Circo: reelaboração de uma cultura

Falta de terrenos e retirada dos animais do picadeiro fazem parte das angústias do circense no Brasil

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Foto: L.E.

As particularidades do estilo de vida circense e as dificuldades que o circo vêm enfrentando no Brasil são questões trazidas pela psicóloga Suara Bastos em seu mestrado, realizado no Instituto de Psicologia da USP. Embora o circo faça parte do imaginário coletivo, este é um universo ainda pouco pesquisado no Brasil e com escassos dados oficiais. Dos 26 estados brasileiros mais o distrito federal, apenas Bahia e Pernambuco apresentam projetos de mapeamento sociodemográfico do circo, ambos ainda em andamento.

A pesquisadora, que já foi artista de circo, realizou entrevistas com seis circenses e pediu a eles que tirassem fotos de lugares do circo que lhes fossem significativos. “As fotos complementaram a análise das narrativas e dos diálogos”, explica Suara. Foram retratados desde o picadeiro até uma discreta parte externa da lona, e mesmo a residência de um dos participantes, um “ônibus-trailer” decorado, limpo e organizado — orgulho de seus moradores, de acordo com sua dissertação de mestrado.

Com base no Construtivismo Semiótico Cultural, Suara parte do princípio de que o espaço cultural — neste caso, o circo, no qual um indivíduo se desenvolve é fundamental para o modo como ele construirá os significados ao longo de sua vida. Este espaço cultural, que não se limita ao ambiente físico, é constituído pelas nossas relações com o outro, e “esse ‘outro’ não é necessariamente outra pessoa, pode ser o próprio indivíduo ou um objeto”, afirma Suara.

Andantes mas não errantes

Uma das características mais próprias da cultura do circo é a itinerância. Diferentemente de comunidades nômades, como os ciganos, com os quais às vezes são confundidos, os circenses possuem itinerário predeterminado pelo lugar do próximo espetáculo. E este local, muitas vezes, só fica sendo conhecido no dia da mudança, isso porque deve-se  antes resolver questões como a escolha do terreno e o respeito às normas de cada cidade, podendo sempre dar algo errado na última hora e ser preciso sair à procura de outro lugar. A falta de terrenos bem localizados foi uma das dificuldades apontadas pelos entrevistados. Na Bahia, 34% dos circenses mapeados reclamam da carência de terrenos.

PalhaçoA itinerância acaba por estabelecer muitas das peculiaridades do estilo de vida no circo. É justamente devido aos constantes deslocamentos que o circense leva consigo seus pertences, sua moradia e sua família, sendo comum que todos os membros trabalhem juntos no circo, transmitindo esta cultura de geração em geração. “Eles estão sempre com a esposa, com os pais, com os filhos”, afirma a psicóloga, que ainda acrescenta: “Eles vêem os filhos crescerem”. Suara também comenta que os circenses gostam de viajar e viver dessa maneira, sendo frequentes os relatos de que quando ficam muito tempo em um lugar, sentem falta da estrada.

Contudo, o viver itinerante também traz dificuldades, como na educação. Ao mesmo tempo em que crianças circenses aprendem habilidades e números artísticos, elas também frequentam a escola convencional, direito garantido por lei desde 1978. Segundo Suara, os participantes da pesquisa que têm filhos ou netos valorizam o ensino formal e dizem ser importante que seus descendentes tenham uma outra profissão, para o caso de não quererem seguir carreira no circo. A pesquisadora sugere estudos que avaliem se o ensino regular é “um bom modelo de educação” para “uma população tão específica quanto a circense”, já que a frequente mudança de escola possivelmente dificulte o aprendizado. Ela ainda acrescenta que, se for o caso, tais pesquisas poderiam “propor e testar outras possíveis metodologias de ensino” para essas crianças.

Os ânimos sem animais

Lidar com a progressiva retirada dos animais dos picadeiros brasileiros vai além da criação de números sem animais. Justamente por se tratar de uma cultura tradicional que desde sua origem teve os animais presentes, sua proibição nos espetáculos envolve mudar a própria identidade do circo. Um participante coloca que qualquer coisa que seja sobre circo, como uma música ou uma poesia, fala necessariamente dos bichos.

Embora o Brasil ainda não tenha uma lei federal (há um projeto de lei em tramitação) que proíba a presença de animais nos espetáculos circenses, dez estados (SP, RJ, MG, ES, PR,, RS, AL, PE, PB, MS), já não o permitem em seus territórios. Se considerarmos que estas dez unidades federativas juntas, segundo estimativa do IBGE,  concentram 70,3% dos circenses, percebe-se que, na prática, a maioria dos circos já está tendo que se adaptar a essa nova condição.

Todos os participantes da pesquisa trabalham em um circo que não mais se utiliza de animais. Para eles, além da queda na bilheteria, as crianças também perderam, pois podiam conhecer e  manter contato com várias espécies. Houve também críticas a respeito da forma como as leis proibitivas vêm sendo impostas ao circo sem qualquer debate que possibilite alternativas. Suara informa que enquanto países como Bolívia, China, Grécia e Peru proíbem o uso de animais, Alemanha, Chile, Estados Unidos, França e México “permitem a apresentação dos animais no picadeiro desde que sigam regras alimentares, de acomodação e de cuidados com saúde.”

Para a pesquisadora, a intensidade dos relatos em relação a este assunto  mostra o impacto que a retirada dos animais tem causado, sendo necessário que público e circenses “encontrem  formas de lidar com essa inesperada ruptura”, adequando-se à nova realidade que traz ainda outros provlemas, presentes nas falas dos entrevistados: falta de apoio político, concorrência com circos estrangeiros e com outras formas de entretenimento.

Todas as dificuldades apresentadas podem levar o leitor a pensar que o sorriso do palhaço desaparece no momento em que o artista tira a maquiagem, ao menos para os seis circenses entrevistados no estudo. Entretanto, a pesquisadora relata que em diversos momentos, por meio das entrevistas e das fotografias, se percebe o encantamento que os participantes têm pelo circo.  Falas como “o circo é uma poesia”, “o picadeiro é sagrado”, “viver no circo é gostoso” e “o picadeiro é um sorrir completo” mostram que o fascínio não é só do respeitável público.

Pesquisa de Suara Bastos – clique aqui.

Por Tatiana Iwata e Fernanda Maranha
Edição e revisão por Islaine Maciel

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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