Uma marcha da insensatez revisitada

Há exatamente um mês, a nau dos insensatos atracou na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e despejou pelas ruas uma massa de gente que, depois de esperar por eternas 72 horas que nunca chegaram, cantar o hino nacional para pneu e aguardar ações de um general improvável, resolveu atacar a democracia por conta própria. Naquele dia 8 de janeiro – como todos infelizmente sabem –, milhares de pessoas em um transe que pode até ser explicado, mas nunca se justificará, abandonaram absurdos acampamentos em frente a quartéis Brasil afora, invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF e destruíram o que viram pela frente. Esfaquearam Di Cavalcanti, destruíram o mobiliário e peças expostas e afanaram uma cópia da Constituição, deixando um prejuízo de milhões de reais e uma nação em estado de choque. Nesse último mês, muito se falou e se analisou sobre os nefastos atentados daquele aziago dia 8. Mas ainda há muito a se falar e a se analisar – e a se entender. Afinal, querendo-se ou não, aquelas ações de início de ano não foram um ponto fora da curva nem as consequências de uma confluência astral perniciosa, um Mercúrio retrógrado, ou o que seja. Não. Aqueles atos antidemocráticos, com viés de golpe – mesmo num domingo de palácios vazios –, são a consequência de um ovo da serpente que há muito chocou. E espalhou seus filhotes alucinados por todo o território nacional.

Aquela marcha da insensatez de janeiro talvez possa ser tomada como o ato mais recente de uma ópera bufa – mas extremamente perigosa – que vem sendo encenada nos últimos anos. Uma peça alimentada por discursos e ações de gente que tinha o poder e uma caneta Bic na mão, mas também de inúmeros atores que, pelos mais variados meios – principalmente as redes sociais, mas não só elas – invadiram corações e mentes de uma parcela da população que, pelos mais variados motivos, achavam que acampar ao relento, clamar, com celular na testa, por ETs salvadores e achar que Lady Gaga era ministra da Corte Internacional de Haia fazia sentido. Tudo, pode-se tentar entender, em busca de uma sensação de pertencimento, de preencher algum “vazio existencial”.

“Essa ideia de uma marcha insensata combina muito com o que aconteceu no dia 8 de janeiro. A gente não tem ali um abaixo-assinado, um líder disposto a negociar alguma coisa, uma demanda. Ali, cada um fez o que quis, empreendeu a sua própria marcha da insensatez. E a exposição disso, me parece, vai ter um efeito dramaticamente desconstrutivo em relação a esse discurso, porque revela algo sobre a sua substância, sobre sua desorganização”, afirma o psicanalista, escritor e professor do Instituto de Psicologia da USP (IP-USP) Christian Dunker.  “Revela algo também sobre sua vulgaridade, o que para os ideólogos conservadores de classe média é extremamente problemático. Essa parcela da sociedade não quer ser confundida com pessoas enroladas na bandeira nacional, sem articulação discursiva, berrando slogans e destruindo o patrimônio cultural. Isso dá uma forma, uma face a um golpe que tanto se esperou, que tanto habitou a fantasia – e os temores – de muitas pessoas nos últimos anos. A gente consegue perceber agora do que ele é feito: um golpe rodoviário, feito por pessoas comuns, sem grande organização – apesar de estar sendo financiado. Isso é muito perigoso. Hordas sem ordem levam à barbárie”, afirma Dunker, autor de Lacan e a Democracia, no qual analisa a articulação entre psicanálise e política.

Realidades paralelas

Mas o que leva essas “hordas sem ordem” a querer assumir um protagonismo tosco e perigoso no cenário democrático brasileiro e participar, in extremis, da tal “Festa de Selma”, codinome que os golpistas deram à invasão da Praça dos Três Poderes? Em reportagem recente sobre o rescaldo do 8 de janeiro, o jornal Valor Econômico mencionou uma situação clínica chamada de folie a deux – uma loucura a dois, mas que pode ser elevada à enésima potência de uma multidão fazendo parte de uma festa estranha com gente esquisita. Devem todos ser tratados como psicóticos? Não necessariamente. Mas haja divã para entender como essa massa de gente acabou por escolher viver naquilo que se tem chamado de “realidade paralela”.

“A ideia de uma realidade paralela é uma boa expressão porque sugere que em algum momento, mesmo que no infinito, em um ponto indefinido, ela se toca com a outra. Mas é necessário criar paralelas às paralelas. Criar também perpendiculares, transversais. E quando alguém começa a se mudar para uma realidade paralela? Em geral, é porque a realidade original se encontra muito indeterminada, incerta ou pouco relevante, muito monótona e muito tediosa. Incapaz, então, de propor um horizonte de expectativas”, começa a explicar Dunker. “Esses fatores convergiram para uma realidade paralela bastante organizada que exprime movimentos sociais e que vai nos dar trabalho para criar essas tais transversais”, afirma ele, para continuar: “A expressão ‘realidade paralela’ também é conhecida na psicopatologia a partir de algumas versões possíveis. A versão mais grave da realidade paralela é o delírio. Mas antes temos o devaneio, o sistema de ilusão e, num processo inicial, as conjecturas. E a organização do bolsonarismo explora esse conjunto de versões paralelas – são várias, poderíamos dizer –, que são construídas pacientemente ao longo do tempo, principalmente com a chegada da linguagem digital. Qualquer nova forma de linguagem, historicamente – livro, tv, rádio –, sempre, ao longo dos tempos, esteve ligada à produção de realidade paralela”, afirma o psicanalista.

Dentro desse contexto de uma outra realidade, há outros conceitos que também precisam ser vistos com atenção. Afinal, uma pessoa não embarca nessa viagem para um mundo alheio àquele de fato do nada, sem motivação. Como explicou Dunker há pouco, essa motivação pode sair de uma realidade monótona, que não oferece perspectiva. Mas não é só isso. Há aquilo que pode ser chamado de sentimento de “vazio interior” ou “vazio existencial” – que pode levar ao paralelismo do real mas também direciona para a necessidade de pertencimento a um grupo que defende valores semelhantes – a criação de um inimigo e a famosa luta contra o comunismo, por exemplo, ou a defesa de coisas difusas como “um país melhor” – mesmo que para isso se pratique atitudes extremas, em uma espécie de violência preventiva – “se eu não fizer, o outro vai fazer pior”, pode-se pensar. É nesse ponto que se forma o que Christian Dunker chama de “crença delirante artificialmente produzida”. São essas pessoas – milhares, milhões delas, na verdade – que acabam sendo alvo fácil para posts tendenciosos (na maioria das vezes radicais) nas redes sociais e a desinformação via canais extremistas.

“O vazio existencial é uma das versões possíveis para a gente detalhar o que seria essa perda de relação com a comunidade, com as instituições, com o mundo, seja na relação de filiação, seja na relação de pertencimento ou na de reconhecimento. O vazio existencial depende exatamente de que planos de existência estamos falando. De fato, o Brasil passou, antes do bolsonarismo, por um período de grande reformulação social. Muita mobilidade, muito conflito, muitas decepções para determinadas pessoas. Uma forma de pensar o vazio existencial é que ele aparece em relação à nossa insuficiência para enfrentar situações, formas de mundo, que se tornaram exponencialmente complexas”, afirma o professor do Instituto de Psicologia. “Quando eu entendo que o espaço político se tornou tão complicado que eu não consigo mais interpretá-lo, quando vejo que a vida social se transformou de tal forma que tenho que pensar e entender novos códigos – de raça, gênero, credo, de orientação sexual –, isso gera incertezas, insegurança”, explica Dunker.

Janelas danificadas no Palácio do Planalto após atos terroristas. Foto: Fábio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Narrativa messiânica

Para Christian Dunker, a produção artificial de determinada crença delirante – e o “artificial” aí serve para diferenciar da somatória dos transtornos individuais, dos transtornos psíquicos que porventura existam em uma comunidade – pode se basear em posições institucionais comunitárias, de linguagem, de trabalho, de vida. “Potencialmente, qualquer um de nós pode se entregar a uma crença delirante. Mas isso envolve certas condições, como você se ilhar, se distanciar de seus grupos de referência em sua comunidade de base. De fato, o bolsonarismo fez isso: ele dividiu famílias, criou pessoas que entraram em isolamento, ele articulou pessoas que já estavam isoladas”, considera Dunker. “Um outro ponto é produzir uma narrativa messiânica, que não precisa ser uma narrativa transcendente, mas pode ser uma grande cruzada, uma grande aventura em que nós, pessoas comuns, vamos tomar o poder. Essa é uma ideia que, de tempos em tempos, ressurge no mundo. Então, voltando à realidade paralela, podemos entender que ela se mostra capaz de vencer a realidade usual, ordinária. As pessoas entram em um processo em que a vida se intensifica, você tem um propósito, você tem um grupo de referência. Você tem certeza de que vai transformar o mundo. Para aquele que tem pouca autoestima, para quem tem poucas perspectivas, para quem tem o valor da vida rebaixado, entrar em um empreendimento como esse é, de fato, uma alternativa bem atraente.”

Porque, segundo o psicanalista – e isso explica muita coisa –, no momento em que alguém envereda por esse caminho, lutando contra o inimigo imaginário, quase moinhos de vento socialistas e perigosos que só existem no discurso radical, é premiado com um efeito psíquico adicional, um bônus: o empoderamento, a sensação plena de pertencimento. “A pessoa se sente mais corajosa, mais relevante no mundo, ela está atuando mais do que na sua condição anterior. Há um ato performativo que vai se confirmando. No momento em que a gente atua essa crença, ela ganha realidade. E esse é um elemento importante da crença delirante, porque ela sempre se confirma. Não por seu teor de realidade ou irrealidade, nem por seu teor de verdade ou falsidade, mas pelo seu teor de convicção. Ou seja, a certeza no estado psicológico do sujeito de que aquele engajamento se justifica. E essa certeza faz com que a individualidade e a racionalidade sejam substituídas por uma racionalidade maior, por uma racionalidade de grupo. E é aí que ele adquire um sentimento de proteção, de confiança, de coragem para fazer o que faz”, analisa Christian Dunker.

A realidade imita a arte ou vice-versa? Nesse caso de sentimento de proteção, de confiança, de coragem – como o que, de várias maneiras, inspirou as massas extremistas no 8 de janeiro e em outros atos nos últimos anos –, talvez a polaridade pouco importe. Porque ambas chamam por demais a atenção – e ficção e realidade se confundem.  Não à toa pode-se encontrar exemplos nas plataformas de streaming que referendam as ideias e ações discutidas neste texto. Tanto no filme de ficção alemão A Onda, de 2009, como no documentário americano A Terra é Plana (2018), a necessidade de pertencer a um grupo, de ser acolhido, é palpável. E não importa se as ideias que levam a isso sejam as mais estapafúrdias ou perigosas – no filme alemão, a sensação de pertencimento em um grupo de alunos que se deixa seduzir por ideais neonazistas é o rastilho de pólvora. O que começa como um exercício para mostrar os riscos e horrores do extremismo de direita se torna o motor para ações cada vez mais violentas. Mas tudo em nome do grupo.

Já no documentário terra-planistas, o que se vê como pessoas que não encontram seu lugar no mundo sensível, que são praticamente invisíveis em sua vida sem perspectiva e sensaborona, ganham notoriedade e seguidores pelo absurdo de suas teorias – no caso, a defesa inconteste de que a Terra é tão plana quanto uma bolacha de chopp. Nos dois casos, estão aqueles elementos que Christian Dunker apontou: a falta de perspectiva, a baixa autoestima, o descolamento com a realidade. E o levantar de bandeiras que pouco ou nada coadunam com o mundo real. Exemplos não faltam.

Acampamento de manifestantes antidemocráticos em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste do Exército Brasileiro, no Rio de Janeiro – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

“A democracia precisa oferecer uma alternativa aos extremistas”

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Por: Marcello Rollemberg, para o Jornal da USP, 10/02/2023

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