20 anos da Lei 10.639/2003 e as Relações Etnico-Raciais e o Ensino de Ciências

Esta é a publicação do editorial do número 7 da Revista BALBÚRDIA. O número 7 completo está disponível para baixar aqui.

22 de maio de 2023 | 10:00

Há mais de 20 anos foi promulgada uma deliberação que pode ser considerada um marco em busca da equidade no contexto educacional. A Lei federal de nº 10.639, de 2003, estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história e das culturas afro-brasileira e africana nos ensinos fundamental e médio. Essa conquista foi o resultado do longo processo de luta dos movimentos negros, se refletindo em uma importante ação afirmativa que visa trazer as contribuições dos povos africanos no currículo da educação brasileira (Oliva; Conceição, 2023; Quinto et al., 2022).

Em 2008, a Lei de nº 10.639/03 foi alterada pela Lei de nº 11.645/08, estabelecendo as diretrizes e bases da educação nacional, adicionando a obrigatoriedade da temática indígena na educação básica, o que demonstra a luta dos povos originários brasileiros (Monteiro, 2018). Nesse sentido, essas leis buscam destacar a diversidade cultural presente no Brasil.

Porém, se já passaram duas décadas da promulgação da lei, para que nós necessitamos voltar a discuti-la? A resposta é simples: mesmo após esse período, a sua efetivação ainda não é uma realidade na educação brasileira. Além disso, algumas reflexões e resgates históricos são importantes. No período pós-abolição, o Brasil foi o último país a extinguir o sistema escravocrata. Essa foi uma conquista muito importante, porém, os negros e os indígenas foram abandonados à própria sorte, não havendo nenhuma política pública para axiliá-los no acesso ao mercado de trabalho ou à escola. Ao longo do fim do século XIX, fortaleceu-se uma ideia de hierarquização racial e branqueamento, ainda enraizado hoje, no qual um dos fundamentos foi o conceito científico da eugenia, culminando na formação de sociedades científicas eugênicas e de políticas públicas delas derivadas a partir do início do século XX no Brasil (Bento, 2023). No contexto educacional, a escola passou a ser entendida como um veículo de ascensão social, uma possibilidade de superar as condições de exclusão e miséria provenientes das discriminações raciais que os marginalizam do mercado de trabalho, do sistema educacional, político, social e cultural (Domingues, 2007). Portanto, é possível observar que sempre houve um discurso crítico com relação à falta de políticas públicas educacionais para as populações negra e indígena.

Com destaque, o racismo faz parte da constituição da sociedade brasileira enquanto nação. Enquanto instituição, a escola, portanto, reproduz esse racismo. Todavia, ela é um instrumento poderoso que também pode enfrentá-lo. As leis 10.639/03 e 11.645/08 reconhecem o racismo presente em nossa sociedade e projetam a escola como lugar privilegiado para o seu enfrentamento. Apesar dos avanços no âmbito da legislação, vários estudos têm identificado a dificuldade da implementação dessas leis no sistema educacional, seja da esfera pública ou privada, da Educação Básica ao Ensino Superior  (Oliva; Conceição, 2023; Quinto et al., 2022; Monteiro, 2018). A legislação necessita de melhores instrumentos para a sua efetivação, como propostas pedagógicas e estratégias teóricas e didáticas. Comumente, professores também têm sofrido ataques explícitos e velados por abordarem as temáticas africanas, afro-brasileiras e dos povos originários nas escolas. Ainda há muito a caminhar em relação às estratégias pedagógicas nos currículos escolares.

Essas dificuldades também se refletiram no próprio desenvolvimento da temática do número 7 da Revista BALBÚRDIA, que enfrentou diversos obstáculos. Por exemplo, nenhum dos docentes do PIEC-USP é especialista no tema das relações étnico-raciais, envolvendo as leis 10.639/03 e 11.645/08. Poucos discentes do PIEC trabalham com esse assunto e no próprio corpo editorial da BALBÚRDIA, há uma quantidade pequena de membros que trabalham com esse objeto.

As relações étnico-raciais na educação proporcionam constante discussão entre os membros da BALBÚRDIA. Esse debate levou a um estudo sobre a própria ação da Revista, que resultou na publicação de um trabalho intitulado “BALBÚRDIA de quem? Um estudo sobre gênero e raça em uma revista de divulgação de pesquisas educacionais”. O objetivo deste estudo foi o de  lançar um olhar autoavaliativo para desvelar a representatividade de raça e gênero na Revista BALBÚRDIA. Para tanto, analisamos os marcadores sociais da diferença de raça e gênero dos convidados definidos pela Equipe Editorial nos cinco primeiros números da Revista, publicados nas seções Homenagem, Entrevistas, Espaço Docente e Espaço do Egresso. Os resultados mostram que, em relação aos marcadores de gênero, a BALBÚRDIA tem cumprido o seu compromisso pela representação de gênero na Revista. Entretanto, o mesmo não ocorreu em relação aos marcadores de raça, pois apenas quatro dos 24 convidados são de pessoas não brancas, representando 16,7% do total, sendo que três são negros e uma é indígena. Portanto, nas próprias ações da Revista BALBÚRDIA, há limitações em relação ao debate e à representatividade racial das populações negra e indígena.

Apesar das limitações, a luta em prol da promulgação e efetivação das leis 10.639/03 e 11.645/08 foram fundamentais para se redesenhar e ampliar a agenda antirracista em diversos setores da sociedade brasileira. (Oliva; Conceição, 2023; Quinto et al., 2022).  No âmbito legislativo, várias conquistas foram vistas na década de 2010, como a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial pelo Congresso Nacional, em 2010, e legislação para cargos em concursos públicos na administração federal, em 2014. No âmbito da educação básica, destacamos, em 2004, o estabelecimento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER). Na educação superior, sublinhamos a implementação das políticas de ações afirmativas para estudantes negros e indígenas, sendo instituídas gradualmente ao longo das universidades públicas ao longo da década de 2010. Com o passar dos anos, os estudantes atendidos por essas políticas públicas ocuparam seus espaços nessas instituições, pressionaram por mudanças nos currículos, qualificaram a pesquisa com suas múltiplas contribuições, motivando docentes a se tornarem suas referências bibliográficas e abordagens menos “brancas” e europeias. Dialogando com essas medidas, criaram-se licenciaturas em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros nas universidades públicas, ampliou-se a oferta de disciplinas com essas temáticas nos cursos de graduação e pós-graduação, além da conquista pela criação e a circulação de periódicos com o foco específico nos estudos africanos e afro-brasileiros.

Ainda assim, temos um grande desafio pela frente. Embora possamos afirmar que houve avanços na legislação e no contexto do debate público educacional, a efetividade das medidas no cotidiano das escolas e das universidades ainda não é suficiente. É muito comum a observação de projetos isolados de pesquisadores, docentes ou gestores escolares e universitários, sem que as instâncias públicas consigam criar mecanismos de incentivo da promoção e da avaliação do exercício dessa política de ação afirmativa.

Essas constatações, os estudos e as vivências sobre às relações étnico-raciais fomentaram a delimitação do nosso novo número da Revista BALBÚRDIA, que aborda o tema 20 anos da Lei 10.639/2003 e as Relações Etnico-raciais e o Ensino de Ciências. Na seção Homenagem, apresentamos dois textos: um deles refere-se à memória de Nicea Quintino Amauro, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), uma “mulher negra, professora, cientista, ativista intelectual”, cujo texto foi escrito por Paulo Vitor Teodoro, aluno, colega de trabalho e amigo de Nicea. O segundo homenageado é o professor Alan Alves de Brito, professor da UFRGS, divulgador científico e ativista do movimento negro. Esses professores são inspirações para buscarmos em nossa prática científica, educacional e social exemplos para nos apoiarmos em nossa luta por uma educação verdadeiramente antirracista, igualitária e emancipatória.

Para enriquecer o debate, apresentamos a entrevista com Anna Benitte, professora titular de Química da Universidade Federal de Goiás (UFG), que discute sobre o Novo Ensino Médio a partir de um olhar dirigido para o enfrentamento das estruturas sociais e de poder que oprimem grupos sociais racializados. No Espaço do Docente, Marcelo Tadeu Motokane do PIEC-USP desenvolve uma reflexão sobre a Lei de nº 10.639/03 e a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira no currículo. O professor argumenta que essa lei assume papel crucial ao instigar a reflexão crítica sobre as práticas educacionais e a própria ciência eurocentrada, desempenhando um papel crucial na reformulação dos Projetos Políticos da Educação Básica ao Ensino Superior. 

No Espaço do Egresso, Carlos Mometti apresenta o texto “Reconciliar é decolonizar”. A partir da leitura de diversos autores, Carlos interpreta que a reconciliação é um processo de desconstrução dos aparatos epistemológicos, ontológicos, políticos e sociais, os quais foram sobrepostos aos existentes em nossa sociedade.

Ainda dentro da temática principal do número, trazemos uma série de textos nas nossas clássicas seções. Nos Textos de Divulgação Científica (TDC), apresentamos duas publicações: Pós-verdade na Ciência Moderna e Contemporânea: do surgimento do racismo científico aos dias de hoje, de Lívia Dantas e Por um ensino de evolução humana antirracista, de Anderson Carlos. Na seção de textos de Espaço Aberto, contamos com Seis textos para estudar a Educação das Relações Étnico-raciais (ERER) no Ensino de Ciências da Natureza, escrito por Ana Carolina Ferreira Barbara, Caio Ricardo Faiad, Florença Silvério e Miríel Emma de Jesus Silva, e “Somos uma espécie em viagem”: relatos de educadoras(es) sobre curso em educação das relações étnico-raciais para acolher estudantes migrantes na rede pública, redigido por Carolinne Mendes, Tatiana Waldman Chang e Anderson Carlos. Na resenha apresentamos o texto de Caio Faiad Propostas didáticas para educação antirracista em “Descolonizando saberes: a lei 10.693/2003 no ensino de ciências.

E não paramos por aí: ainda nesta edição, destacamos a entrevista com Ivanise Rizzatti, atual coordenadora da Área de Ensino (Área 46) da CAPES. Ivanise compartilhou parte de sua trajetória profissional, abordando, dentre outros assuntos, questões relacionadas aos critérios de avaliação dos Programas de Pós-graduação e a disponibilização e manutenção de financiamento de bolsas. Também não deixe de ler as seções Balbúrdia Informa e Balbúrdia Indica, além de mais seis outros textos de variados assuntos relacionados à Educação e ao Ensino de Ciências.

Boa leitura! 

Balburdie-se!

Referência

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2022.

DOMINGUES, Petrônio. Um "templo de luz": a Frente Negra Brasileira (1931-1937) e a questão da educação. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v. 13, n. 39, p. 517-534, 2008.

MONTEIRO, Ercila. Pinto. Educação científica intercultural: contribuições para o ensino de química nas escolas indígenas Ticuna do Alto Solimões-AM. 2018. 273f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência) – Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência, Faculdade de Ciências, Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru, 2018.

OLIVA, Anderson Ribeiro.; CONCEIÇÃO, Maria Telvira. Construção de epistemologias insubmissas e os caminhos possíveis para uma educação antirracista e anticolonial: reflexões sobre os 20 anos da Lei 10.639/2003. Revista História Hoje, [S. l.], v. 12, n. 25, 2023. DOI: 10.20949/rhhj.v12i25.1080. Disponível em: https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/1080. Acesso em: 21 nov. 2023.

QUINTO, Antonio Carlos; SAID, Tabita; ROSABONI, Camilly; QUEIROZ, Danilo; SILVA, Gustavo Roberto. Há quase 20 anos, uma lei na educação tenta mudar o quadro do racismo no Brasil. Jornal da USP. [S.I.], 2022.