À frente daquela entidade até 1989, ela foi responsável por criar uma comissão que elaborou a “Proposta da SBPC para a Constituinte”, abordando temas como educação, ciência e tecnologia, saúde, meio ambiente e populações indígenas. Um dos principais resultados foi a inclusão do artigo 218 sobre ciência e tecnologia na Constituição de 1988, algo inédito na história brasileira. O texto encarregava o Estado da promoção e do incentivo ao desenvolvimento científico e tecnológico. Também recomendava a abertura de fundações de amparo à pesquisa em todos os estados, a exemplo da FAPESP, que começou a funcionar em 1962. “O apoio da SBPC nas batalhas pelos direitos indígenas na Constituição ampliou a visibilidade e a importância desse tema de direitos humanos. Encontrei na presidência da SBPC aliados constantes”, escreveu a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), no livro A SBPC e a Constituição brasileira (SBPC, 2022). “O trabalho de reconstruir as propostas após tentativas de mudanças no texto elaborado pela SPBC vindas da oposição foi acompanhado pari passu por Bori”, prossegue Cunha.
O ativismo pautou toda a trajetória de Bori. “No início de sua carreira, ela lutou pela consolidação da psicologia como ciência no Brasil, e posteriormente pelo desenvolvimento científico e tecnológico como um todo”, conta Deisy de Souza, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (DPsi-UFSCar). “Carolina acreditava que a ciência e a educação eram os caminhos para o desenvolvimento do nosso país”, acrescenta Dora Fix Ventura, professora sênior do Instituto de Psicologia da USP.
Bori nasceu há 100 anos, em janeiro de 1924, em São Paulo. Era filha de um imigrante italiano, engenheiro, e de uma dona de casa brasileira, que antes do casamento trabalhava em uma loja de tecidos. O casal fez com que todos os seis filhos tivessem formação universitária. Carolina, a mais velha, formou-se em pedagogia, em 1947, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (atual FFLCH) da USP. No começo da década de 1950, casou-se com o comerciante italiano Giovanni Bori. Separou-se pouco depois do nascimento do único filho do casal, Lucas. Permaneceu solteira, mas manteve o sobrenome de casada.
Em seu último ano na graduação da USP, foi convidada pela professora da disciplina de psicologia, Annita de Castilho e Marcondes Cabral (1911-1991), para ser sua assistente. Cabral introduziu na USP, ainda nos anos 1940, as primeiras discussões sobre a psicologia experimental, uma abordagem que se baseia em experimentos feitos em laboratório para comprovar hipóteses. Animada com essa possibilidade, Bori se aprofundou na área durante o mestrado, defendido em 1952 na New School for Social Research, em Nova York, nos Estados Unidos. No estudo, fez uma revisão crítica de uma série de pesquisas sobre tarefas interrompidas, realizadas pela psicóloga russa Bluma Zeigarnik (1901-1988). Depois, no doutorado, que concluiu em 1954, na Faculdade de Educação da USP, prosseguiu investigando os experimentos de interrupção de tarefas, mas à luz da teoria de motivação, do psicólogo alemão Kurt Lewin (1890-1947).
Na mesma ocasião, e no contexto da reforma universitária que resultou na substituição das cátedras por departamentos, Bori se engajou no movimento pela criação de um curso de psicologia na USP. Até então, a psicologia era ensinada em cursos de filosofia, pedagogia e medicina da universidade paulista. Em maio de 1957, a nova formação curricular foi aprovada por um decreto estadual e as aulas da primeira turma começaram em fevereiro do ano seguinte, tendo Bori como integrante do corpo docente. O primeiro curso superior de psicologia do país havia sido criado antes, em 1953, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
A regulamentação em âmbito nacional aconteceria em 1962, por meio da Lei Federal nº 4.119, que dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e institui a profissão de psicólogo. Bori ajudou a escrever o projeto de lei e, após a regulamentação, integrou uma comissão para reconhecer como psicólogos aqueles profissionais que já atuavam na área. “Por sua atuação nessa comissão, ela recebeu o registro profissional nº 001, ou seja, Carolina é oficialmente a primeira psicóloga brasileira”, conta o psicólogo Gabriel Cândido, que estudou a trajetória de Bori no doutorado, concluído em 2014 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP. Ele deu prosseguimento à pesquisa sobre Bori em estágio pós-doutoral na PUC de São Paulo, finalizado em 2018.
Após a regulamentação da profissão, Bori participou ativamente da elaboração do currículo mínimo para os cursos universitários de psicologia e da criação de cursos como o da UFSCar e o da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) de Rio Claro – hoje unidade da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Ela foi fundamental na mudança do status da psicologia no país de uma ‘quase ciência’ para uma ciência”, explica Souza, que também é uma das gestoras das áreas de ciências humanas e sociais da Diretoria Científica da FAPESP. “Sua atuação imprimiu um novo rumo para os cursos de graduação em psicologia no Brasil, como na obrigatoriedade de aulas e de laboratórios de psicologia experimental.”
Em artigo publicado neste ano, na edição especial sobre o centenário de Bori do Jornal da Ciência, da SBPC, a diretora daquela instituição e professora da UnB, Fernanda Sobral, afirmou que Bori foi uma “construtora de instituições” no campo da psicologia. Dentre outras iniciativas, ela liderou a criação do curso de pós-graduação em psicologia da USP (1970) e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (Anpepp), em 1983.
No início dos anos 1960, a convite do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), Bori foi para Brasília montar o Departamento de Psicologia da UnB, concebida por ele e pelo educador Anísio Teixeira (1900-1971). Dentro do espírito inovador que Ribeiro e Teixeira desejavam imprimir à nova universidade, “Bori teve total liberdade para formatar o curso”, conta Souza. Ela seguiu para a capital federal com o psicólogo Fred Simmons Keller (1899-1996), da Universidade Columbia (EUA) – que já era uma referência entre os pesquisadores da análise experimental do comportamento –, e o então pesquisador em estágio de pós-doutorado sob supervisão de Keller, John Gilmour Sherman (1931-2006). Também colaborou no planejamento e formatação do novo curso o brasileiro Rodolpho Azzi (1927-2006). Graduado em filosofia pela USP, ele conheceu Bori quando ambos foram assistentes de Keller no primeiro curso sobre análise do comportamento no Brasil, que aconteceu na universidade paulista em 1961.
Na UnB, Bori criou e passou a dirigir o Instituto Central de Psicologia, hoje Instituto de Psicologia. Entre as inovações introduzidas por ela e seus parceiros estavam o ensino de psicologia no ciclo básico de todos os alunos de graduação e a aplicação dos princípios que deram origem ao Sistema Personalizado de Ensino (PSI, na sigla em inglês) e à Programação de Ensino. “Idealizado em 1963 por Bori, Keller, Sherman e Azzi, o método de ensino usado em Brasília buscava oferecer uma alternativa ao modelo de ensino tradicional, então muito pautado na autoridade do professor e na aplicação de técnicas punitivas”, relata Cândido. Entre as características principais estão a apresentação sequencial do conteúdo pelo aluno, a ênfase na palavra escrita e o respeito ao ritmo de aprendizagem de cada estudante.
Assim como boa parte das atividades da nova universidade, o curso de análise experimental do comportamento foi interrompido em 1965 devido à intervenção da ditadura militar no campus. Mais de 200 professores e técnicos pediram demissão coletiva em protesto à invasão. Bori permaneceu por um tempo e voltou para a USP em 1966. “O curso da UnB tem a marca de Carolina até hoje, e é ainda uma referência no Brasil na área de psicologia experimental”, diz o psicólogo Antonio Virgílio Bastos, do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Segundo Cândido, Bori orientou mais de 100 mestres e doutores em diversas áreas do conhecimento, como física, química e fisioterapia. “O que aproximava essas pessoas de Carolina era o ensino sob a ótica da psicologia experimental. Sua preocupação era formar pessoas e, por opção, não entrava como coautora nos artigos de seus alunos”, afirma o psicólogo, que no momento finaliza a biografia de Bori que deve sair este ano. “Esse é um dos motivos para que a produção bibliográfica de Carolina não seja tão extensa.” Ainda de acordo com o pesquisador, o currículo Lattes de Bori está incompleto. Em seu levantamento, ele localizou até agora 70 trabalhos, incluindo 25 artigos publicados em periódicos, sobretudo nas décadas de 1950 e 1960. Nesses trabalhos, Bori discorre, por exemplo, sobre o desenho, do ponto de vista da psicologia, a importância da estatística em sua área de atuação, além da evasão escolar.
Outro de seus artigos é sobre o episódio conhecido como “O demônio do Catulé”, quando quatro crianças foram assassinadas por fiéis da Igreja Adventista da Promessa, em 1955, no município de Malacacheta (MG). Na época, circulou o boato de que as vítimas estariam possuídas por uma entidade maligna. “Paulo Duarte [1899-1984], então diretor da Revista Anhembi, organizou uma pesquisa para estudar in loco o fenômeno, contratando para a tarefa um antropólogo, Carlo Castaldi [1924-2002], e uma psicóloga, Carolina Bori. Fui como auxiliar de pesquisa”, contou a antropóloga Eunice Durham (1932-2022) à revista Ponto Urbe, da USP, em 2009. Segundo Cândido, Bori viveu entre os integrantes do grupo por cerca de quatro meses para escrever o trabalho, que saiu na Anhembi em 1957.
Na década de 1990, retomou a parceria com Durham, que também foi professora da USP, no Núcleo de Pesquisa sobre o Ensino Superior (Nupes) daquela instituição. Juntas coordenaram, por exemplo, “Equidade e heterogeneidade no ensino superior brasileiro” (2000), estudo encomendado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). O trabalho tratou de temas como o papel da cor da pele no nível de escolaridade dos jovens.
Bori se manteve atuante até o fim da vida. Em 2004, ao sair da reunião anual da SBPC, sofreu uma queda e morreu meses depois por complicações advindas do acidente. Tinha 80 anos. No início de 2024, a SBPC lançou o Memorial Carolina Bori, dedicado à psicóloga, que disponibiliza on-line itens como fotografias, entrevistas e artigos. Além disso, para incentivar a atuação de pesquisadoras, a entidade concede desde 2019 o prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher. “Carolina enfrentou muitas batalhas em um tempo em que a ciência era lugar sobretudo para os homens”, conclui Souza, da UFSCar.
Nascida há 100 anos, Carolina Bori teve voz proeminente na ciência brasileira
Revista Pesquisa Fapesp, 6/7/2024.
Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/nascida-ha-100-anos-carolina-bori-teve-voz-proeminente-na-ciencia-brasileira/#:~:text=%E2%80%9CNo%20in%C3%ADcio%20de%20sua%20carreira,Carlos%20(DPsi%2DUFSCar).