O Diálogo da Psicanálise com a Política e a Religião

No IPUSP, especialistas discutem a relação que existe entre as três esferas sociais

O Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise do IPUSP (Latesfip) e a Editora Annablume têm promovido no Instituto de Psicologia da USP a série de debates “Universidade: Misérias do Presente, Riqueza do Possível”, e o segundo evento do ciclo teve como tema “Psicanálise, Política e Religião”.

Professor Christian Dunker – Foto: IPComunica

A mediação foi feita pelo Prof. Dr. Christian Dunker (PSC/IPUSP) e o debate contou com a presença de José Roberto Lins, da Editora Annablume, e os representantes: Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista; xeique Houssam Ahmad El Boustani, consultor da CIFA (Centro Inter-Fé das Américas para Diálogo e Educação) e do Instituto Futuro do Brasil; e Angélica Toste, do coletivo Espiritualidade Libertária.

Em sua fala de abertura, Dunker questionou quem estaria fazendo o trabalho dos psicanalistas de lidar com os conflitos sociais e quais seriam os “recursos naturais” que as comunidades humanas possuem para tratar o sofrimento. Segundo ele, a resposta se encontra sobretudo no trabalhos e na experiências religiosas. E que o evento buscou discutir de forma prática, com a participação de três representantes de religiões históricas (a muçulmana, a judaica e a cristã) que há séculos vêm enfrentando problemas análogos aos da psicanálise.

O acadêmico e o religioso

Michel Schlesinger – Foto: IPComunica

Michel Schlesinger enfatizou o papel da religião na academia, tendo como base o livro “Sapiens”, do Prof. Yuval Noah Harari, segundo o qual as religiões são baseadas na ideia de que a sua tradição possui respostas definitivas para todas as questões. E se, uma questão não é contemplada pelas escrituras sagradas ou pelos sacerdotes, não poderia ser considerada uma pergunta relevante. Já a academia se baseia em verdades provisórias. E, assim, nenhuma resposta é definitiva, e qualquer possibilidade pode ser questionada, pois tudo é objeto de reflexão.

Para Schlesinger, a religião tem muito o que aprender com a ciência porque aquilo que está respondido nos livros ou pelos sacerdotes é apenas uma das visões entre tantas outras. Estamos em um momento no qual é importante estabelecer bases para uma  sociedade que possa conviver com diversas verdades e visões sobre o mesmo tema. Por outro lado, a academia também teria o que aprender com a religião: aceitar a existência de questões que não conseguirá constatar de forma empírica e que tal fato não exclui sua relevância.

O repensar sobre a religião

Angélica Toste – Foto: IPComunica

A teóloga Angélica Toste comentou o fato de que a pluralidade também existe dentro da própria religião. Para ela, existe um cristianismo de centro, que se pauta no fundamentalismo, nos discursos de ódio e intolerância, mas esse fenômeno não é necessariamente ligado à religião em si. E, por isso, existem os cristianismos de fronteira, que são os construídos no periférico junto a outras identidades, e por isso ultrapassam o cânone ocidental, patriarcal, branco, heterossexual e capitalista. “Acreditamos naquilo que somos, nossa religião é nossa imagem e semelhança.”

Sob certas circunstâncias, tal postura faz com que o religioso esteja aquém da própria margem, pois é excluído da religião que acredita e da posição política que defende, já que essa rejeita a religião e os crentes de seus diálogos. Assim, esse cristianismo tem de estar em constante negociação com as fronteiras religiosa e política.

O religioso e a política

Xeique Houssam Ahmad El Boustani – Foto: IPComunica

Para o xeique Houssam, do ponto de vista islâmico, religião significa haver uma relação de respeito entre servo e Deus. Política, que em árabe significa “siasa” e vem do verbo “servir”, “apoiar” e “ajudar”, é servir e apoiar qualquer membro da sociedade. Logo, a política e a religião não são esferas separadas.

Segundo Houssam, já que, no Alcorão, Deus preparou um paraíso na Terra para os humanos e eles  são os responsáveis para mantê-lo como “um lugar maravilhoso”, também é dever dos homens fiscalizar e cobrar os serviços oferecidos pelos políticos, e não permitir que usem de tal posição para se privilegiar.

Falar de minoria e maioria não faria sentido para o islamismo. Se somos todos iguais perante Deus, todos faríamos parte de uma maioria se considerássemos nossa nacionalidade, país, etnia etc. Assim, o que nos diferiria um dos outros seriam as nossas “obras”, nossas realizações feitas em vida. No entanto, Houssam esclarece: “Existe, infelizmente, uma barreira entre teoria e prática da religião, assim como existe uma grande distância entre a política em si e a prática da política.  Qual o nosso papel? Adaptar teoria e prática da melhor maneira possível. Por quê? Porque, se você mal pratica a religião, significa que você mal está representando a Deus. Se o deputado mal pratica a lei, ele mal representa a constituição, e para cada um de nós é a mesma coisa”.

Após as falas de cada convidado, foi aberto o espaço para o público realizar suas perguntas. Veja abaixo algumas questões. Assista na íntegra ao vídeo em https://www.youtube.com/watch?v=3k7Rifpmi5E

“Como objetivamente tratar aquele que abusa da fé das pessoas, instrumentalizando-as com fins políticos? Como ajudar as pessoas comuns que depositam sua confiança em líderes que direcionam o seu pensamento? Como defender as pessoas que estão mais vulneráveis a esse tipo de situação?” – Christian Dunker

Michel Schlesinger afirmou que ser um estado laico não significa excluir a religião do debate democrático. Ele acredita que as religiões têm algo a contribuir, porém elas não devem sequestrar a pauta, e sim ser mais uma das vozes. “Não cabe a líderes conduzir seus adeptos a votar nesse ou naquele candidato, não acho que seja construtivo. Eu acredito que nós [religiosos] temos que ser mais uma voz nesse mosaico da sociedade e acredito que os líderes precisam ser bastante cuidadosos com relação aquilo que declaram, porque precisam saber que a sua palavra tem o potencial de influenciar muito a decisão das pessoas. Eu recomendaria que os seguidores falassem de valores e não de partidos e candidatos.”

Em sua resposta, Angélica Toste conta que cresceu em um ambiente como o retratado por Dunker, ”Eu nasci numa igreja em que há um candidato eleito deputado e uma vereadora aqui de São Paulo, e que era falado no púlpito declaradamente em quem votar e em quem não votar”. Ela relata que existe um movimento evangélico denominado Contra o Voto de Cajado, que se coloca contra esse tipo de prática. Além disso existe uma organização chamada Rede Fale, que lidera essa campanha em combate a manipulação de votos. E explica que o fortalecimento dessas religiões conservadoras se deve ao fato delas usarem uma linguagem que atinge melhor o público comum. “Por que a Teoria da Libertação não está mais na periferia? Porque ela ficou com uma linguagem de esquerda científica acadêmica e não consegue mais dialogar com uma periferia que hoje conversa muito bem com as religiões neopentecostais de origem bem conservadoras”, então para ela se torna necessário retomar uma leitura de Bíblia que sirva para libertar e não oprimir, e que seja acessível às pessoas. “É falar sobre ética e sobre princípios, não sobre o que fazer e o que não fazer.”

Xeique Houssam contou que, em 1994, foi criada a Ordem dos Sábios do Islã do Brasil, a qual ele presidiu por seis anos e que representa os muçulmanos no Brasil. Durante sua gestão, ele recebia muitos questionamentos, como: “se um muçulmano se candidatar à política, devemos votar nele? Devemos sabotar outros candidatos para que ele ganhe?” Ele responde: “Esse pensamento é uma mentalidade de um atraso de vida. Você deve votar naquela pessoa que merece seu voto”.

Mesa durante o debate – Foto: IPComunica

“Aqui no Brasil é perceptível que as religiões têm sido vítimas de uma espécie de ‘sequestro ideológico’ por parte de grupos políticos. Quais as ferramentas que as autoridades religiosas deveriam ou poderiam utilizar para evitar o fantasma do fundamentalismo e que seguidamente é outorgado à religião?” – Gabriel Binkowski, pós-doutorando do Latesfip

Angélica concordou: “Há um grande desafio para se livrar desse ‘sequestro ideológico’. [O cristianismo] foi tão embargado e os significados sofreram tantas mudanças, que realmente hoje temos que justificar por que ainda somos cristãos”. O esforço que deveria ser feito, seria o de disputar esse espaço da leitura da Bíblia, para que essa narrativa do “sequestro ideológico” não seja a dominante. “A pessoa que vai desafiar a hegemonia dentro do cristianismo vai sofrer penalidades do centro cristão, mas acredito que esse é um processo de indivíduo por indivíduo, não institucional.”

Xeique Houssam acredita que a resposta para o “sequestro ideológico” se encontra na educação, e para isso a universidade tem papel essencial. “É necessário formar gerações sábias, ninguém pode manipular uma geração sábia. Quem enxerga, quem tem visão ampla não entra em uma igreja mudo e sai surdo.”

“O debate que foi posto hoje aqui, é muito contextual para o que está acontecendo no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará. A nossa linha de pesquisa é de direitos humanos e nós estamos enfrentando um dilema que ainda não temos uma resposta. Existe um professor da universidade que está orientando uma aluna de mestrado que se propõe, a partir de uma suposta perspectiva jusnaturalista, defender a tese de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria um risco a sociedade. Esse é um grande debate que ainda não temos uma resposta e eu queria ouvir a opinião da mesa sobre isso”– Hugo Mercês, pós-graduando da UFPA.

Michel Schlesinger esclarece que depois da destruição do segundo Templo de Jerusalém pelos Romanos até a criação do Estado de Israel, nunca houve no mundo um país majoritariamente judaico, logo, os judeus viveram sob governo de não-judeus na maior parte da sua história e por isso desenvolveram o conceito de que “a lei do país é a lei”.

“Nós, como comunidade judaica, temos o direito e o dever de contribuir para o debate [político], quando a lei é decidida e determinada, temos o dever como cidadãos daquele lugar de segui-la”. E em relação ao mestrado, xeique coloca “O discurso de ódio pode estar presente em qualquer defesa de opinião. Nenhuma censura prévia deveria ser aplicada a qualquer espécie de posicionamento e ao mesmo tempo, dependendo da maneira como se justifica algo, existem limites. O ódio não pode ser admitido.”

Porém, para Angélica existem leis e leis, e algumas devem ser sim desafiadas. “constatando a realidade do país onde gays, lésbicas e trans morrem, eu acho que é realmente perigoso você mascarar uma ideologia religiosa com uma maquiagem acadêmica para destilar um ódio que não é na linguagem, mas sim no conteúdo. Eu posso falar de uma maneira muito bonita, mas o meu conteúdo ser um conceito que é a favor de uma morte que pode não ser apenas física, mas também uma morte social e psicológica”. E afirma que é necessário tomar cuidado com o conceito de “pluralismo” porque ele pode deixar brechas para discursos que não promovem a vida.

Dunker esclarece que é necessário entender e argumentar o próprio debate na nossa cultura e que a posição da universidade mostra a existência de uma certa debilidade do que se entende por debate atualmente. “Não é por que a liberdade de expressão me está garantida que eu posso, por exemplo, defender um partido nazista”. E que a atenção sobre isso precisa ser redobrada dentro da academia, já que “basta uma pessoa dizer algo na universidade que podemos usar isso para exercer autoridade e oprimir as pessoas. É preciso formar pessoas para um debate que tem suas regras, tem a sua história e tem as suas metas regras”

Xeique Houssam diz que a visão islâmica é clara: “Em primeiro lugar, o valor da vida. Não podemos praticar qualquer coisa que deixe vida em risco”. É necessário compreender que a questão abrange dois ambientes: o acadêmico e o popular. “Assuntos como estes devem ser tratados em um ambiente acadêmico neutro, [os professores] não podem influenciar o estudante com o próprio pensamento religioso ou ideológico. Isso é perigoso, pois inflama e incentiva, indiretamente, o ódio contra certos grupos da sociedade”. Há também nesse sentido uma hipocrisia no meio religioso ao valorizar o valor da vida, mas praticar o contrário.

“Nos consultórios existem muitos casos de pessoas que chegam opressas pela religião, são pessoas vulneráveis que acatam o que é dito de forma extremamente rígida, o que acaba gerando problemas, neuroses e conflitos nelas. Ela pergunta como a banca vê essa questão.” – Andreia, psicanalista

Michel diz que a religião pode ser o alicerce e a base para normalizar comportamentos que eventualmente se tornam doentios, e nesse sentido alerta sobre a responsabilidade que os líderes religiosos têm, já que lidam e exercem poder sobre outras pessoas.

“A primeira coisa é reconhecer que religião é poder.” As lideranças religiosas possuem muita influência e precisam utilizá-la da maneira mais responsável possível. “O líder está trabalhando com o seu próprio ego constantemente, está o tempo todo sendo elogiado Se ele não estiver muito de bem consigo mesmo, pode direcionar essa vaidade para um lugar muito doentio. Então eu recomendaria a autoanálise frequente ou qualquer que seja o caminho para se conhecer mais profundamente e poder atuar de uma forma mais responsável.”

Dunker comenta que esses casos clínicos são os mais difíceis de intervir, “É aquela pessoa que você vê que está sofrendo muito com essa interpretação de que ‘tudo que lhe acontece de ruim é porque lhe falta fé’”. Então o clínico vai convidar o paciente a refletir sobre suas crenças e colocar alguns valores em questão, mas ao mesmo tempo que se procura ajudar, o profissional pode se tornar uma ameaça à fé do paciente. Dunker diz que quadros clínicos como estes deviam ser mais discutidos na comunidade psicanalítica.

Xeique Houssam explica que a beleza da religião se encontra na simplicidade. “Quando, em nome da religião, alguém começa a complicar sua vida saiba que isso não é religião, e sim influência do próprio religioso”

O que é o coletivo “Espiritualidade Libertária”? Há algum diálogo com religiões de matrizes africanas? – João, um dos participantes

Angélica explicou que o Espiritualidade Libertária há 10 anos faz reuniões para discorrer sobre diversos tipos de fé e religião. O grupo é composto por membros de diversas crenças, entre elas, as de matrizes africanas, logo, também é intrínseco ao debate do coletivo discutir os temas que as envolvem. E por fim ressalta que existem muitas similaridades com os cultos neopentecostais e os cultos de matrizes africanas, onde o corpo se faz presente como meio de contato com o divino. Os encontros acontecem uma vez por mês, normalmente ao sábados.

“Em duas afirmações de Freud – ‘a neurose é uma religião individual’ e ‘religiões são uma neurose universal’ –, o psicanalista tinha em mente as religiões patriarcais ao fazer essas definições. Como a mesa considera o tema do patriarcalismo nas religiões e a “ambição universalizante” de criar a religião das religiões, ou seja, uma metarreligião.” – Christian Dunker

Em resposta, Michel volta a citar o livro “Sapiens”, do Prof. Harari, e diz que nesse mesmo livro o autor explica que o grande salto que a humidade deu em relação às outras espécies veio da cooperação, da habilidade de trabalhar em conjunto. E a religião teve um papel muito importante devido ao seu aspecto universalizante que une as pessoas. Ao mesmo tempo, embora exista algo coletivo na religião, ela também é individual, pois a maneira que cada praticante expressa a sua religiosidade é única e particular.

Para falar sobre a questão de Deus como “pai”, Angélica cita uma teóloga chamada Ivone Gebara, que defende a não idealização da figura paterna e materna, mas sim um Deus como mistério da vida, um Deus que vai além da questão de gênero. “A religião com que eu convivo é a que assume um Deus misterioso. É uma tentativa de abandonar essa palavra ‘Deus’ que está desgastada, e encará-lo como um mistério da vida que não sabemos o que é, mas que dá sentido à nossa existência.” E explica que, para a teologia feminista, seria necessário questionar por que Deus é representado como homem na Bíblia. Ela cita o teólogo Paul Ricoeur, que encara o texto bíblico como um testemunho, e esse tipo de escrita seria passível de julgamento, pois carregaria a influência do corpo que o escreveu. E no caso, a Bíblia foi escrita por um corpo masculino, então se tornaria necessário a disputa da narrativa pelas mulheres. E seria importante mostrar que Deus seria maior do que o retratado na Bíblia, pois o livro sagrado seria somente um dos fragmentos de um mistério muito maior, do qual o feminino também deveria fazer parte.

O xeique Houssam explica que no islamismo a religião é sempre considerada coletiva, e, mesmo quando se faz as orações individuais, em casa e sozinho, elas deve-se falar com Deus sempre no plural, “deve falar com Deus como se fosse plural: te adoramos, e não te adoro”. E sobre o Deus como homem, diz que não cabe aos humanos responder sobre qual é o sexo de Deus, já que essa é uma questão metafísica e que tal fato não interfere na prática religiosa, o que importa é o que foi dito por Deus e revelado pelos profetas.

Por: Mariana Navarro

Edição: Christian Dunker e Islaine Maciel

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