Casais trocam a ‘pegação’ por ‘namoro sem pressa’ nos apps de relacionamento

Fenômeno do ‘slow dating’ ganhou força com a pandemia e aplicativos surfaram na onda com aumento nos acessos e de engajamento

 

Os apps de encontro deram uma má fama ao amor: comumente, esses serviços eram vistos como janelas para relacionamentos quase instantâneos. Mas algo mudou na pandemia. Com as pessoas trancadas em casa e os temores associados à contaminação pela covid-19, muita gente preferiu esperar. Os flertes por aplicativo passaram a ser mais lentos, focados no papo e na construção de intimidade – a “pegação” tornou-se uma pendência para depois. Esse fenômeno, batizado de “slow dating”, algo como “namoro sem pressa” em tradução livre do inglês, começou a ganhar terreno.

Essa é a história do casal Chico Alves, 28, e Bruno Melo, 27. Os dois se conheceram no Tinder em maio do ano passado e passaram cinco meses conversando. O primeiro encontro físico só aconteceu em outubro, enquanto o namoro só foi formalizado no último mês de fevereiro.

“No começo, a conversa era só a conversa. Eu não tinha a intenção de marcar um encontro e, talvez, o papo tenha sido até mais sincero por causa disso”, explica Chico. Do Tinder, foram para o WhatsApp e chegaram a fazer videochamadas em momentos de tédio. Claro, isso tudo ajudou no primeiro encontro: “O ‘date’ acabou sendo diferente porque a gente já se conhecia muito e já tinha a expectativa de nos encontrarmos novamente. Isso é raro,” lembra o rapaz, que é engenheiro mecânico.

A construção de intimidade, mesmo à distância, parece ser um dos pilares dessa nova versão do “webnamoro” – é algo que contrasta com aventuras rápidas tão associadas aos apps.

“Quando marcamos o encontro, já tínhamos a perspectiva de que o relacionamento daria certo. O encontro só acabou provando que éramos possíveis também fora do Tinder”, conta Victor Martins, 30.

O arquiteto de Juiz de Fora (MG) deu ‘match’ em junho do ano passado com a tesoureira Marina Paiva, 29. Eles ficaram de prosa durante dois meses até marcar o encontro. Para ele, o isolamento social acabou favorecendo a conversa antes do primeiro encontro, pois já tinham mais intimidade.

 

Mantendo pegada

As adaptações das relações amorosas mediadas por tecnologia garantiram a sobrevivência dos apps na pandemia. Ao contrário do que se poderia supor, Tinder e Bumble, os dois mais famosos entre os jovens, não viram queda de acessos durante o pior momento da pandemia em todo o mundo, entre março e junho de 2020. Esses serviços registraram números positivos, que reforçam a sensação de que as pessoas estão passando mais tempo juntas: o Tinder teve alta de 32% no tempo das conversas, enquanto o Bumble viu salto de 16% nas mensagens enviadas.

“Nas primeiras semanas da pandemia, nos perguntavam se o Tinder iria fechar“, afirma em entrevista ao Estadão a chefe de comunicações do aplicativo de relacionamento, Jenny McCabe. “Nunca consideramos isso. Não sabíamos o que ia acontecer, mas vimos que explodiu o engajamento nas conversas em todos os mercados em que atuamos. Foi o ano mais movimentado na nossa história”.

Naquela época, o Tinder havia lançado a ferramenta de videoconferência para conversas mais intimistas e tornado gratuito o recurso de “passaporte”, no qual os usuários podem conversar com pessoas de qualquer parte do mundo – foi uma mudança importante, já que, por padrão, o serviço impõe limitações geográficas. “Notamos que as pessoas não podiam conhecer gente nova durante a pandemia, somente usando o Tinder, onde podiam discutir sobre qualquer coisa”, conta Jenny.

O Bumble também viu alta movimentação dos solteiros na quarentena, e percebeu uma certa “normalização” do namoro virtual. “As pessoas pensavam que azaração online era bizarro, mas, se você pensar em nossas relações com amigos e família, tudo é mediado pelo telefone. Durante a pandemia, as pessoas usaram o Bumble para de fato se conhecer com vídeos e mensagens”, explica ao Estadão a presidente executiva do Bumble, Whitney Wolfe Herd, que fundou o Tinder e saiu da empresa em 2014 para criar o app rival. “A pandemia provou que relações de longo prazo podem ser formadas pela tecnologia.”

 

Responsabilidade

Para a psicóloga Andrea Jotta, do Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologia da Informação e Comunicação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o “slow dating” nasce em um contexto em que as pessoas pedem maior responsabilidade afetiva dos desconhecidos nas redes, propondo maior honestidade em relação aos sentimentos.

“O slow dating serve para pessoas que já passaram por um pico de excesso de dor depois de usar os sites e apps de relacionamentos. Essas pessoas já foram enganadas e enganaram, já mentiram e receberam mentiras, já tiveram expectativas frustradas e frustraram. Elas já participaram de tantos desencontros, que agora já começam a entender que se relacionar na internet não é brincadeira. Não é porque é virtual que não é real”, explica Andrea, citando casos de decepções em que usuários fingem ser outra pessoa (o tal do “catfish”) ou estão comprometidos.

A psicóloga Jaroslava Varella Valentova, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), acrescenta outro ponto: como a “oferta” de candidatos nesses apps é muito grande, é mais difícil encontrar um parceiro de longa data porque os usuários estão a todo momento comparando um perfil com outro. “É difícil parar em um ponto e dizer que está satisfeito. Quando você tem várias relações online, você não consegue se apegar ou até se apaixonar”, explica a pesquisadora.

Os desencontros entre expectativa e realidade foram notados pela consultoria americana YPulse, especializada em analisar tendências entre pessoas de 18 a 39 anos. Segundo um estudo de março de 2021, 61% dos usuários de apps de relacionamentos não procuraram um parceiro para passar a quarentena. Por outro lado, 43% usou os apps para se sentir menos solitário durante a pandemia.

“Trancadas em casa, as pessoas solteiras acabaram tendo muito mais tempo. Elas querem se comunicar com pessoas reais, mesmo que online”, explica Jaroslava.

Para o casal Chico e Bruno, a rotina de meses de conversas diárias despretensiosas no app tornou tudo mais fácil e ajudou a fugir da solidão da quarentena. “Essas pequenas coisinhas do cotidiano supriam a falta de ver a pessoa falando. Mas ainda é bem diferente de estar em um relacionamento para valer”.

 

Guilherme Guerra e Ícaro Ramalho Malta, especial para o Estadão