TRAJETOS NO ATO DE PESQUISAR: DESLOCAMENTOS CRÍTICOS DO PENSAMENTO

Por Adriana Marcondes Machado (IPUSP), Elizabeth Araújo Lima (FMUSP), Erika Alvarez Inforsato (FMUSP)

Desafios

A partir de experiências de realizar e orientar pesquisas, tomamos as formas de pensar e escrever como elementos que participam das condições concretas em que se formaliza o ato político que toda investigação constitui. Há pesquisas cujo foco é o fazer profissional do(a) próprio(a) pesquisador(a), com construção de registros em caderno de campo da experiência desenvolvida durante o processo da investigação, ou análise retrospectiva de documentos e notas de uma experiência já finalizada. Algumas investigações constituem narrativas transpostas e criadas a partir do vivido, outras se utilizam de estratégias como entrevistas e questionários para colher e produzir elementos e informações que vão compondo camadas das análises feitas em todo o processo do ato de pesquisar, muitas delas voltadas a escutar outros(as) profissionais, além de famílias, pessoas acompanhadas, usuários(as) de serviços de saúde, educação e assistência social, estudantes e professores(as), entre outros recortes. Há pesquisas dedicadas exclusivamente à discussão conceitual e, outras, em que os aportes conceituais são acionados em articulação com as experiências pesquisadas.

Em meio a diferentes formas de produzir e apresentar as pesquisas, ressaltamos algo que se mantém: o desafio de acessar e colocar em análise a implicação, o interesse e a atuação do(a) pesquisador(a), sua posicionalidade, na construção do problema e no desenvolvimento da pesquisa.

Os vários processos envolvidos no ato de pesquisar – a definição do problema da pesquisa, a forma de introduzir o tema, a delimitação do objetivo, a apresentação dos procedimentos e dos resultados, a discussão das informações obtidas, dos elementos produzidos e do processo vivido, e a elaboração das considerações – exigem idas e vindas. A definição de uma etapa altera, muitas vezes, alguma anterior. É comum que a discussão dos resultados ajude a delimitar melhor os objetivos, que a experiência no campo dê melhor contorno ao problema. Esse movimento se dá no processo de escrita[1].

Nesse sentido, as questões apresentadas não se referem a algo linear, elas indicam possibilidades para pesquisas comprometidas ética e politicamente com a produção de conhecimentos contributivos que efetuem interferências na construção dos problemas por elas pautados.

Problemáticas e disparadores da pesquisa

(i) Que produções, funcionamentos e modos de fazer o projeto pretende enfrentar, confrontar e combater?

(ii) Que produções, funcionamentos e modos de fazer o projeto defende e afirma?

(iii) Que produções, funcionamentos e modos de fazer produzem estranhamentos e inquietações que forçam/demandam/pedem um trabalho de pesquisa?

Introdução e Objetivo

(i) Como se dá a produção do problema?

Discorrer sobre o contexto (as condições concretas) em que se dá o processo de produção do problema, as relações históricas em que a problemática se constitui. Aqui se abrem discussões, temas e conceitos a serem aprofundados.

(ii) Em que situações/práticas/relações se materializa aquilo que se configura como problema para a pesquisa?

Situar as experiências que são a matéria-prima deste trabalho, elencar os acontecimentos a partir dos quais se busca esculpir uma forma possível de introduzi-las na linguagem para serem compartilhadas.

(iii)    Qual o objetivo, por que essa pesquisa está sendo realizada? O que quer fazer nessa pesquisa e em que espera interferir? O que essa pesquisa pretende que ganhe visibilidade e convoque saídas?

Ao considerar as situações/práticas/relações em que o problema ocorre, vai-se delimitando melhor o objetivo. Trata-se de um recorte que permite acessar e analisar elementos do processo de produção do problema de maneira a explicitar sua relevância. O objetivo se articula a situações em um campo problemático, é situado e, nesse sentido, depende de uma posição nesse campo que pressupõe parcerias:  estudos e autores(as) que colaboram com a discussão dessa posição.

Implicação, Posicionalidade e Micropolítica

(i) Como você está inserido(a) nessas situações em que o problema se constitui? Que encontros e cruzamentos você habita?

Mostrar como o(a) pesquisador(a) se insere nas situações em que se constitui a problemática.  O problema emerge de frequentações diretas (de experiências vividas) ou indiretas (do campo sensível; algo afeta na relação com o campo problemático) do(a) pesquisador(a).

(ii) Qual (quais) perspectiva(s) incidem na construção do trabalho?

Uma questão de pesquisa surge no interior de uma trajetória singular de um corpo no seu encontro com outros corpos, em configurações de entendimento e manejo dos problemas que estão inscritos em um processo de produção de subjetividade, e se impõe como algo do qual não se pode escapar. Ao rastreá-la, encontramos outras trajetórias que se cruzam com a nossa e descobrimos que um caminho singular se compõe e se agencia num território coletivo. O percurso e o lugar do qual se parte para realizar uma pesquisa se instala numa certa perspectiva. Afirmamos, com Nietzsche, que conhecer é sempre uma ação perspectivista[2].

(iii) A partir de sua inserção nessas situações, que indagações/questões se produziram?

As inserções nas situações e as experiências vividas geram estranhamentos e inquietações, frutos dos desequilíbrios no sistema de significância. Isso incita a formulação de indagações/questões a serem investigadas/discutidas na pesquisa: por que fazemos de certo jeito? o que gera os efeitos vividos nas experiências? As indagações/questões são, portanto, situadas em territórios singulares em que a problemática se apresenta.

Obs.: refletir se seria interessante colocar alguma situação que gera estranhamentos e inquietações no início do trabalho. Uma situação vivida pode ser disparadora para apresentar o problema da pesquisa.

(iv) Apresentar elementos da história da região, do local, da instituição em que essa situação se constitui.

Situar esse território: local e história da região e/ou da instituição, relação do(a) pesquisador(a) com ela, funcionamentos locais e correlações com as adjacências (outras regiões/setores/instituições), quem são as pessoas que participam desse território (marcadores sociais).

Macropolítica

(i) Qual relação entre o contexto macropolítico e as situações analisadas?

Fazer uma análise macropolítica sobre a produção do problema, do tema e da situação. Arrastar índices e pistas que já estão dispostos(as) em outros estudos científicos e sociais. Discutir e analisar em diálogo com pesquisas, conceitos e outros trabalhos a produção do problema e das situações em que ocorreram os estranhamentos e as inquietações que incitaram as indagações/questões formuladas.

Procedimento

(i) Como fará para se debruçar e investigar as indagações/questões formuladas? Como o procedimento (estratégia de produção de dados e método como modo de fazer) se relaciona com o objetivo?

A pesquisa como um todo é, também, campo de trabalho, isto é, consideramos que o trabalho de pesquisa se dá em um processo. Eleger autores(as), aprofundar certas discussões; tudo isso é processo de construção da pesquisa. Portanto, o procedimento não se refere apenas ao chamado trabalho de campo de onde emergem certas informações a serem analisadas.

No caso de pesquisas que se debruçam na análise de dispositivos criados em relações singulares (pesquisa-intervenção), o problema de pesquisa concerne, também, a um problema para a própria pesquisa, isto é, visa, também, a investigar o próprio procedimento. Nessa direção, damos relevo ao “objetivo no método, isto é, investigar a construção, no método, do que torna possível alcançar o objetivo do método” (Machado, 2023, p. 78)[3]. Como as estratégias desenvolvidas se articulam com o processo de produção do problema situado?

O procedimento desenvolvido é uma produção singular e contingente que permite analisar as relações de poder e saber em que esse procedimento se dá. Discussões e conceitos de autores(as) e de pesquisas colaboram na justificativa do procedimento, mas não suprem a necessidade de explicitar a complexidade das relações em que ele se dá.

(ii) Quem participa da pesquisa? Como se constituem essas relações?

Situar quem são as pessoas que participam da pesquisa e como são a ambiência e o percurso em que se dará a relação dessas pessoas com a pesquisa.

(iii) Quais materiais escritos servem para analisar as indagações/questões formuladas?

Diário de campo, registro de entrevistas, de encontros-entrevistas e conversas, perguntas e respostas de questionários, anotações e relatórios existentes na prática dos serviços e outros.  Analisar a escolha dos materiais e sua relação com o objetivo da pesquisa.

Resultados

(i) Durante a realização do procedimento da pesquisa, apresentar as informações e os deslocamentos que ocorreram.

A pesquisa é oportunidade de imersão diferenciada na problemática e produz informações e recombinações dos elementos dispostos nas situações. O registro dos deslocamentos operados no pensamento e das variações nas práticas realizadas pela pesquisa é material para análise.

Discussões

(i) Como relacionar as informações, as recombinações e os deslocamentos ocorridos durante a pesquisa com o problema da pesquisa e com o próprio procedimento?

A análise está presente em todo o trajeto da investigação em intensidades distintas. Pode-se considerar que, após o adensamento da produção, no contato com o campo e com todos os elementos implicados, ela se acentua. Assim, pensar a análise dos resultados implica discutir as informações obtidas, as recombinações dos elementos referentes ao problema e os deslocamentos ocorridos.

No processo de análise ocorrem variações de pensamento, muitas vezes tratadas como mudanças que, uma vez ocorridas, dispensariam o que pensávamos antes. Aqui a proposta é outra: valorizar a discussão sobre como se deram as passagens e mudanças de pensamento. Os deslocamentos operados no campo prático e no campo conceitual (mudanças no/do modo de fazer e de pensar) são resultados da pesquisa e seus registros são índices a serem analisados.

Trata-se de dar relevo às pequenas invenções, variações e gestos no percurso da pesquisa: se algo se tornou necessário e possível fazer e não estava sendo pensado, isso é matéria de reflexão sobre o próprio método e sobre a temática investigada. Assim, podem-se analisar os movimentos em que passamos a pensar aquilo que não era pensado e a fazer o que não era feito.

Considerações

(i) Que articulações a pesquisa permite fazer?

Tecer considerações implica criar articulações não pensadas que incitam outras indagações/questões. Considerar como essas articulações se entrelaçam com estudos já realizados, como se inscrevem no conjunto das produções relacionadas a essa temática. Não se trata de fazer um resumo da pesquisa e sim afirmar uma contribuição para manter vivo aquele problema, com possibilidades de proliferar sua abordagem, um compromisso com o que foi tocado com essa pesquisa.

(ii) Retomar e analisar as motivações

Atravessando um avesso, considerar que, feito o percurso, se produzem sentidos e maior consistência aos trajetos.

(iii) Que caminhos se abrem a partir daqui?

Reconhecer até onde o estudo chegou, o que demanda continuidade, que caminhos fortalece e que outros percursos são convocados.

O que faz a pesquisa existir

(i) O que anima o ato de pesquisar, o que sustenta o prazer?

Produto técnico-tecnológico

Quando o programa de pós-graduação indica a necessidade de apresentar um produto associado à tecnologia social, de saúde, educacional ou sociocultural, a depender do campo de inserção da pesquisa.

(i) A partir das situações em que você está inserido(a), que instrumentos/ações podem ser acrescentados(as) ao cotidiano das pessoas que trabalham e vivem questões semelhantes em relação às problemáticas delimitadas?

O objetivo do produto é dinamizar exercícios possíveis no enfrentamento de problemáticas materializadas em situações/práticas/relações.

Referências Bibliográficas 

Lima, EMFA (2009). Arte, clínica e loucura: território em mutação. São Paulo: Summus/Fapesp.

Lima, EMFA; Marcondes, AM;  Inforsato, EA (2022). A Escrita como Agenciamento: Explorando Linhas de Minoração. Educação Em Foco, 25(47). https://doi.org/10.36704/eef.v25i47.6909

Machado, AM (2023). Quando a escrita toca a produção institucional. São Paulo: Blucher. ISBN: 9786555501858, DOI 10.5151/9786555501858.

Acesso aberto e gratuito. Link: https://pdf.blucher.com.br/openaccess/9786555501858/completo.pdf 

Autoras

Adriana Marcondes Machado, docente dos programas de Pós-graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano (Instituto de Psicologia/USP) e do Mestrado Profissional em Terapia Ocupacional e Processos de Inclusão Social (Faculdade de Medicina/USP). Coordenadora do grupo de pesquisa Escrita e Formação.

Elizabeth Araújo Lima, docente do Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte (MAC-USP) e do Mestrado Profissional em Terapia Ocupacional e Processos de Inclusão Social (Faculdade de Medicina/USP). Coordenadora do grupo de Pesquisa Produção de Subjetividade, Arte, Corpo e Terapia Ocupacional (PACTO-USP).

Erika Alvarez Inforsato, docente do Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Terapia Ocupacional e Processos de Inclusão Social (FMUSP) e do Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte (MAC-USP). Pesquisadora do grupo de pesquisa Produção de Subjetividade, Arte, Corpo e Terapia Ocupacional (PACTO-USP).

__________________

[1] Lima, EMFA; Marcondes, AM,  Inforsato, EA (2022). A Escrita como Agenciamento: Explorando Linhas de Minoração. Educação Em Foco, 25(47). https://doi.org/10.36704/eef.v25i47.6909

[2] Lima, EMFA (2009). Arte, clínica e loucura: território em mutação. São Paulo: Summus/Fapesp.

[3] Machado, AM (2023). Quando a escrita toca a produção institucional. São Paulo: Blucher. ISBN: 9786555501858, DOI 10.5151/9786555501858.

Acesso aberto e gratuito. Link:  https://pdf.blucher.com.br/openaccess/9786555501858/completo.pdf

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