Assim como Petra, de ‘Terra e paixão’, conheça relatos de quem se viciou em remédios controlados

Petra, interpretada pela atriz Debora Ozório (na imagem), é viciada em medicação para dormir — Foto: Shutterstock e Jorge Bispo

No início, eram apenas duas gotinhas. A decoradora Rafaela Chaves, de 48 anos, encontrou no medicamento clonazepam, conhecido pelo nome comercial de Rivotril, a solução para aplacar as angústias provocadas por crises de pânico, 20 anos atrás. Desde então, a dupla é inseparável. “Sou viciada mesmo. De manhã, se estou muito ansiosa, são duas gotas. À tarde, se continuo, outras duas. E, para dormir, mais duas. Tenho uma amiga parceira de Rivotril, e nos chamamos de ‘Rivosisters’. Minha vida é baseada nisso”, explica, fazendo piada.

Vício, porém, é coisa séria. O de Rafaela começou após a morte do pai, há três anos, e se intensificou ao enfrentar o AVC sofrido recentemente pelo marido. “Sou ansiosa e trabalho muito. O remédio me ajuda a dormir”, diz. Apesar de ter acompanhamento médico, a decoradora não faz terapia. Explica que não encontrou um profissional com quem gostaria de se abrir. Sua fala reafirma os dados da pesquisa Panorama da Saúde Mental, divulgada em agosto pelo Instituto Cactus e Atlas Intel: 5% dos brasileiros recorrem a psicoterapia; em contrapartida, 16,6% usam medicação reguladora de humor, categoria que engloba os tarjas pretas, de efeito calmante ou psicoestimulante. Já o Conselho Federal de Farmácia apontou que, entre 2017 e 2021, a venda desses medicamentos aumentou 58%.

A decoradora Rafaela Chaves — Foto: Arquivo pessoal

A decoradora Rafaela Chaves — Foto: Arquivo pessoal

“A facilidade com que se receita esses remédios no Brasil, sem mediação de psicoterapia ou acompanhamento psiquiátrico é muito alta. Eles provocam dependência e tolerância”, afirma Christian Dunker, psicanalista da USP. Ou seja, o usuário precisa de doses cada vez mais altas para ter o mesmo resultado. Dunker ainda explica que, nos últimos 50 anos, a população absorveu a ideia de que os transtornos mentais são como uma “diabete mental”. “O pensamento é: ‘Isso é genético e não tem nada a ver com a forma de vida que levo’. Nos acostumamos a isso, sem o resultado curativo apresentado”.

O saldo é uma população hipermedicada, principalmente nas classes média e alta. De acordo com a IQVIA, consultoria global que reúne dados do setor farmacêutico, entre setembro do ano passado e agosto deste ano, foram vendidas mais de 46 milhões de caixas de medicações classificadas como hipnóticas e sedativas. Uma delas é a substância zolpidem, indicada para insônia.

A discussão sobre a dependência de calmantes é tão urgente que virou até tema da novela das nove da TV Globo. Em “Terra e Paixão”, Petra, papel de Debora Ozório, faz uso indiscriminado de remédios para dormir. “É mais comum do que imaginamos, e nem todo mundo tem consciência dos riscos. O vício pode começar com um tratamento médico, para dormir melhor ou se concentrar mais”, diz a atriz. A promessa de uma solução definitiva aliada à desinformação, acredita, faz com que as pessoas encarem os remédios como um milagre. “É tão grave como qualquer droga ilícita”, reflete Debora.

Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP — Foto: Arquivo pessoal

Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP — Foto: Arquivo pessoal

A venda de remédios na internet, sem receita, acontece com facilidade, principalmente em grupos do Telegram. O preço cobrado chega a ser o dobro do valor das farmácias. Secretária bilíngue, Maria (nome fictício), de 27 anos, frequenta dois deles. Além do clonazepam, faz uso do zolpidem com frequência. “É mais prático do que marcar médico periodicamente para pegar receita. Há um ano estudo para concurso, e se não tomo remédio, não consigo me acalmar e dormir”, lamenta.

Para o psiquiatra Ricardo Krause, além da discussão sobre a dependência em si, é importante um recorte de gênero e jogar luz sobre a estigmatização das usuárias mulheres. “Elas têm vergonha de pedir ajuda. Na definição social da identidade feminina, muitos dos papéis são baseados nas relações. Ela é a filha, a irmã, a mãe, a colega de trabalho. Quando a mulher sai de um deles para ser a ‘viciada’, isso compromete seus relacionamentos”, elucida.

Um das crenças importantes a serem desmistificadas é a de que “desmamar” aos poucos pode fazer com que o paciente volte ao estado inicial de seus problemas emocionais. “É possível fazer isso com substâncias que reduzem a ansiedade sem causar dependência, devagar, respeitando o tempo da pessoa”, diz Krause. E por mais que haja resistência, há dois elementos muito importantes — e conhecidos — para implementar ao estilo de vida. “As pessoas não levam em consideração, mas os exercícios físicos e boa alimentação ajudam muito nesse processo”, finaliza.

Por: Laís Rissato, O GLOBO, 19/10/2023