A inserção da Lei de Cotas e as políticas de ação afirmativa, como as bolsas de permanência estudantil, possibilitaram uma presença maior de pessoas de baixa renda, negras e moradoras de periferia nas universidades. Porém, o protagonismo e espaço para a produção de conteúdo dessas pessoas ainda é limitado nesses espaços. Frequentemente, as periferias são tratadas como objeto de estudo por pesquisadores da academia que não fazem parte das comunidades e se apropriam de vivências e tradições para fins acadêmicos.
Procurando questionar a natureza da relação entre universidades e periferias, Angélica Gonçalves Garcia desenvolveu o doutorado Histórias de vida, histórias de luta: as memórias das lutas populares nas periferias de São Paulo, por meio do Programa de Pós-Graduação Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades. O programa interdisciplinar de pós-graduação, que é mais conhecido como Diversitas, reúne diferentes faculdades da USP, como a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), a Escola de Comunicaçaões e Artes (ECA), a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), a Faculdade de Direito (FD), o Instituto de Psicologia (IP) e a área de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina (FM).
Sob orientação do docente Luis Guilherme Galeão da Silva, do IP, a pesquisadora apresentou espaços, dentro das universidades, para que as pessoas das periferias pertencentes à comunidade universitária pudessem produzir conhecimento e participar ativamente de debates e dinâmicas acadêmicas, a partir de uma perspectiva colaborativa. Ela concluiu que são raras as propostas de produção partilhada do conhecimento e que valorizem as vozes, histórias e saberes das periferias. O estudo evidenciou também o desequilíbrio que há no tripé universitário ensino-pesquisa-extensão, ao revelar o exotismo presente nas universidades que visam tratar as periferias somente pela ótica da pesquisa. Esse desequilíbrio acaba, por conseguinte, tornando as periferias e as universidades cada vez mais separadas.
“No âmbito da pesquisa, sempre foi mais importante levar esses debates dentro da universidade: o debate da relação que a universidade estabelece com as periferias e que tipo de relação é essa – quando a gente vai fazer uma pesquisa na periferia, a gente está respeitando a autonomia, autoria e os saberes daquelas pessoas ou estamos indo como detentores do saber tentando colonizar essas pessoas?”, questiona Angélica, graduada e mestre em Economia pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP.
Angélica, que viveu na periferia até os 24 anos, estudou a mobilização na periferia em prol de melhorias e investimentos públicos em espaços que historicamente conquistaram avanços, como creches, escolas, hospitais, asfaltamento de ruas e linhas de transporte público.
A pesquisa procura também contar a trajetória do Centro de Memórias das Lutas Populares Ana Dias e do podcast Memórias Quebradas, projetos desenvolvidos por residentes de bairros periféricos de São Paulo, que produziram em conjunto um registro das mobilizações populares e memórias da comunidade, que resultaram no protagonismo de jovens da periferia dentro da Universidade. Financiado pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB) da USP, os organizadores do podcast, Lucas Leonel e Saulo Vilanova, estudantes de Letras na FFLCH, já foram também entrevistados pelo Jornal da USP, revelando o potencial criativo e autoral que as periferias carregam. A Universidade apresenta-se, assim, como incentivadora dessas produções ao oferecer um novo espaço, o de protagonismo.
Confira os episódios do podcast Memórias Quebradas: um podcast à margem sul da história, disponíveis no Spotify: Ep1 e Ep2
Procurando romper com o apagamento das narrativas oficiais, filmes e livros – sendo esses, também, reflexos das produções acadêmicas – a autora do estudo justifica a importância do registro das mobilizações e vivências periféricas. Dessa forma, a tese busca discutir a importância das lutas populares e a relevância da criação de conteúdos e registros partilhados na periferia em uma posição de autoria e protagonismo, na qual a Universidade atua como colaboradora das criações.
“O impacto para as pessoas que participam é justamente o reconhecimento dos saberes, da história e das opiniões, uma vez que estamos falando de uma periferia que sempre foi estereotipada, estigmatizada, excluída e discriminada. O impacto ao grupo que produz o podcast é justamente ocupar outro lugar e ter a oportunidade de ser reconhecido e valorizado, no movimento contrário da estigmatização e do preconceito”, afirma Angélica.
De acordo com a pesquisadora, o trabalho ressalta a importância do resgate das histórias individuais, pois elas compõem as histórias coletivas de São Paulo, uma cidade que está em constante processo de transformação. Em certa medida, a tese procura reivindicar um espaço de produção e criação autoral das vozes da periferia dentro de espaços acadêmicos.
Por: Alice Elias, para o Jornal da USP, 26/05/2023