A psicanálise “no armário”

Pesquisador do IPUSP investiga e analisa a proscrição de psicanalistas homossexuais em órgão oficiais de psicanálise

arm

Ju Bernardo


Quais características compõem um candidato elegível à formação em psicanálise? Em 1921, essa questão permeou uma importante discussão entre um círculo de psicanalistas íntimo a Freud. O grupo refletia acerca de uma particular característica, bastante encoberta, ou mesmo posposta, no tocante à contratação de profissionais para os órgãos oficiais de psicanálise: a homossexualidade. Ao debate somam-se alguns relatos – nunca oficiais – apontando que alguns candidatos à formação em psicanálise pelas sociedades filiadas à Associação Psicanalítica Internacional (IPA) eram rejeitados se fossem assumidamente gays ou, se durante o processo seletivo, sua homossexualidade fosse revelada.

De possíveis agentes, os futuros psicanalistas passaram a objetos na pesquisa do psicólogo e psicanalista Lucas Charafeddine Bulamah, mestre em psicologia pelo IPUSP, que, orientado pelo Prof. Dr. Daniel Kupermann, iniciou um meticuloso processo investigativo em que se buscava provar a existência e atuação de uma regra ­– não escrita – de uma tradicional proscriçaão de candidatos homossexuais masculinos à formação psicanalítica. “Eles eram imputados na categoria de perversão, borderline, psicose, ou algum outro tipo de preconceito de diagnóstico. Até mesmo a palavra ‘homossexual’ durante muito tempo esteve presente no manual de doenças mentais, como sinal de má formação, de interrupção do desenvolvimento”. Esse diagnóstico tinha um propósito normalizante, “você não está junto conosco porque você é diferente”, explica Bulamah, que, em entrevista à revista psico.usp, destacou alguns pontos sobre seu trabalho, sobre a instituição psicanalítica e sobre Freud.

A homossexualidade proscrita

Em uma série de cartas trocadas entre importantes psicanalistas à época fundante das instituições psicanalíticas, era discutida a questão da candidatura de homossexuais. Em circular enviada a todos os membros do secreto comitê, Ernest Jones relatava ter aconselhado contra a admissão, pela Sociedade Holandesa de Psicanálise, de um membro que “se sabia manifestamente homossexual”. Otto Rank e Freud discordavam da posição do colega, pois, para eles, a homossexualidade não era razão suficiente para a rejeição. Por outro lado, porém, a contratação não poderia tornar-se uma lei, “considerando os vários tipos de homossexualidade e os diferentes mecanismos que a causam”. Já para os berlinenses Karl Abraham, Hanns Sachs e Max Eitingon, esses indivíduos só deveriam ser admitidos se tivessem “outras qualidades a seu favor”.

Grande parte do conflito em torno dessa proscrição dos homossexuais se dava por uma compreensão, hoje tida como equivocada, de que a homossexualidade aparecia como parte de uma neurose e que, por isso, deveria ser analisada. Uma vez neurótico, o sujeito era visto como doente, porque estaria essencialmente marcado por conflitos pessoais que não foram resolvidos. “Enquanto ele ainda for homossexual, enquanto ainda houver esse modo de satisfação do desejo por alguém do mesmo “gênero” (algo muito mais complexo), ele não está bem, não é saudável ou íntegro para ser o que era esperado de um certo ideal de psicanalista”, explica Bulamah.

A sexualidade é anárquica, não tem norma, é conformada socialmente

Mas havia um problema nessa apropriação – e simplificação – da teoria freudiana por um discurso marcadamente preconceituoso: segundo Freud, todos os indivíduos são neuróticos, não apenas os homossexuais. “O raciocínio estrutural vai dizer que ‘ou você é neurótico obsessivo, ou você é histérico, ou você é psicótico’. Esse é um raciocínio em que ninguém escapa de um certo registro do pathos, de algum tipo de adoecimento. Ninguém escapa de uma forma de insatisfação frente ao mundo. Não é porque o homem gosta mais de mulher ou de homem que ele é mais ou menos doente”, completa o pesquisador.

Freud e a homossexualidade

psicanalise2O discurso de exclusão dos órgãos oficiais ligados à IPA mostrava-se atrelado a uma visão bastante hostil quanto às questões de gênero. Segundo o pesquisador, havia uma ideia de que o homem gay era tido como uma aberração, pois se associava a isso uma vontade de aproximação ao ser mulher. “E como pode um homem querer ser feminino? Quando você deseja uma mulher, você se firma enquanto homem, porque o discurso do desejo é heterossexista, ele tem a heterossexualidade como polo heurístico. O que é diferente dele dá um curto-circuito em nossa ideia, porque o homem que deseja um homem só pode ser uma mulher. Então a mulher que deseja uma mulher nem sequer aparece”, argumenta o psicólogo.

Mas Freud, ainda que assinando cartas com ressalvas quanto à discussão, tinha um raciocínio muito diferente do encontrado pelos membros do Comitê Secreto. Já em 1905, encontramos estudos sobre a direção da libido de um sujeito para o outro. Não haveria gênero naquele que é desejado, do ponto de vista do inconsciente, uma vez que, ali, as representações do gênero não se conformam com os caracteres socialmente representados. Para o pai da psicanálise, no inconsciente todos fazem uma escolha homossexual. “Segundo Freud, e para dizer de uma maneira bastante vulgar, todo homem já desejou o próprio pai, toda menina já desejou a própria mãe. A sexualidade é anárquica, ela não tem norma, ela é conformada socialmente”, elucida Bulamah.

Mas, para os psicanalistas das décadas de 40 e 50, esses excessos precisavam ser polidos, pois o ser humano precisa de uma evolução e a homossexualidade é uma trava para tal. Esse discurso aparece então como fruto de um raciocínio marcado pelo preconceito e por uma institucionalizada intolerância.
sexo

Psicanálise institucionalizada

Como consequência do prestígio de que gozava a psicanálise no século passado em grande parte do Ocidente, e da estruturação do imaginário que promovia na sociedade, foi criada a Associação Psicanalítica Internacional (IPA), como um órgão centralizador da formação do psicanalista, vindo a organizar as sociedades que a ela se vinculavam. Em resposta aos abusos da popularidade e visando a uma espécie de controle de qualidade, veio a necessidade de selecionar os candidatos a cargos oficiais.

Dessa institucionalização da psicanálise, surgiram as controvérsias. Primeiro com relação à aceitação de candidatos não médicos, depois com o ingresso de candidatos homossexuais. Todavia, segundo Bulamah, “o que distingue as duas controvérsias é a visibilidade, ausente em uma e presente na outra”. A questão dos não médicos dividia a sociedade psicanalítica, mas o debate era explícito, tanto nos congressos como nos artigos. No segundo caso, houve um mascaramento do preconceito e da discussão por intermédio da institucionalização, vide cartas que circularam secretamente entre o “Comitê Secreto” de que Freud fez parte.

Em “A psicologia das massas”, Freud já falava sobre o “narcisismo das pequenas diferenças”. Segundo os estudos freudianos, os grupos costumam se unir para combater um inimigo em comum. Se nas décadas passadas a homossexualidade era “colocada no armário”, como uma vergonha a ser escondida, hoje há muito desse preconceito com a transexualidade, ainda patologizada pela psicanálise.

A institucionalização da psicanálise é problemática, dado que ela não favorece uma associação. “De certa maneira, a associação implica uma conformidade do discurso, de ideais, e a psicanálise, na verdade, demanda que você tenha algo no laço, entre você e os outros, o que não propicia o encontro, o entendimento, mas, sim, um comportamento disruptivo”, explica o pesquisador.

Também segundo Bulamah, em uma associação de psicanalistas se prega a existência de um todo comum, tanto em termos teóricos como dogmáticos. “É complicado para um sujeito ser diferente em uma sociedade em que se pressupõe que se seja o mesmo”, completa.

Saindo “do armário”

Lucas Charafeddine Bulamah

Houve um movimento de luta bastante forte por parte de alguns psicanalistas, especialmente nos Estados Unidos, onde o preconceito se demarcou com maior expressividade. Se nos outros institutos – como nos do Brasil e da França – a exclusão era mais velada, na associação americana havia um empenho bem mais ostensivo em esconder o que fugia à ordem do tradicional. “Assim que a IPA, nos EUA, liberou a entrada de homossexuais para cursos de formação, criou-se um comitê para reunir grupos de discussões em todas as associações ligadas à IPA no país. E hoje existe uma turma muito unida, plural, mas problemática em vários aspectos”, explica Bulamah.

Hoje, ainda que tendo perdido alguma força, a IPA continua sendo muito importante, mostrando-se em um contínuo movimento de leitura mais plural das problemáticas, especialmente das de gênero. Por isso, pode-se verificar um processo de modernização das estruturas psicanalíticas, pois a psicanálise sobreviveu para além da instituição stricto sensu. “A IPA está tentando se modernizar negociando seus parâmetros de sobrevivência quanto à associação mundial que ela é. Todavia, a psicanálise não depende necessáriamente de instituições para sobreviver, já que ela é um discurso que hoje é artefato da humanidade. Estuda-se psicanálise como uma área do conhecimento, sem precisar pertencer a uma instituição, propriamente dita”, finaliza o pesquisador.

Por Aryanna Oliveira
Edição e revisão por Islaine Maciel e Maria Isabel da Silva Leme

 

 

Veja também:

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

VOCÊ PODE GOSTAR ...