Transtorno de estresse pós-traumático complexo está associado à desconfiança generalizada

Estudo identificou uma tendência de pessoas com transtornos de ansiedade, como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, a generalizarem mais o que se configura como ameaça – Foto: Taylor Deas-Melesh/Unsplash

A exposição prolongada a situações traumáticas, como abusos ou contextos de guerra e de violência, pode afetar o comportamento social humano de forma a dificultar a construção de laços interpessoais. Uma pesquisa do Instituto de Psicologia (IP) da USP em associação com o Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) realizou procedimentos experimentais em pacientes diagnosticados com transtorno de estresse pós-traumático complexo (TEPTC) para avaliar comportamentos pautados em relações de confiança.

Adicionado à 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças da OMS (Organização Mundial da Saúde), o transtorno de estresse pós-traumático complexo apresenta características que não se limitam às observadas no transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Além de memórias intrusivas, pesadelos e hipervigilância, o TEPTC também inclui sintomas de perturbação do self – associado à formação da identidade do indivíduo.

Segundo Felipe Corchs, médico coordenador do Ambulatório de Transtorno de Estresse Pós-Traumático do IPq e orientador do estudo, a perturbação envolve três alterações: autoconceito negativo, problemas de regulação emocional e dificuldade em se sentir próximo de outras pessoas. “Não é igual a doenças como a pneumonia ou o câncer, que se tem ou não tem. Pessoas com traumas podem ter diferentes níveis de alteração de suas identidades”, afirma.
A dissertação de mestrado da psicóloga Elizabeth Fortunatti Albregard buscou compreender os efeitos das intervenções psicoterápicas nas interações sociais de pessoas com TEPTC, em especial nas relações que envolvem interações de confiança. Para isso, foi feita a análise das diferenças entre os padrões de comportamento dos diagnosticados com o transtorno e de um grupo controle saudável.

Elizabeth Fortunatti Albregard é voluntária no Ambulatório de Transtorno de Estresse Pós-Traumático e autora da pesquisa – Foto: Arquivo Pessoal

Foram coletados dados sociodemográficos – como idade, tipos de trauma, diagnósticos psiquiátricos, estado civil e grau de escolaridade – de 88 pessoas, que participaram de um experimento chamado Jogo da Confiança. Por meio da visualização de faces avaliadas com valores neutros de confiabilidade e atratividade pelo Chicago Face Database – as quais a pesquisadora separou em grupos classificados como confiáveis, neutros ou não confiáveis –, os voluntários deveriam selecionar os parceiros nos quais eles gostariam de confiar. Após isso, eles receberam pontos de recompensa de acordo com suas escolhas. “Como são várias rodadas, o participante vai aprendendo qual é a foto que representa a pessoa que é confiável e qual é a não confiável”, explica Elizabeth.

Depois dessa etapa, os participantes foram submetidos a um teste em que deveriam selecionar faces de potenciais parceiros para uma outra rodada hipotética do jogo, tendo a possibilidade de escolher entre uma delas ou uma silhueta indefinida. “A ideia desses rostos é que se pareçam com pessoas novas, que nunca foram mostradas para os participantes, mas o que eu fiz foi manipular digitalmente as imagens dos parceiros originais de forma que pareçam outras pessoas”, diz a psicóloga. Ela explica que o procedimento foi realizado tanto antes quanto depois da intervenção psicoterápica, de forma a observar os possíveis efeitos dela em pessoas com TEPTC.

“Sou a favor de pesquisas que envolvam medidas comportamentais, que não envolvem apenas responder escalas, responder testes. Vemos realmente a pessoa se comportando ali e medimos isso de alguma forma. Acho que [esse tipo de estudo] traz informações muito ricas para a nossa área.”

Dificuldades de discriminação

O resultado esperado em condições saudáveis seria o desenvolvimento, por parte dos participantes, de uma boa resposta de discriminação, ou seja, uma melhora na capacidade de diferenciar os perfis confiáveis dos não confiáveis. “Mas o que a gente observou nas pessoas com TEPT complexo foi que elas passaram a confiar mais em todo mundo”, diz Elizabeth, ao destacar que os investimentos desse grupo nos parceiros não confiáveis não mudaram significativamente ou aumentaram após a intervenção psicoterápica.

Felipe D’Alessandro Ferreira Corchs, orientador da pesquisa, também é médico psiquiatra no Hospital das Clínicas da FMUSP – Foto: Arquivo pessoal

Felipe Corchs pontua que, por enquanto, existem apenas hipóteses que explicariam esse comportamento. Ele pode estar associado a uma tendência de pessoas com transtornos de ansiedade como o TEPT e o TEPTC a generalizarem mais o que se configura como ameaça.

“Quanto mais potencialmente perigosa é uma situação, um ambiente ou um momento da sua vida, mais vale a pena responder a tudo como se fosse ameaçador.”

Para lidar com essas dificuldades de discriminação, a pesquisa propõe procedimentos terapêuticos baseados em treinos discriminativos personalizados, com o objetivo de que o paciente, ao invés de diferenciar um formato de rosto ou um estilo de cabelo, “aprenda a diferenciar contextos da vida dele que sejam seguros e não seguros”.

Ainda que o Jogo da Confiança trabalhe com aspectos importantes de relações interpessoais, ele não reflete adequadamente situações de confiança na vida real pelo fato de ser limitado a respostas de características físicas. “Apesar de ter sido o objeto e o estímulo que utilizamos na pesquisa, não é o estímulo que faremos no treino. Vamos fazer um treino para tipos de comportamentos”, declara o psiquiatra.

Laços de confiança são vistos como cruciais para a recuperação psicológica de sobreviventes com traumas, já que, de acordo com a pesquisadora, o desenvolvimento destes vínculos permite que as pessoas lidem com relacionamentos interpessoais em diversas situações da vida ao passarem a trabalhar com “interações mutuamente cooperativas”.

Por: Fernanda Zibordi, Jornal da USP, 31/10/24