Fundamental mesmo é a pré-escola

Pesquisas reforçam a importância das consciências fonológica e morfológica e da aquisição de vocabulário desde os primeiros anos para uma alfabetização bem-sucedida

O ingresso cada vez mais precoce da criança na escola é uma tendência nacional, que se reflete nas políticas públicas. Em 2005, com a aprovação do Ensino fundamental de nove anos, a criança passa a ingressar aos seis e não mais aos sete anos nessa etapa da educação básica. A nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 2013, obriga a matrícula na escola e a gratuidade do ensino a partir dos quatro anos de idade, e estados e municípios têm até 2016 para se adaptarem. Além da crescente participação da mulher no mercado de trabalho, uma sociedade cada vez mais complexa e exigente está por trás dessa propensão.

Para se participar efetivamente de tal  sociedade – não apenas de questões profissionais e atividades diárias, mas mesmo de lazer e de relacionamentos pessoais – o domínio da linguagem escrita é um dos quesitos essenciais. Pesquisas na área da Psicologia Cognitiva, dentre elas as do Instituto de Psicologia da USP (IPUSP), vêm atestando duas capacidades indispensáveis para se ler e escrever habilmente: a compreensão da fala e o reconhecimento de palavras escritas. O desenvolvimento da linguagem oral ocorre naturalmente, podendo no entanto ser estimulado e incrementado de várias formas desde os primeiros anos, em casa e na escola. Já o reconhecimento da escrita envolve necessariamente instruções explícitas a respeito dos sons que constituem a língua (consciência fonológica) bem como da correspondência de cada som (fonema) com sua respectiva letra (grafema).

Uma questão que costuma ser levantada é a de em que medida um aluno tão novo e recém-chegado ao ensino formal estaria preparado para esse tipo de conhecimento. Em seu livro A arte de ler, José Morais, psicolinguista e professor emérito da Universidade Livre de Bruxelas e que esteve em visita ao IPUSP, afirma que “do ponto de vista estritamente cognitivo, a maioria das crianças pode aprender a ler por volta dos quatro anos, ou mesmo desde os três anos.” Entretanto, o próprio autor reconhece a necessidade de se considerar outros fatores e pontua que o fato de uma criança ser alfabetizada precocemente não determina a eficácia de sua leitura. Ele mesmo é contrário ao adiantamento da leitura e da escrita para a pré-escola, pois acredita que isso alimentaria as desigualdades socioculturais já existentes.

Se por um lado o papel da educação infantil não é o de antecipar o conteúdo voltado para a alfabetização do primeiro ano do ensino fundamental, por outro, todos os pesquisadores entrevistados concordam que deve haver, já nesta fase, propostas pedagógicas focadas em aspectos próprios da linguagem. No livro Alfabetização: método fônico, os autores Alessandra Seabra e Fernando Capovilla – este último professor do IPUSP, explicam que a linguagem escrita é uma habilidade muito específica da inteligência humana e que, assim sendo, pode e deve ser desenvolvida por meio de ensino também específico. Isso significa que, ainda de acordo com os autores, apenas o desenvolvimento de “habilidades cognitivas gerais e básicas na educação infantil” não prepara a criança para a alfabetização.

Falar melhor hoje, ler melhor amanhã

Mas, então, o que afinal deve ser trabalhado no ensino infantil? No que diz respeito à capacidade de compreensão da fala, estudos comprovam que há forte relação do vocabulário (também chamado de léxico) oral da criança com a sua futura aprendizagem de leitura e escrita. “As pesquisas já mostraram que o vocabulário expressivo [o número de palavras faladas] aos dois anos é preditor de sucesso, ou não, na alfabetização”, afirma a professora aposentada, pedagoga e pesquisadora Miriam Damazio, que por 28 anos lecionou para o primeiro ano do ensino fundamental em escola pública. Em seu mestrado no IPUSP, Miriam normatizou (padronizou cientificamente) três testes de vocabulário voltados para crianças entre um ano e meio e seis anos de idade. A pesquisadora avaliou 906 alunos de escolas públicas e privadas da grande São Paulo, nessa faixa etária.

Para se compreender essa relação das palavras faladas que uma criança pequena  (até os cinco anos) conhece e sua futura alfabetização é preciso entender como se dá a aprendizagem de uma escrita alfabética. Desde sua invenção pelos fenícios e aperfeiçoamento pelos gregos, qualquer código que seja alfabético (como é o caso do português) segue um mesmo princípio: fazer a correspondência de um determinado fonema de uma língua com uma forma gráfica específica, o grafema. “A escrita é um sistema de representação de segunda ordem”, afirma a Profa. Dra. do IPUSP Fraulein de Paula. Isso significa que, diferentemente de um  desenho, não existe, a princípio, relação direta entre uma letra ou um conjunto de letras e um objeto, ação ou conceito quaisquer. Assim, no início da alfabetização, deve-se enfatizar o ensino dessa correspondência som-letra (fonema-grafema) para que a criança aprenda tanto a passar os sons da língua para suas respectivas letras (escrita ou codificação), quanto o contrário, relacionar as letras com seus respectivos sons (leitura ou decodificação). Uma vez capaz de codificar e decodificar os sons de sua língua, o alfabetizando conseguirá ler e escrever sequências regulares ‒ cada letra correspondendo a um único som. Tais sequências podem ser tanto palavras (que apresentam significado na língua) quanto pseudopalavras (sequências pronunciáveis mas sem significado, por exemplo “felabo”). Nesta fase inicial, a compreensão da leitura dependerá basicamente do vocabulário oral adquirido até então. “Quanto mais coisas a criança souber nomear, mais fácil ela vai desenvolver a capacidade de fazer o link entre aquela expressão oral e a sua representação escrita e ligar com o significado também”, afirma Fraulein.

Deste modo, uma criança com vocabulário pobre pode ter dificuldades na alfabetização porque depois de ‘traduzir’ aquelas letras em sons, ela ignora o seu sentido, havendo ainda a tarefa de aprender o significado não de algumas, mas de muitas palavras.

Miriam comenta sobre o entusiasmo de seus alunos quando lêem pela primeira vez uma palavra e percebem que aquela sequência de letras tem um significado: “Muito bem, agora nós vamos ler de novo ligando os sons… Até que de repente você escuta um  “Ah! É ‘fofo’! Está escrito ‘fofo’!” Nesse sentido, o fato do aprendiz conseguir identificar na escrita uma série de palavras que ele já conhece na fala é uma grande motivação para que ele queira ler e escrever cada vez mais. Posteriormente, será por meio da própria leitura que o aluno enriquecerá seu léxico. “Quando a criança aprender a ler, seu vocabulário dará um salto”, afirma Fraulein.

Dentre as maneiras de enriquecer o léxico desde os primeiros anos, o hábito da ouvir histórias, lidas por um adulto para as crianças, é um dos mais recomendados e com muitas pesquisas demonstrando sua eficácia para a alfabetização. Além disso, o professor José Morais esclarece em sua obra A arte de ler que, ao ouvir a leitura de um texto ou história a criança entra em contato com várias particularidades da linguagem escrita que não estão presentes na conversa comum ou mesmo na contação oral de histórias, sem o apoio de um texto escrito.

Segundo Miriam Damazio, “tem-se a falsa ideia de que o simples contato com  o livro já vai transformar a criança em uma leitora”. A pesquisadora afirma que “é preciso que a criança ouça a mesma história várias vezes e depois seja encorajada a contar o que ouviu”, pois, desta forma, estimula-se o ganho tanto de vocabulário receptivo quanto de expressivo. “O vocabulário receptivo é aquele que se desenvolve desde que a criança nasce, ouvindo as pessoas ao seu redor”, explica Miriam, que continua: “Já o vocabulário expressivo diz respeito ao que a criança realmente fala”. A pesquisadora também ressalta que o vocabulário receptivo é cerca de quatro vezes maior que o expressivo, o que mostra que a criança compreende muito mais do que consegue falar.

Outro modo de a criança conhecer novas palavras é por meio da nomeação. Pais, professores e cuidadores, sempre que possível, podem mostrar algo, conhecido ou desconhecido da criança, ao mesmo tempo em que lhe dizem o respectivo nome. Pode ser o objeto em si ou por meio de uma imagem que o represente, como as frequentes ilustrações dos próprios livros infantis, ou ainda fotos, pinturas, desenhos, esculturas, vídeos, etc. Os adultos podem colocar o objeto nomeado dentro de um contexto, elaborando uma verdadeira conversa com a criança, desde muito nova. “Aos oito meses um bebê já é capaz de compreender os sons da fala”, informa Miriam.

Fraulein explica que a criança nasce em um ambiente que necessariamente já é linguístico, uma vez que toda cultura humana tem  uma língua. “Desde muito cedo o bebê aprende a reconhecer, a discriminar o som de uma voz humana de qualquer outro som que exista”, afirma Fraulein, acrescentando que “à medida que a criança vai se desenvolvendo, ouvindo as pessoas falarem, ela se especializa nos sons da língua que ela ouve”. Além disso, ainda segundo a docente, a imagem que mais atrai um bebê desde recém-nascido é a figura do rosto humano. Isso é importante porque a língua falada não envolve apenas os sons, mas também as expressões faciais e corporais. Assim, uma maneira de estimular o desenvolvimento da linguagem dos pequenos é que os adultos ao seu redor conversem diretamente  (cara a cara) com eles.

Outro aspecto que pode contribuir para a aquisição de vocabulário é a criança perceber que na formação de uma palavra pode existir sequências menores de sons que aparecem em outras palavras mantendo o mesmo significado. Essas sequências são chamadas de morfemas e se dar conta delas é conhecido como consciência morfológica.

A menor unidade de significado

“— Mamãe, quer me passar o mexedor?

— Mexedor? Que é isso?

— Mexedorzinho, de mexer café.

— Ah… colherinha, você quer dizer.”

O diálogo acima, retirado da obra infanto-juvenil Marcelo, marmelo, martelo, de Ruth Rocha, ilustra o conceito de consciência morfológica (a noção de como as palavras são formadas).

O livro conta a história de um menino que começa a questionar a razão de as coisas terem os nomes que têm. Marcelo passa então a criar novos nomes (neologismos) que ele considera mais apropriados para determinados objetos. Para ele, faria mais sentido, por exemplo, que o utensílio usado para mexer café se chamasse ‘mexedor’ ao invés de ‘colher’. Marcelo forma a palavra ‘mexedor’ partindo do verbo ‘mexer’ e acrescentando o sufixo ‘-or’, que em muitas palavras do português possuem  o mesmo significado de agente da ação indicada pelo verbo que o precede. Assim, ‘mexedor’ tem o sentido de ‘aquilo ou aquele que mexe ou que serve para mexer’.

A psicóloga e pesquisadora Júlia Migotconstatou em seu mestrado no IPUSP que essa manipulação da palavra feita pelo personagem Marcelo já é realizada pelas crianças antes de receberem instrução formal a respeito. Júlia analisou 64 crianças, de 5 a 8 anos, entre o  último ano do ensino infantil e os dois primeiros anos do fundamental, na execução de tarefas que iam desde estratégias para definição de palavras afixadas (compostas por mais de um morfema, por exemplo “jardineiro”) até a criação de novas palavras (neologismos). Os resultados indicaram  não apenas o uso da morfologia pelos participantes para a resolução dos exercícios propostos, como uma relação entre consciência morfológica e aquisição de vocabulário.

Segundo Júlia, “tanto as noções de morfologia contribuem  para a aquisição de vocabulário, quanto um maior vocabulário aumenta a consciência morfológica”. Isso pôde ser verificado pela correlação existente nos dois testes utilizados para se avaliar o vocabulário expressivo das crianças com a tarefa de neologismo, a qual envolvia conhecimento morfológico das mesmas. Ou seja, as crianças que conheciam mais palavras também eram aquelas que manipulavam melhor os morfemas. Além disso, constatou-se que quanto mais avançados os anos escolares, mais forte é a correlação da consciência morfológica com o vocabulário.

Mas de que forma a morfologia contribui para a aquisição de vocabulário ainda na fala? Júlia explica que ao perceber a existência dos morfemas, a criança passa a inferir (deduzir via ra-ciocínio) o significado de palavras ainda desconhecidas. “A criança percebe que o pedacinho de uma palavra aparece em várias, como ‘florista’, ‘floricultura’, ‘flora’… e ela se pergunta se todas teriam a ver com ‘flor’”, exemplifica a pesquisadora. Assim, a percepção de certas regularidades de significados facilita a memorização de novas palavras, já que muitas vezes não será necessário aprender algo totalmente inédito, mas sim uma porção desconhecida ligada a algo já conhecido da criança.

Outra constatação do estudo foi um melhor desempenho dos pequenos participantes nos itens que envolviam sufixos e não prefixos. Era mais fácil para a criança definir uma palavra como ‘guerreiro’ do que ‘refazer’, por exemplo.

Da mesma forma, foi mais frequente a formação de neologismos por meio de sufixação. A pesquisadora levanta a hipótese de que essa maior familiaridade com os sufixos estaria relacionada com a sensibilidade à rima, que é a repetição dos sons finais de duas ou mais palavras a partir de sua vogal tônica (a vogal da sílaba mais forte). As crianças que percebem a regularidade da sequência final de sons nas palavras que rimam podem  ter uma maior facilidade de usar os sufixos, que mantêm o mesmo som e o mesmo significado ao final dos vocá-bulos. A noção de que a palavra falada pode ser segmentada em sequências sonoras menores, não apenas em rimas, mas também em aliterações (repetição dos sons iniciais da palavra), sílabas e principalmente em fonemas é essencial para a alfabetização. Tal percepção e consequente manipulação dos sons de uma língua pelos seus falantes é chamada de consciência fonológica.

A voz do pensamento

A correlação favorável da consciência fonológica com a alfabetização tem sido amplamente comprovada por milhares de estudos criteriosos, nacionais e internacionais. Assim, entendê-la é primordial para se compreender como se dá a leitura e a escrita de um código alfabético. Quando lemos um texto, a visão é o sentido obviamente utilizado (salvo os cegos, que lêem pelo tato). Por conta disso, embora saibamos da íntima relação entre a fala e a escrita, é mais difícil percebermos que aquelas sequências de letras representam sons e que, portanto, têm relação com a audição. Esse ‘som’ da língua que importa para a escrita não é propriamente o som físico, mas sim sua abstração. Para ilustrar o conceito, podemos pensar em uma mesma palavra do português terminada em ‘s’ sendo falada por um paulistano e por um carioca – “malas”, por exemplo. Embora a pronúncia ‘sibilante’ do primeiro seja ouvida de maneira bastante diferente do ‘s’ mais ‘chiado’ do segundo, qualquer falante do português sabe que se trata da mesma palavra. É a representação auditiva mental (a “fala interna”) que temos do som ‘s’ em português que interessa para compreendermos a palavra “malas”, e não suas variações sonoras físicas durante a pronúncia. O ‘s’ é portanto um fonema do português.

Esse tipo de abstração é essencial para o desenvolvimento da linguagem. Assim, existe no cérebro humano circuitos de neurônios especializados em processar as informações fonológicas, sem as quais não seria possível adquirir qualquer língua falada. Todo esse funcionamento no entanto ocorre de forma inconsciente, sendo natural do desenvolvimento humano – para aprender a falar não temos que ter aulas e nem pensar no assunto. Contudo, como já mencionado, com o intuito de se aprender a ler e a escrever um código alfabético é preciso ter consciência desses sons para podermos associá-los a formas gráficas que também são abstrações. Segundo José Morais em A arte de ler, “A análise fonêmica intencional ocupa o primeiro lugar em ordem de importância” na alfabetização. Essa percepção de cada fonema da língua é chamada de consciência fonêmica e está contida na fonológica.

Nesse ponto, seria natural pensar em uma abordagem pedagógica para o ensino infantil que trabalhasse a consciência fonêmica da criança visando à sua futura alfabetização. Porém, Morais afirma que “aprender análise fonêmica é também aprender leitura, já que as duas competências são inseparáveis”. Nesse sentido, ainda segundo o autor, “desenvolver a consciência fonêmica nessa fase é o mesmo que antecipar o ensino da leitura e da escrita para a educação infantil”. Portanto, se o objetivo não for a precocidade da alfabetização, mas sim facilitar o seu processo, prevenindo futuras deficiências na leitura, a consciência fonológica deve ser desenvolvida nas crianças pequenas sem, no entanto, atingir o nível da consciência fonêmica.

A pesquisadora e pedagoga Miriam Damazio descreveu muitas atividades (e até demonstrou algumas, conforme  vídeo na página 26) que podem ser usadas para estimular a consciência fonológica das crianças desde a Educação Infantil. De forma lúdica e interativa (com uso de cores, formas geométricas, sob a forma de jogo, etc.), as práticas envolviam separação e contagem de sílabas, agrupamento de palavras com mesmas rimas ou aliterações, substituição de pseudopalavra por palavra adequada dentro do contexto da frase, troca de sílaba formando outra palavra, etc. “A criança precisa saber manipular os sons da fala, que as palavras são compostas por partes menores, que existem palavras grandes e pequenas”, explica a pesquisadora, prosseguindo: “Podemos usar as próprias crianças, cada uma sendo uma palavra e procurando uma posição adequada para formar uma frase com sentido, por exemplo.”

Amostras do banco de imagens dos testes de vocabulários Expressivo e
Receptivo Auditivo, validados no IPUSP pela pesquisadora Miriam Damazio

Todas essas atividades de estímulo à consciência fonológica bem como aquelas de enriquecimento de vocabulário são recomendadas desde a Educação Infantil com o objetivo de se prevenir a deficiência em leitura. Déficits no domínio da linguagem escrita [veja a próxima matéria] estão fortemente ligados ao fracasso e à evasão escolares, que há décadas são uma preocupação nacional.

Segundo o Censo da Educação Básica de 2012, cerca de 7 milhões e 300 mil crianças estão matriculadas na Educação Infantil no Brasil e mais de 60% delas se encontram na rede pública. A partir de 2016, com a obrigatoriedade do ensino desde os quatro anos, esse número tenderá a aumentar significativamente. Resta saber se a quantidade se traduzirá em qualidade.

Para ver a aplicação de testes de vocabulário em crianças de 2 a 5 anos, realizada no IPUSP pela pesquisadora Miriam Damazio, clique na imagem:

Por Tatiana Iwata

Edição e revisão por Islaine Maciel e Maria Isabel Leme

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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