Todos temos um “lado sombra” da personalidade: o que é e como lidar com ele

Há mais de um significado para o conceito de “sombra” na personalidade, mas antes de esmiuçá-los é importante avisar: todas as pessoas o têm, o que as difere é a maneira com que lidam com ele. “Ter ou não ter um lado sombra não é uma escolha. Ele faz parte de todos nós, se desenvolve a partir das experiências acumuladas ao longo da vida e pode tomar contornos bastante negativos, caso optemos por ignorá-lo”, diz a psicanalista Gisele Gomes, professora de Teoria Psicanalítica Freudiana na RNA Clínica e Escola de Psicanálise, em São Paulo (SP).
A ideia tem origem na psicologia analítica desenvolvida pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). A sombra é tudo o que foi negado, reprimido ou ainda permanece desconhecido pelo indivíduo e está recalcado —ou seja, reprimido — em seu inconsciente, o que também torna sua definição ligada aos estudos do psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939).
De um modo mais simples, podemos definir a sombra como aquele lado da personalidade que acolhe instintos que insistimos em controlar, como a raiva, o ódio e a inveja, entre outros. “Todos nós temos em nosso inconsciente o bem e o mal, mas conhecemos a essa face sombria quando começamos a tornar consciente aspectos que consideramos ‘ruins’ ou ‘errados’, seja por questões educacionais, culturais ou sociais. A sombra é um ‘eu escondido’ cujas manifestações são rejeitadas por nós a todo o tempo”, afirma a psicanalista Andréa Ladislau, do Rio de Janeiro (RJ).
Mesmo reprimido, ele se manifesta
Segundo Marcelo Lábaki Agostinho, psicólogo clínico do IP-USP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), a sombra é algo escondido na vida inconsciente e que, por ser assustador, fica à parte da personalidade. “O crucial não é identificar quando esse lado sombra se desenvolve, mas sim o que fica desintegrado da nossa personalidade e por quê. O que não é elaborado pode surgir como um comportamento estranho, um sintoma, que não pode ser compreendido somente pelas formas racionais de conhecimento, pois envolve os aspectos inconscientes de nós mesmos”, afirma.
Assim, o que rejeitamos em nós mesmos pode vir à tona em algum momento —pensamentos, emoções e impulsos que podem dolorosos, vergonhosos ou tóxicos demais para aceitar. Ressentimento, ciúme, mágoa ou inveja, só para citar alguns exemplos, de repente explodem na forma de atitudes nocivas, conflitos, agressões verbais e até violência física. É fundamental combater o sentimento de culpa por perceber nosso lado sombrio, uma vez que ele também faz parte de nosso ser.
“A questão é controlar e equilibrar para não fugir do que, culturalmente ou socialmente, é considerado ‘normal’ e ético para nossa vivência, sem trazer prejuízos para os outros e para nós mesmos”, fala Ladislau. Se deixarmos a sombra nos dominar e determinar nossos atos, podemos ceder espaço para manifestações neuróticas ou psicóticas, alimentando uma essência maléfica.
Como lidar com isso?

Na opinião de Gomes, o efeito sombra pode ser sutil ou brutal —tudo depende de como as pessoas lidam com esse lado não consciente e imprevisível. “Para exemplificar, todos os dias as pessoas vivenciam algo que lhes traz algum tipo de ‘incômodo’, não é mesmo? Ou seja, convivemos com alguém que não nos agrada em nosso trabalho; assistimos com revolta fatos violentos como um assalto, um homicídio ou um feminicídio; acompanhamos assustados milhares de brasileiros em negação em relação à pandemia do novo coronavírus. Todas essas vivências trazem à tona, mesmo que brandamente, algo do nosso lado sombra, como o desejo de vingança contra um desafeto ou a vontade de

exercer a justiça com as próprias mãos. Essas reações, drásticas ou meramente negativas, se originam nas sombras do nosso ser”, observa.
Uma forma de “eliminar” a sombra é jogá-la sobre ombros alheios. “Aquilo que rejeitamos ou não admitimos em nós mesmos também costuma ser projetado nos outros”, conta a psicóloga e psicanalista Gabriela Malzyner, professora do curso de Formação em Psicanálise do CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos), em São Paulo (SP).
De acordo com Agostinho, algumas pessoas conseguem lidar melhor com o lado sombra do que outras por apresentarem mais facilidade para entrar em contato com o próprio mundo interno. “Pode ser que para elas o sintoma não seja a única forma de entrar em contato com o que se passa na mente e, assim, fica mais fácil se conhecer”, diz. Sob o ponto de vista do psicólogo, aceitar que há essa dimensão desconhecida em si mesmo pode ser uma boa forma de “ficar de bem” com o lado sombra. “Aceitar que não conhecemos tudo, que não temos controle de tudo, que nem tudo está ao alcance da nossa compreensão seria, a meu ver, um bom começo”, aponta.
Por Heloisa Noronha