Idoso que se prepara para morte cuida mais da vida

Idosos que se preparam para morte cuidam mais da vida, seja a própria ou a de seus próximos, conclui pesquisa feita no IPUSP

Um dos possíveis cuidados é fortalecer e retomar vínculos interpessoais (Foto: Shutterstock)

A dissertação “A única certeza da morte é a vida: investigação fenomenológica sobre idosos que se preparam para a morte”, feita pela mestranda Gabriela Giberti, investigou como são feitos alguns desses preparativos, o que significam e como variam de pessoa para pessoa. Com a inversão do jargão “a única certeza da vida é a morte” no título da dissertação, a pesquisadora reuniu algumas das possíveis preparações para a morte e percebeu que existia um fato em comum entre todas elas: falar de morte é cuidar da vida.

Gabriela explica: “Existe um cuidado com a minha vida a partir do momento em que cuido de muitas áreas dela até o meu morrer. Existe um cuidado com a vida dos meus familiares a partir do momento em que eu os preparo para a minha morte. Então falar de morte é falar de vida, cuidar da vida”. Dentre esses cuidados de muitas áreas da vida, ela destaca alguns que apareceram durante as três entrevistas realizadas com os idosos com mais de 80 anos.

No campo social, por exemplo, surgiu o aspecto de retomar e fortalecer vínculos interpessoais, e de limpar brigas do passado. No emocional, um dos idosos foi amadurecendo, ao longo da vida, a percepção e o entendimento de que a morte é inevitável, e essa simples perda desse medo é considerada, por ele, uma preparação. Houve, inclusive, um aspecto patrimonial, burocrático, que uma das entrevistadas trouxe, como comprar o cemitério e fazer o testamento.

A pesquisadora ressalta o aspecto fenomenológico do estudo: “Foram três experiências diferentes e, se eu entrevistasse 50 pessoas, seriam 50 experiências diferentes”. A fenomenologia existencial, a base teórica da pesquisa, entende como pressuposto que cada experiência é singular e tabula-se no chamado tempo vivencial, ou tempo Kairós, que é aquele que, em oposição ao cronológico, manifesta-se na subjetividade. Seria como sentir que os minutos passam mais rápido ao fazer uma atividade prazerosa, por exemplo, ou que passam mais devagar em situações desagradáveis.

Nesse sentido, Gabriela apresenta o conceito de temporalidade na análise dos relatos dos idosos: “É uma visão que associa e torna dependente o passado, presente e futuro. É olhar para o passado a partir do que se vive no presente e projetar o futuro com base nisso”. Os idosos, assim, dependendo da história de vida deles, entendem o passado como algo positivo ou negativo, e concebem presente e futuro a partir dessa percepção. Gabriela exemplifica: “Um dos idosos entendia que a vida que valeu a pena de ser vivida está no passado, porque a vida que ele leva hoje, em uma cadeira de rodas, por exemplo, já não faz mais sentido. Então, quando ele olha para o futuro, ele não quer mais viver. Isso é uma forma de lidar com a temporalidade, não existe uma regra”.

Outro conceito apresentado é o de corporalidade. Segundo a pesquisadora, a percepção e a compreensão do corpo são levadas em consideração para além do campo biológico. Ela explica: “Não se trata de como o corpo é, mas de como ele é entendido. É esse conceito que justifica, por exemplo, que uma pessoa que está com o biológico preservado se sinta impotente e uma que está com o corpo comprometido, em uma cadeira de rodas, se sinta muito capaz e potente”.  

Para além destes aspectos, a pesquisadora ressalta a singularidade de cada entrevista. Ainda que as três experiências sejam de extrema relevância para a compreensão geral de que falar de morte é falar de vida, cada preparo se configura como um exemplo. “O meu objetivo não é trazer uma definição universal do que é se preparar para a morte, mas entender a experiência dessas pessoas. A nossa cultura entende a morte como um tabu e esses idosos o quebram de alguma forma”, diz Gabriela.

A pesquisadora completa que esse tabu advém de como a cultura ocidental tornou a morte selvagem, no sentido de que, com o desenvolvimento da medicina e de tecnologias, ela foi ficando cada vez mais interdita e afastada da vida. Criou-se uma cultura de separação, que retira a morte como parte inevitável da natureza humana e impede que ela seja entendida integralmente com processo de luto, superação e compreensão. Ela encerra: “É um tema que gera muito sofrimento na nossa cultura. Então, falar de morte e poder cuidar desse assunto em vida traz, muitas vezes, mais serenidade do que não falar e temer a morte. Para falar de morte, eu não preciso estar deprimida nem querer me matar. É natural, e precisamos tratar dela com naturalidade também”.

Por Tamara Nassif – Agência Universitária de Notícias

Publicado originalmente em Agência Universitária de Notícias