A exposição prolongada a situações traumáticas, como abusos ou contextos de guerra e de violência, pode afetar o comportamento social humano de forma a dificultar a construção de laços interpessoais. Uma pesquisa do Instituto de Psicologia (IP) da USP em associação com o Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) realizou procedimentos experimentais em pacientes diagnosticados com transtorno de estresse pós-traumático complexo (TEPTC) para avaliar comportamentos pautados em relações de confiança.
Adicionado à 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças da OMS (Organização Mundial da Saúde), o transtorno de estresse pós-traumático complexo apresenta características que não se limitam às observadas no transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Além de memórias intrusivas, pesadelos e hipervigilância, o TEPTC também inclui sintomas de perturbação do self – associado à formação da identidade do indivíduo.
Depois dessa etapa, os participantes foram submetidos a um teste em que deveriam selecionar faces de potenciais parceiros para uma outra rodada hipotética do jogo, tendo a possibilidade de escolher entre uma delas ou uma silhueta indefinida. “A ideia desses rostos é que se pareçam com pessoas novas, que nunca foram mostradas para os participantes, mas o que eu fiz foi manipular digitalmente as imagens dos parceiros originais de forma que pareçam outras pessoas”, diz a psicóloga. Ela explica que o procedimento foi realizado tanto antes quanto depois da intervenção psicoterápica, de forma a observar os possíveis efeitos dela em pessoas com TEPTC.
“Sou a favor de pesquisas que envolvam medidas comportamentais, que não envolvem apenas responder escalas, responder testes. Vemos realmente a pessoa se comportando ali e medimos isso de alguma forma. Acho que [esse tipo de estudo] traz informações muito ricas para a nossa área.”
Elizabeth Albregard
Dificuldades de discriminação
O resultado esperado em condições saudáveis seria o desenvolvimento, por parte dos participantes, de uma boa resposta de discriminação, ou seja, uma melhora na capacidade de diferenciar os perfis confiáveis dos não confiáveis. “Mas o que a gente observou nas pessoas com TEPT complexo foi que elas passaram a confiar mais em todo mundo”, diz Elizabeth, ao destacar que os investimentos desse grupo nos parceiros não confiáveis não mudaram significativamente ou aumentaram após a intervenção psicoterápica.
Felipe Corchs pontua que, por enquanto, existem apenas hipóteses que explicariam esse comportamento. Ele pode estar associado a uma tendência de pessoas com transtornos de ansiedade como o TEPT e o TEPTC a generalizarem mais o que se configura como ameaça.
“Quanto mais potencialmente perigosa é uma situação, um ambiente ou um momento da sua vida, mais vale a pena responder a tudo como se fosse ameaçador.”
Felipe Corchs
Para lidar com essas dificuldades de discriminação, a pesquisa propõe procedimentos terapêuticos baseados em treinos discriminativos personalizados, com o objetivo de que o paciente, ao invés de diferenciar um formato de rosto ou um estilo de cabelo, “aprenda a diferenciar contextos da vida dele que sejam seguros e não seguros”.
Ainda que o Jogo da Confiança trabalhe com aspectos importantes de relações interpessoais, ele não reflete adequadamente situações de confiança na vida real pelo fato de ser limitado a respostas de características físicas. “Apesar de ter sido o objeto e o estímulo que utilizamos na pesquisa, não é o estímulo que faremos no treino. Vamos fazer um treino para tipos de comportamentos”, declara o psiquiatra.
Laços de confiança são vistos como cruciais para a recuperação psicológica de sobreviventes com traumas, já que, de acordo com a pesquisadora, o desenvolvimento destes vínculos permite que as pessoas lidem com relacionamentos interpessoais em diversas situações da vida ao passarem a trabalhar com “interações mutuamente cooperativas”.
Por: Fernanda Zibordi, Jornal da USP, 31/10/24