Gênero e Ciência na TV brasileira: quem protagoniza a produção acadêmica nacional?

Legenda: Na televisão brasileira, a ciência tem sexo, idade e cor: homens de meia idade brancos. Fonte: freepik.com. Crédito: rawpixel.com. Imagem editada. Disponível em: https://br.freepik.com/fotos-gratis/homem-ficar-e-segurando-um-tv_2771409.htm#query=televis%C3%A3o&position=19&from_view=search&track=sph

Estudo investiga como ocorre a construção jornalística de narrativas sobre gênero e ciência, e como as mulheres cientistas são representadas em programas televisivos nacionais de grande audiência. 

Débora Dutra Pinheiro Câmara

Mãe de três crianças lindas e espertas, professora da educação básica pública, tento conciliar as demandas e exigências da maternidade e do ser mulher no Brasil com as temporalidades e ambições de cursar um doutorado. Entusiasta desde pequenininha (não que eu tenha crescido tanto assim) das complexas relações entre os seres vivos, meio ambiente e sociedade, acreditei que uma formação em Biologia me ajudaria a compreender melhor esse emaranhado de conexões que nos cercam. Mas, percebi que no fim das contas, me “enformei”. Angústias pessoais e profissionais me conduziram a um mestrado profissional em Ensino de Ciências Naturais, Universidade Federal de Mato Grosso, e ao doutorado acadêmico em Ensino de Ciências Naturais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Com esta pós, quero sair da "caixinha de professora" em que me percebo e contribuir para que a educação brasileira seja “desenformada”.

Instagram: @dutra_debora 

Wellington Pereira de Queirós 

Atuo como educador por 26 anos na Educação Básica e no Ensino Superior. Além disso, sou esportista: treino em academia de musculação, e gosto de ciclismo. Também sou espiritualista com grande apreciação e prática nas religiões Afro-Brasileiras. Sou encantado por estudos de interface entre as várias do conhecimento. Doutor em Educação para a Ciência pela UNESP-Bauru e atuo nos programas de Pós-Graduação da área de Ensino da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e da Universidade Federal de Goiás (UFG). Fui representante da região Centro-Oeste na Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC).  Meus principais temas de interesse são: Epistemologia, Formação de Professores, relação Ciência e Religião.

27 de maio de 2024 | 10:00

Afinal de contas, o que é Ciência? Essa pergunta motiva filósofos e epistemólogos ao longo do tempo. Diante da última grande pandemia, de Covid-19, afirmar que algo é cientificamente provado é como dizer “eis uma verdade absoluta!”. Mas talvez, antes de discutirmos o que é Ciência e quais suas finalidades, justificações e limitações, devemos olhar para os agentes que a constroem. Quem são e como são os cientistas que contribuem para a construção do conhecimento científico em nosso país? E mais ainda: é possível afirmar que exista uma aparência, ou um estereótipo, para o cientista brasileiro? 

Os pesquisadores Luisa Massarani, Yurij Castelfranchi e Anna Elisa Pedreira, publicaram em 2018 na revista científica Cadernos Pagu, um estudo que preenche a lacuna do campo científico que discute a importância e a representação das mulheres no mundo científico: a representação da mulher cientista na TV brasileira. Eles investigaram como se dá a representação de mulheres cientistas em programas de grande audiência no Brasil: Jornal Nacional e o Fantástico. Os pesquisadores estudaram estes programas por 12 meses e realizaram uma triangulação metodológica de técnicas quantitativas e qualitativas baseadas em protocolos internacionais de pesquisa. E já dando spoiler dos resultados obtidos, a face da ciência na televisão brasileira tem sexo, cor e idade: homens brancos e “maduros”, como definem os autores.

Cientistas: “o” ou “a”?

Se eu pedir para você descrever uma pessoa que trabalha construindo conhecimento científico, como essa pessoa seria? Você pensou em “Um” cientista ou em “umA” cientista? Qual a cor da pele dessa pessoa? Ela usa óculos? E o cabelo, é liso, cacheado, todo arrepiado pra cima ou simplesmente todo engrenhado? E a idade dessa pessoa, jovem, adulta ou idosa? 

E nos programas televisivos brasileiros, como profissionais que trabalham com a ciência são exibidos? Achou parecido com a pessoa que você imaginou ou não? 

Vamos apresentar uma pesquisa muito interessante que mostra qual a “cara” do profissional da ciência na TV brasileira. Veja como esses profissionais são retratados e compare com seu estereótipo de cientista.

Profissionais da ciência na televisão brasileira

Os pesquisadores Luisa, Yurij e Anna Elisa ilustram a importância das mulheres na construção do conhecimento científico e sua representatividade nas diferentes mídias. Mulheres somam 44% da força de trabalho acadêmica nacional, são 55% dos estudantes dos cursos universitários brasileiros, 60% do total dos que obtêm o certificado de conclusão de curso. Além de coordenarem quase metade dos grupos de pesquisa inscritos no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

No cenário das mídias internacionais, os autores citam estudos que vão de textos jornalísticos a “Hollywood”. Um estudo realizado na Inglaterra que analisou 1.503 artigos publicados na imprensa, por seis meses, elucida que os jornalistas britânicos citam mais cientistas do sexo masculino em relação a mulheres, numa proporção de cinco para um. Outro estudo apresentado pelas autoras analisa 60 filmes em que aparecem mulheres cientistas. Em todos há estereotipação das cientistas! Elas sempre são jovens, bonitas, magras, sensuais/atraentes, emotivas e por vezes usam óculos. 

Buscando compreender como é a representação das mulheres da ciência no Brasil, os pesquisadores responderam a uma pergunta muito interessante: como é a representação dos profissionais da ciência na televisão brasileira? Para responder a esta pergunta foram analisados dois programas de TV muito populares no Brasil, o Jornal Nacional e o Fantástico. Na visão dos pesquisadores, estes dois programas são representativos dos noticiários brasileiros, no que diz respeito à transmissão de informações e conteúdos.

O Jornal Nacional é um programa diário, que apresenta um resumo dos principais fatos que aconteceram em nosso país e no mundo. Já o Fantástico é um programa de entretenimento, transmitido aos domingos, que apresenta os principais  fatos nacionais e internacionais da semana. Estes dois programas possuem grande audiência e são importantes fontes de informação jornalística para boa parte da população brasileira.

Cientistas frequentemente são convidados para participar destes programas, para explicar fenômenos naturais, discutir questões ambientais polêmicas, apresentar descobertas científicas, falar sobre a saúde humana e ambiental, entre outros. Uma vez que o comentário de especialistas confere ao que está sendo noticiado maior credibilidade, estas pessoas possuem lugar de destaque em suas falas, pois representam “vozes de autoridade” sobre o assunto. 

É “O cientista” na telinha

     Ao investigar quem são e como são estes cientistas que aparecem nesses programas ao longo de 12 meses (abril de 2009 e março de 2010), utilizando rigorosos protocolos de análise, os pesquisadores concluem: apenas 25% dos cientistas entrevistados são mulheres. Ou seja, em 75% dos casos, a voz com autoridade científica é masculina! Na maioria das vezes, os cientistas convidados são homens brancos e “maduros” (expressão utilizada pelos autores para definir os cientistas com idade aparente superior a 40 anos). Frequentemente estão de óculos, em ambiente que afirma a intelectualidade (com muitos livros e aparelhos de laboratório), cenário que corrobora com a credibilidade dos especialistas. Quando aparecem mulheres, contrariamente ao estereótipo masculino, são jovens. Os pesquisadores discutem se há preferência por mulheres novas, por questões simplesmente estéticas, ou se porque o incentivo para as mulheres entrarem e permanecerem no universo científico brasileiro é muito recente. 

Outro ponto interessante que os pesquisadores chamam atenção é de que quando o assunto é polêmico, que envolve questões relacionadas a Ciência, a Tecnologia e a relação destas com nossa Sociedade, ou questões sobre ética na ciência, por exemplo, são entrevistados somente homens. Por que será que em assuntos polêmicos, convidam apenas cientistas do sexo masculino? O que você pensa sobre? De acordo com os pesquisadores, usar a imagem de homens passaria “mais segurança” aos telespectadores sobre o que está sendo noticiado.

Puxe aí na sua memória, quando você viu entrevista de cientista na TV, era Um cientista ou umA cientista? E qual era a cor dessa pessoa? E a idade dela? Lembre-se do início da nossa conversa, como era o profissional da ciência que você imaginou? Qual a imagem de cientista que lhe passa confiabilidade e credibilidade? E aí, o que vê na TV influencia seu modo de pensar? Ou nosso modo de pensar influencia o que passa na TV?

Luz no fim do túnel?

O trabalho de Luisa, Yurij e Anna Elisa que apresentamos, contribui com as discussões sobre gênero e ciência ao estudar sobre a representatividade da mulher cientista na TV brasileira. As vozes e a presença das mulheres costumam ser minorias e pouco visíveis, além de aparecerem com significados de representações diferentes da dos homens. Desta maneira, reproduz padrões hierárquicos e contribui para a manutenção de estereótipos. O estudo em questão foi conduzido por duas pesquisadoras e um pesquisador, mas para atender à gramática portuguesa, nos referimos a estes três profissionais como “os pesquisadores” ou “os autores”. Gênero na ciência é eco de gênero na sociedade. A ciência simplesmente reproduz os padrões: a predominância da voz masculina como lugar de autoridade. 

Mas as coisas não estão fadadas a serem como estão! Existem diversas iniciativas que buscam mudar a “cara da ciência brasileira”, por meio do incentivo ao protagonismo e a permanência da mulher no mundo acadêmico e científico. Dentre elas, destacamos o projeto de extensão Meninas nas Ciências, patrocinado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e CNPq, disseminado em mais de 40 instituições de ensino superior brasileiras. Estes projetos buscam atrair meninas da educação básica para as carreiras de ciência e tecnologia. Por meio de diversas atividades que abrem as portas das universidades para estas estudantes e/ou que levam a academia para dentro das escolas, estes projetos fomentam a cultura científica para o gênero feminino. Neles também existe a vertente que estimula as cientistas a persistirem na carreira acadêmica e científica. Outro projeto que merece destaque é o Parent in Science, que na definição da própria fundadora “busca apoiar mães na ciência, propondo políticas de apoio, ações e programas em todo Brasil”.

Portanto falar de gênero e ciência, é tocar em questões profundas sobre nossa sociedade: a ciência precisa se tornar atrativa e possível para meninas e mulheres. Estereótipos e preconceitos precisam ser superados para que exista uma nova realidade, onde haja equidade entre os agentes que constroem o conhecimento científico. Precisamos de uma Ciência inclusiva, que não se ocupe simplesmente do “preto no branco”. Mas uma Ciência colorida, formada de várias caras, com múltiplas vozes, formas e possibilidades. 

Ficou interessado neste tema? Então leia o artigo na íntegra em:

MASSARANI, Luisa; CASTELFRANCHI, Yurij; PEDREIRA, Anna Elisa. “Cientistas na TV: como homens e mulheres da ciência são representados no Jornal Nacional e no Fantástico”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 56, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/xttZBSMW3vhr4M3cYjtYXcJ/?lang=pt