Viralizou, no TikTok, Instagram e X (antigo Twitter), uma trend em que adultos, geralmente mães e pais, incentivam crianças a falar palavrões em “segredo”, em cômodos fechados. O adulto liga a câmera, diz que vai deixar o local e afirma que a criança pode dizer o que quiser, sem ser repreendida. Os vídeos são publicados depois nas redes sociais.
Os posts têm provocado diferentes reações. Parte dos usuários do TikTok, Instagram e X considerou os vídeos fofos e engraçados, além de serem um meio para permitir que as crianças sanem a vontade de usar palavras proibidas. Outros criticaram a exposição das pessoas filmadas e o incentivo dos pais a esse tipo de brincadeira.
Neste texto, o Nexo explica os possíveis efeitos do incentivo ao uso de palavrões da forma como a trend faz, com base na avaliação de educadores e psicólogos que comentaram os casos. Mostra também quais podem ser as consequências para as crianças da exposição desses vídeos nas redes sociais.
Os usos do palavrão
Usar palavrões afeta a maneira como as pessoas pensam e agem. O ato de xingar está associado à catarse e à liberação de sensações fortes. Estudos mostram que proferir essas palavras em voz alta traz maior tolerância à dor e é uma forma importante de responder a emoções em períodos como a adolescência.
Não há consenso, no entanto, sobre quais são os efeitos de práticas como a da trend que viralizou para crianças. Para a pedagoga Sofia Lisboa, que comentou o caso no X, a exposição dos vídeos nas redes sociais é desnecessária, “mas a ideia de criar um espaço em que elas têm permissão para se expressar de maneira ‘reprovável’” é interessante. “Em vez de só reprimir, criar um espaço pra criança extravasar o que sente sem ofender nem machucar ninguém é ótimo”:
Outros discordam do incentivo ao palavrão. Natalia Angelo, terapeuta materno infantil que produz conteúdo nas redes sociais, disse no Instagram que a “brincadeira” pode contradizer aquilo que foi ensinado ao filho antes — que “não pode” falar palavrão — e confundi-lo sobre o que é certo e errado. “Uma das questões mais importantes na educação é a repetição, a constância. Como fica isso para o seu filho?”.
Além disso, há outras formas de extravasar a raiva, segundo Leila Salomão, professora no Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo). “As crianças podem fazer isso brincando”, disse ela ao Nexo. “[A trend] é uma forma de estimular a violência num momento em que temos que estimular o diálogo, a solidariedade e a compreensão.”
A criança pode ter um espaço para expressar o que sente, mas estimular a falar palavrão trancada no quarto não é a melhor forma. Ela pode acabar levando isso para outros contextos [como a escola]. Como é que a criança não vai generalizar?
Leila Salomão
Professora no Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), em entrevista ao Nexo
Os problemas da exposição
Outras críticas nas redes sociais citaram a forma como os pais expõem as crianças nos vídeos, o que é chamado de “sharenting”. O termo se refere à prática de compartilhar de modo excessivo fotos ou outras imagens dos filhos nas redes, com nomes ou dados de identificação. Apesar de muitas vezes serem publicados sem má intenção, esses conteúdos, quando compartilhados, podem submeter as pessoas a riscos.
Entre eles está a possibilidade de as imagens serem distorcidas e transformadas por predadores sexuais, segundo cartilha da Sociedade Brasileira de Pediatria. Pesquisadores também afirmam que a superexposição pode ser constrangedora no futuro, e as crianças devem ser envolvidas nas decisões sobre sua imagem. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) garante o direito à privacidade de pessoas com menos de 18 anos:
[…] a promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada
Estatuto da Criança e do Adolescente
no seu artigo 100, inciso 5
Vários dos vídeos compartilhados na trend do palavrão receberam milhares ou centenas de milhares de visualizações. Memes de uma das crianças que mais fizeram xingamentos em frente à câmera começaram a circular no X. Para a neuropedagoga Mayra Eigenmann, que produz conteúdo para o Instagram, a tendência põe “a criança num lugar depreciativo para gerar conteúdo para adulto rir”.
Relação entre pais e filhos
Fazer crianças participarem da trend também pode estremecer a relação entre pais e filhos, dependendo da forma como ocorrer. Um dos vídeos publicados no Instagram mostra uma menina chorando enquanto a mãe explica a ela como a brincadeira funciona. A criança diz que só conhece um palavrão, sugerindo que não quer ou não consegue participar dela.
Thiago Queiroz, psicanalista, podcaster e produtor de conteúdo sobre paternidade, afirmou também que “uma condição de confiança primária é quebrada com a criança” no momento da publicação do vídeo. O adulto “omite o fato de que vai publicar um vídeo da criança falando isso tudo” ao propor a brincadeira. Num dos vídeos que viralizaram, por exemplo, a mãe promete à filha “guardar segredo” sobre o que ela irá falar:
Por: Mariana Vick, para NEXO JORNAL, 20/02/2024