Da família aos coletivos: projeto quer saber o que influencia o bem-viver dos estudantes negros

Para um estudante negro da USP, a família e os coletivos estudantis são duas importantes fontes de apoio emocional para navegar em um ambiente acadêmico hostil. Esse achado é fruto de um projeto de pesquisa sediado no Instituto de Psicologia (IP) da USP, que está investigando quais são as dimensões que influenciam o bem-estar subjetivo e os níveis de satisfação dos estudantes negros dentro da experiência universitária, tanto em termos de sucesso acadêmico quanto de integração na comunidade.

Para conhecer melhor a experiência universitária dos estudantes, o Grupo de Pesquisa Psicologia e Relações Étnico-Raciais do IP está convidando todo o corpo discente da USP a responder a um questionário que procura medir os níveis de bem-estar subjetivo. Embora o foco da pesquisa seja o bem-estar de estudantes negros, todos podem responder ao questionário, independentemente da identidade étnico-racial. Esta é a segunda vez que o questionário é aplicado e a intenção é que os dados coletados ajudem a aprimorar os serviços de assistência psicossocial da USP.

O questionário, que faz parte do projeto Limites e possibilidades para o bem-viver de estudantes negros em instituições de ensino superior: o caso da Universidade de São Paulo, capta três dimensões relacionadas às escalas de bem-estar subjetivo: afeto negativo, afeto positivo e índice de satisfação com a vida. Os dados da primeira onda da pesquisa quantitativa foram coletados durante a emergência sanitária causada pela pandemia de covid-19, o que acabou por influenciar a avaliação dos próprios estudantes sobre seu bem-estar.

Vinicius Melo – Foto: Arquivo Pessoal

“Os índices de bem-estar de estudantes da USP são significativamente baixos. A gente pode considerar isso como um impacto da própria

pandemia, porque o principal fator e que apresenta maior influência é de afeto negativo, que tem a ver com como eu tenho me sentido ultimamente. (Afetos) positivos e negativos se referem mais a sentimentos recentes, transitórios. Satisfação com a vida é um índice mais longitudinal, de avaliação da vida como um todo”, explica o pesquisador Vinicius Melo, pós-doutorando e professor colaborador do IP.

Conciliar trabalho e estudos limita a experiência universitária

Os dados já obtidos pela pesquisa, que tem uma etapa quantitativa e outra qualitativa, mostram diferenças significativas nas experiências dos estudantes da USP. Em primeiro lugar, os níveis de bem-estar de estudantes não negros, mais ricos e homens são maiores do que os de estudantes negros, mais pobres e mulheres, respectivamente. Os estudantes negros também relatam muito mais casos vivenciados de racismo, seja direta ou indiretamente.

Além disso, os estudantes negros têm renda familiar média mais baixa que seus colegas não negros e moram mais longe do campus onde estudam. Na cidade de São Paulo, isso se traduz também em maior tempo de deslocamento: os estudantes negros gastam o dobro do tempo nos trajetos de ida e volta da Universidade que seus colegas não brancos.

Pesa para grande parte dos estudantes negros a necessidade de conciliar os estudos com o trabalho, além da cobrança emocional quando são os primeiros da família a entrar na universidade. Na etapa qualitativa da pesquisa, que contou com a realização de grupos focais com quatro a seis participantes, os estudantes relataram a importância da família como fonte de apoio afetivo para seguir com os estudos, mas também se disseram sobrecarregados com a necessidade de conciliar os estudos com o sustento da casa ou o cuidado de familiares.

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Card de divulgação da pesquisa – Imagem: Divulgação/IP-USP

Vinicius Melo explica que tudo isso acaba exigindo um grande malabarismo dos estudantes negros da USP. “Tem que fazer malabarismo de horário, tem que sobrepor bolsas, auxílio alimentação, bolsa PUB, bolsa de extensão. Junta duas, três bolsas, porque o valor das bolsas é pouco para poder sobreviver, e ainda no último turno ter que trabalhar como garçom para conseguir pagar o aluguel, se alimentar e pagar o transporte. É sempre um nível de desigualdade um tanto quanto limitador”, diz Melo.

Entre o não pertencimento e o acolhimento

Os dados preliminares da pesquisa mostram que o racismo e as desigualdades materiais e estruturais afetam a dimensão da sociabilidade dos estudantes e as relações com colegas que têm outras experiências universitárias e familiares, bem como as relações com os professores. “A ponto de gerar um nível de hostilidade nessa relação, seja do professor para com o aluno, do aluno com o professor, promovendo um nível de não pertencimento, um nível de alienação dentro desse ambiente acadêmico. Que vai impactar em baixa autoestima, certa tristeza, uma sensação de incapacidade para as tarefas, especialmente as tarefas intelectuais, no que a gente chama de ameaça do estereótipo”, comenta o pesquisador.

Karen Santana, mestranda no IP e integrante do grupo de pesquisa, captou esses sentimentos em entrevistas individuais com 51 estudantes negros realizadas na etapa qualitativa do projeto. Ela conta que foram recorrentes comentários como “a USP não é o meu lugar”, o que entende como reflexo da ausência de políticas de integração adequadas.

“Não adianta apenas aprovar sistema de cotas raciais na USP, como ocorreu em 2018. É preciso oferecer as ferramentas corretas para a real inclusão desses estudantes. Até porque o racismo se manifesta por um olhar estranho, um distanciamento, uma invalidação. Não só em palavras”, argumenta a pesquisadora.

Karen Santana - Foto: Arquivo Pessoal

Karen Santana – Foto: Arquivo Pessoal

Frente a esse cenário, os coletivos aparecem como o caminho mais procurado por estudantes negros para obter acolhimento, integração e felicidade dentro da Universidade. Karen destaca as potencialidades dos coletivos como uma espécie de medida terapêutica na comunidade universitária. “Os coletivos estudantis são a própria representação dos significados presentes em bem-viver. O conceito, criado pelos povos originários, se refere a esse completo estado de prazer socioemocional a partir de uma perspectiva coletiva”, diz ela. 

Na avaliação de Karen, o olhar institucional da USP a respeito dos temas de inclusão e pertencimento tem um enfoque essencialmente econômico. Ela entende que as práticas dos coletivos poderiam inspirar novas linguagens e estratégias oficiais, já que eles desenvolvem um trabalho auxiliando na permanência e acolhimento da experiência universitária dos estudantes.

“Na minha pesquisa eu defendo que existem duas barreiras para o desenvolvimento do bem-viver, a material e a simbólica. A primeira é essa que a USP costuma comunicar, de ser a universidade que mais disponibiliza bolsas-permanência. A simbólica ou emocional é o que os coletivos tentam diminuir ao oferecer espaços de escuta e integração. A Universidade perde muito por divulgar apenas as ações institucionais voltadas à promoção da saúde mental”, diz a mestranda. “Coletivos estudantis também desenvolvem e deveriam receber reconhecimento por isso. Enquanto grupo, defendemos que a USP deveria financiar os coletivos, pois eles servem como canal de denúncias, por exemplo”, completa.

O projeto Limites e possibilidades para o bem viver de estudantes negros em instituições de ensino superior: o caso da Universidade de São Paulo é coordenado pelo professor Alessandro de Oliveira dos Santos, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do IP, e conta com financiamento da Fapesp pelo auxílio Jovem Pesquisador Fase 2 (Processo: 2018/15573-0). O auxílio busca consolidar uma linha de pesquisa voltada às relações étnico-raciais na psicologia, inaugurada por Alessandro em 2013. Vinicius e Karen são bolsistas Fapesp no âmbito do projeto.

Por: Silvana Salles e Danilo Queiroz, Jornal da USP, 20/9/2023