre o início do tratamento
Vivemos uma situação de exceção e isso deve ficar claro para todos os envolvidos. Muitos terapeutas têm pouca ou nenhuma experiência com atendimentos a distância. Pacientes vão achar muito estranho compartilhar assuntos íntimos com um desconhecido que se apresenta do tamanho da tela de um celular. Sinceridade e transparência serão condições mais que necessárias para enfrentar a situação. No caso da psicanálise, mas também de muitas abordagens psicodinâmicas, quanto mais à vontade o paciente sentir-se para falar, escolhendo livremente suas palavras e temas, evitando julgamentos e avaliações, melhor.
Do outro lado precisamos de uma escuta aberta, flutuante ou lúdica, o que nem sempre é fácil longe do consultório e da privacidade que ele traz consigo. Aqui a dificuldade maior reside no fato de que nossa preocupação uns com outros, neste momento, precisa acolher transtornos objetivos e temores realísticos, por exemplo, concernentes a saúde, ao abrigo domiciliar e a informações protetivas, bem como ao impacto econômico e relacional incalculável na vida das pessoas.
Uma psicoterapia não deixa de ser ao final um tipo de conversa, mas uma conversa que conta com vários elementos contraintuitivos: nem sempre perguntas são respondidas, nem sempre o objetivo é manter uma comunicação clara, nem sempre seguimos um fio narrativo bem definido. Talvez a melhor definição desta conversa tenha sido dada pelo André Breton, o criador do surrealismo: “uma conversa onde se diz o que se quer e se escuta o que não se quer”.
A criação de outra forma de escutar, que permite redimensionar tamanhos e volumes das experiências narradas, bem como ênfases e repetições em seus pontos cruciais, pode ser difícil na situação de distância e isolamento social, ou de compressão humana e privação de privacidade em certos domicílios.
Os relatos de quem já está empenhado nesta experiência apontam para um cansaço ainda maior do terapeuta nessas condições. Há uma alteração da estrutura atencional, dificuldade de concentração e inquietação com a presença real do outro. Para os psicanalistas isso tem requerido estratégias para manuseio de câmera, de modo a desviar o olhar frontal, muitas vezes sentido como intrusivo, mas permitir a busca e a manifestação e inserção de presença quando isso se faz necessário. A presença do analista, tantas vezes indiciada pela voz, seja por uma interjeição adversativa ou de assentimento, seja pelo olhar, torna-se mais complexa, mas ainda assim não impossível.
Particularmente difícil é a modulação da temporalidade no interior da sessão. Muitas intervenções dependem da maneira exata como o analista parece “soprar palavras” no ouvido do analisante, aproveitando-se dos interstícios da associação livre, ou interromper subitamente a sessão, no caso da prática lacaniana do tempo lógico.
A reconfiguração dos códigos e da temporalidade requer um trabalho de reinvenção e adaptação de tal maneira a mitigar os efeitos e a preponderância do fluxo informacional, que identificamos com os meios digitais. É preciso reaprender a ficar em silêncio e evitar, calculadamente, a parceria imaginária que o meio digital nos habituou, ou seja, responder de maneira cada vez mais acelerada.
Tudo isso requer modificações táticas e invenções criativas de novos modos de dizer. Freud dizia que os pacientes que têm dificuldades com a língua, por exemplo, porque não são nativos naquele idioma tenderão a atribuir a esta dificuldade a certas trocas e equívocos de linguagem. De fato, temos um problema análogo quando estamos na linguagem digital. Muitos desencontros, lapsos e deslizes podem ser facilmente atribuídos às condições muitas vezes instáveis do suporte comunicativo. Mas que não se torne uma desculpa.
Sigilo e privacidade
Muitas pessoas não encontram lugar retirado em suas casas para falar abertamente de coisas que não queremos e no fundo não devemos partilhar com os outros, principalmente quando eles estão envolvidos. Tenho ouvido relatos de pessoas fazendo suas sessões nos jardins, nas áreas comuns dos prédios e até mesmo nos banheiros de suas casas. Inversamente a intrusão das casas dos terapeutas tem dado ensejo a latidos, miados e exposições familiares incomuns na clínica tradicional. Freud já disse que um consultório comporta os barulhos naturais de uma casa. Nada disso altera um grama na relação de sigilo que todo psicoterapeuta deve ter com tudo o que escuta e o cuidado que terá com o destino do que ouve.
Há aqui um detalhe para o qual Claudia Catão[1], pioneira no estudo dos atendimentos psicoterápicos online, tem chamado a atenção e que diz respeito ao fato de que muitas plataformas como Skype, Face-Time ou WhatsApp não são dotados de sistemas de encriptação capazes de garantir a imunidade e proteção do que está sendo transmitido. No entanto, considerando riscos e benefícios, além da emergência que enfrentamos este parece ser o caminho mais viável.
Pagamento
A situação de quarentena coloca uma repactuação geral de nossos processos econômicos, e penso que isso envolve a forma como terapeutas negociam honorários conforme a situação de cada paciente. O que vem se disseminando, principalmente a partir dos que vem de experiências como as Clínicas Públicas de Psicanálise, como a que ocorre na praça Roosevelt em São Paulo, e do projeto Escutatória é uma espécie de moratória em torno do tema.
Enquanto isso for suportável para as partes envolvidas e até que tenhamos uma ideia de como salários, contas e pagamentos serão renegociados, seria prudente adiar o assunto e privilegiar as demandas de urgência subjetiva, a não ser que isso seja imprescindível para alguma das partes.
Ética e compromisso
Quem tem alguma experiência em atendimento de pessoas que passaram por catástrofes coletivas ou comunidades afetadas por acontecimentos disruptivos de grande impacto psicológico sabe que no primeiro tempo costuma haver um afluxo de profissionais voluntários, chamados pela comoção representada pelo fato.
Sabemos também que os momentos mais difíceis de atravessar não são, necessariamente os primeiros. Muitas vezes é no segundo tempo, no qual a situação porventura se “normalizou” do ponto de vista da rotina social, que incide a maior valência patológica. Pesquisas em torno dos efeitos psíquicos de quarentenas erguidas por ocasião da epidemia do ebola, na África, ou do H1N1, mostram que efeitos deletérios podem vir depois de até três anos do fim do isolamento. Por isso é importante tentar definir o escopo da intervenção, o número ou o propósito imediato dos encontros de escuta.
Se precisar de referências asseguradoras procure instituição ou o lugar onde a(o) psicoterapeuta fez sua formação e discuta isso francamente nas primeiras sessões. Recomenda-se que todo tratamento comece por um período de ensaio e avaliação mútua, antes de discutir compromissos e condições práticas.
Evite sites ou instituições que não apresentam o nome dos envolvidos, referências sobre seus percursos de formação específica em práticas psicoterápicas ou definições imprecisas dos métodos clínicos empregados. Combinações com práticas educativas, religiosas ou de aconselhamento moral nem sempre são a melhor alternativa. Considere procurar um profissional ligado a alguma instituição, pública ou privada, que agirá como fonte de controle difuso sobre as práticas daquele que a ela se vincula.
Grupos indicados
Aqueles que apresentavam uma situação psíquica de maior gravidade ou urgência deveriam considerar a continuidade de seus tratamentos psicológicos ou psiquiátricos por telefone ou online. Encontrar os meios para que isso aconteça é uma tarefa de ambos e já faz parte do tipo de cuidado consigo que nos remete ao tratamento da angústia da quarentena.
Muitos profissionais de saúde queixam-se da sobrecarga de trabalho, de momentos de estigmatização social e da distância que se veem obrigados a imprimir em relação aos familiares. Cuidar dos que cuidam dos outros e isso inclui aqui profissionais da saúde, mas também da segurança pública, do jornalismo e da educação é uma prioridade.
A noção de rede, na qual um elemento que está em contato de apoio com outros tantos ramos e “entroncamentos”, merece atenção focada porque dela dependem os elos mais frágeis. O tratamento em rede, conceito amplamente consagrado em saúde mental, pode ser empregada aqui de forma aproximada, abarcando os recursos hoje disponíveis nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), coordenados com os recursos privados ou da saúde suplementar.