Se ler pode abrir a mente, com certeza muda o cérebro

Psicologia Cognitiva e Neurociência: a dupla perspectiva na análise dos componentes da leitura em palestra no IPUSP

Sobretudo na última década, a Psicologia Cognitiva tem trabalhado em parceria com as Neurociências Cognitivas nas pesquisas acerca da leitura”. É o que afirmou José Morais, psicolinguista e professor emérito da Universidade Livre de Bruxelas, no início de sua palestra no IPUSP a respeito do impacto da leitura no cérebro, retratando a atual visão interdisciplinar desses estudos. Enquanto a Neurociência examina “as áreas e os fluxos de ativação do cérebro leitor”, a Psicologia Cognitiva realiza “estudos experimentais sobre os mecanismos da leitura” e também elabora “modelos de processamento” da habilidade de ler. Essa combinação é muito importante porque abarca tanto a concepção que temos de ‘cérebro’ quanto a que temos de ‘mente’, “que são dois aspectos da mesma realidade”, afirma Morais.

Dentre os resultados da cooperação entre as duas áreas está a dissociação dos componentes envolvidos na leitura: habilidade e atividade. A habilidade de ler é muito específica e é o que mais propriamente define a leitura. Já a atividade de leitura usa tal habilidade com o intuito de se chegar a uma compreensão do que está escrito. Assim, a atividade consiste mais no objetivo da leitura do que na leitura em si. “Ler serve de fato para compreender, mas não se pode dizer que ler é compreender”, afirma o Professor, que acrescenta: “Muitas outras coisas também servem para compreender.” Ele exemplifica: “Quando vocês estão a ouvir, estão utilizando habilidades específicas do vosso sistema de percepção da fala para compreender aquilo que eu estou dizendo”.

Ainda para ilustrar essa dissociação, o palestrante conta a história do poeta inglês John Milton que ensinara suas duas filhas a lerem em várias línguas. Quando ele ficou cego, as meninas liam para o pai, embora elas mesmas não compreendessem bem os textos, já que eram em idiomas que elas não dominavam (como o grego), além de complexos para a idade delas. Ora, mesmo sem entender, elas foram capazes de transformar um código escrito em língua falada. É parecido, por exemplo, quando lemos um texto em português, mas com palavras que não conhecemos. Mesmo sem compreender o que aqueles termos significam, somos capazes de pronunciá-los.

Essa ‘pronúncia’ pode se dar em voz alta, mas mesmo na leitura silenciosa existe uma ‘pronúncia mental’. A partir daí, quando o código escrito já foi transformado em língua falada, é que haverá outros processamentos para se chegar à compreensão do que está sendo lido. Para o leitor hábil, tudo isso acontece de forma muito rápida, quase simultaneamente. Isso dificulta que percebamos que ler e compreender o que se está lendo são processos diferentes.

“Não se pode dizer que
ler é compreender”

A contribuição da Neurociência tem sido muito importante nesse sentido. Diversos estudos de neuroimagens, comparando a leitura com outras atividades, vêm demonstrando tanto sua especificidade, quanto sua relação com outras funções cerebrais. Por um lado, verificou-se a ativação de uma região muito específica do cérebro ‘leitor’. Por outro, constatou-se áreas que são ativadas não apenas na leitura, mas em várias atividades que envolvem compreensão e outras faculdades, como a audição da fala e a visualização de imagens. Ler ‘cadeira’, ouvir ‘cadeira’ e ver uma cadeira, por exemplo, envolvem tanto processos semelhantes ‒ para se compreender ‘cadeira’ como sendo o mesmo objeto, quanto processos particulares de cada atividade, já que ler é diferente de ouvir que é diferente de ver.

“Ler é acessar a representação da ortografia e da fonologia”, afirma o Professor, que prossegue: “Pronúncia de cada palavra a partir de sua expressão gráfica”, o que “distingue o que fazemos durante a leitura do que fazemos durante a escuta de fala, ou durante a visão de um filme, que também é compreender, mas que para tanto exige processos específicos para processar o que está nas imagens.”

Especialização e influência

No decorrer de sua palestra, José Morais foi apresentando vários estudos que demonstram a existência de uma pequena área especificamente ativada nos cérebros de pessoas letradas, conhecida como Visual Word Form Area – VWFA (‘Área da forma visual das palavras’). Tais estudos eram de diferentes autores e centros de pesquisa pelo mundo (Brasil, Portugal, França, Bélgica, EUA, etc.), tendo como participantes leitores e falantes de várias línguas. Enquanto algumas pesquisas apresentadas pelo palestrante comparavam indivíduos letrados e iletrados em relação às regiões cerebrais ativadas ou não durante a realização de determinadas tarefas, outras verificavam se a VWFA era exclusivamente ativada durante a leitura ou também em outras habilidades.

Embora a expressão “Visual Word Form Area” tenha sido usada por alguns pesquisadores a partir da década de 1970, desde 2000 que ela foi adotada pelo neurocientista francês Stanislas Dehaene para nomear a região cerebral ativada na leitura identificada por ele. A pequena região que corresponde à VWFA em letrados existe no cérebro de qualquer ser humano, mas apenas a aprendizagem determina a nova função da identificação de palavras a esta área. Ocorre, segundo Morais, uma reciclagem de neurônios: “A hipótese de Stanislas Dehaene é de que tem que haver essa reciclagem neural – porque essa zona existia, e fazia outras coisas, certamente.” Ele continua: “E cada invenção cultural, cada aprendizagem nova tende a encontrar uma espécie de ninho ecológico no cérebro”. A VWFA se encontra justamente em um local próximo às regiões responsáveis tanto pela percepção visual quanto pela linguagem. “Onde pode se desenvolver a habilidade perceptiva da leitura, deve ser em uma estrutura neural que permita conectar o processamento dos objetos visuais espaciais, que são as palavras escritas, e as áreas que processam a linguagem”, afirma Morais.

A VWFA está localizada na região occiptotemporal do giro fusiforme do hemisfério esquerdo do cérebro ‘leitor’ [veja a figura acima]. De acordo com José Morais, essa localização é praticamente a mesma (com variações mínimas) nos leitores do mundo todo, independentemente da língua (português, inglês, japonês, etc.), do código ortográfico (fonográfico, ideográfico, etc.) ou mesmo da modalidade (visual ou tátil). O palestrante citou um estudo no qual se constatou a presença da mesma VWFA inclusive em cegos congênitos (pessoas que já nasceram cegas) que lêem em braile. Segundo ele, esse estudo foi “muito bem controlado” e a ativação da VWFA “diferia das regiões cerebrais ativadas em outros estímulos táteis como desenhos em relevo (gestalt) ou ainda caracteres parecidos com as letras em braile, mas que não o eram”.

Em outro estudo, com brasileiros falantes de português, comparou-se, por meio da ressonância magnética funcional, a ativação do cérebro durante a realização de tarefas de leitura e audição de sentenças. “Eles ouviam ou liam frases em português, relacionadas com o conhecimento geral, muito simples, e tinham que dizer se era verdadeiro ou falso”, descreve o Professor, que ilustra: “Por exemplo, ‘A rosa é um animal’, ‘O tigre é uma planta’”. Em seguida, foram verificadas as regiões que eram ativadas tanto na leitura quanto na audição e aquelas que eram exclusivas de cada uma das atividades. Constatou-se a forte ativação da VWFA especificamente durante a tarefa de leitura.

Todas as pesquisas apresentadas por José Morais constataram a ativação da VWFA durante atividades envolvendo visualização de palavras escritas (ou seja, leitura) nos leitores e ausência dessa ativação nos que não sabem ler. Além disso, foi verificado que quanto maior a velocidade de leitura do participante (‘literacia’ ou número de palavras lidas por minuto), maior o grau de ativação da VWFA. Mas, segundo o palestrante, o qual é também um dos autores de tais estudos, ainda mais interessante foi verificar que “A aquisição da leitura também modifica as respostas do cérebro à linguagem falada”. Ele afirma que nos letrados a ativação do plano temporal, que processa a fonologia das palavras apresentadas oralmente, é duas vezes maior do que nos iletrados. “Essa ideia que o fato de aprendermos a ler vai ter um impacto no cérebro que não é só aquela pequenina coisa que a gente viu no início [a VWFA], mas que tem um impacto muito importante no nível da reorganização das funções”, conclui o professor.

Por Tatiana Iwata e Fernanda Maranha
Edição e revisão por Islaine Maciel e Maria Isabel Leme

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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