Sobre suicídio e violência autodirigida no Brasil

Foto: Leonardo Prado/Funai

Um estudo da Fiocruz publicado no início do ano aponta que na primeira década do século 21, no mundo, houve uma redução significativa de suicídios. Contudo, nas Américas a taxa cresceu muito e, só no Brasil, o número de casos subiu 46% entre 2000 e 2019. Quando observadas as categorias raça e etnia, entretanto, notadamente pessoas indígenas apresentam as maiores taxas de suicídio e de violência autodirigida, seguido de pessoas pardas, no ano de 2022.

É relevante refletir sobre esses dados para a compreensão dos impactos relações étnico-raciais no Brasil sobre processos psicológicos. Não é por acaso que pessoas indígenas, seguidas das pardas, apresentam os maiores índices.

Cabe ressaltar que o termo pardo foi utilizado em Pindorama — um dos termos indígenas que identificam a terra das palmeiras, muito antes de ser rebatizada pelos novos colonizadores para a terra do pau-brasil — pela primeira vez, para descrever o corpo de pessoas indígenas. O processo de colonização realizou inúmeros esforços para apagamento das identidades indígenas, quando não efetivada a eliminação da vida de pessoas e comunidades inteiras. Indígenas foram massivamente classificados como negros da terra, caboclos ou mestiços. Tiveram seus costumes e práticas proibidos—ainda vemos no noticiário ser frequente a queimada violenta de casas tradicionais indígenas. As próprias línguas indígenas foram excluídas do repertório comunicativo por força de imposições sociais exóticas, ou sejam, vindas do estrangeiro.

Uma das razões para pardo ser a categoria no quesito raça-cor do censo demográfico com maior número de indivíduos, se relaciona com o apagamento da memória histórica de violações sofridas por pessoas e comunidades que hoje, muitas vezes, desconhecem sua própria origem.

Até meados do século 20, foram patrocinadas, no Brasil, diversas experiências sociais que tiveram a mestiçagem no centro de uma concepção eugenista segundo a qual o aprimoramento do indivíduo estaria baseado no fenótipo, com destaque para traços físicos. Tal concepção supõe que o indivíduo poderia prescindir de referências quanto ao processo de consciência histórica da própria identidade. Tratava-se de diluir as diferenças e esquecer as perversões das gestões passadas, que promoveram o assassinato e a escravidão de milhões de pessoas, em proporções nunca antes nem depois vistas na história da humanidade. Para a suposta construção de uma sociedade idealmente fraterna entre indivíduos equivalentes, que não mais se saberiam indígenas ou negros.

Entretanto, em psicologia, sabemos que a produção do esquecimento não contribui para o cuidado com aquilo que faz sofrer.

Discussões antropológicas e da área técnica de saúde mental e medicinas tradicionais indígenas, vinculada ao Ministério da Saúde, enfatizam a importância de não se naturalizar os dados epidemiológicos como uma condição intrínseca de pessoas identificadas em uma ou outra categoria étnico-racial ou de pertencimento cultural. Em um documentário da TV Brasil, na série Caminhos da Reportagem, é possível encontrar, de forma acessível, argumentos na direção de que os conflitos sociais que se desdobram das persistentes violações de direitos indígenas produzem intenso sofrimento e impactam de maneira inequívoca, os índices de suicídio e violência autodirigida.

Um dos argumentos apresentados por especialistas indígenas consultados no documentário, para compreensão da situação alarmante de agravos em saúde em que nos encontramos, articula o impacto exercido por violações de direitos de pessoas e comunidades que inviabilizam ou dificultam seus modos de vida. Dificultar, inviabilizar ou confundir o pertencimento das pessoas às suas raízes socioculturais e étnico-raciais têm, como um dos efeitos, o sofrimento psicológico.

A promoção da saúde, por sua vez, supõe esforços para a recuperação de direitos e a afirmação da identidade por meio das práticas coletivas e pessoais de cuidado com o território e com os corpos-territórios das pessoas e demais seres com os quais convivem. A noção de saúde deve incluir as relações socioambientais como parte de um processo dinâmico. A saúde não é uma condição individual ou um resultado atingido como aquisição pontual, nem ponto de chegada. Diferente disso, saúde tem a ver com a formas de percorrer o caminho da vida, de estabelecer relações segundo processos de cuidado, que são pessoais e coletivos, entre comunidades de seres diversos que coexistem e se implicam mutuamente num dado lugar.

Assim, é importante reconhecer e tornar visível, no debate sobre políticas públicas, ações afirmativas de inclusão e pertencimento, que a luta por direitos territoriais e a afirmação da identidade por meios de práticas ancestrais são, também, caminhos indígenas de promoção da saúde.

Por Danilo Silva Guimarães, professor do Instituto de Psicologia da USP

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