“Somos uma espécie em viagem”: relatos de educadoras(es) sobre curso em educação das relações étnico-raciais para acolher estudantes migrantes na rede pública

Legenda: Na imagem superior, comidas de origem africana e latino-americana servidas pelas famílias migrantes numa feira nas escolas públicas municipais para a valorização da diversidade cultural. Na imagem inferior, à esquerda: tradução de uma professora de Centro de Educação Infantil - CEI de bilhetes para criolo (língua do Haiti) para atender uma família de um aluno haitiano. Na imagem inferior à direita, projeto do CEI com bilhetes traduzidos em espanhol (para pessoas de origem boliviana e venezuelana) e criolo (para haitiana). Ao centro, formadoras(es) do Núcleo de Educação para as Relações Étnico-raciais (NEER). Fonte: arquivo pessoal do formador Anderson Ricardo Carlos disponibilizado diretamente pelos(as) professoras(es) da rede municipal de São Paulo.

Anderson Ricardo Carlos

Sou biólogo e professor de Biologia pela Unesp Botucatu, com período sanduíche na Radboud University (Holanda), mestre em Ensino e História das Ciências (UFABC) e doutorando pelo PIEC-USP, com bolsa FAPESP (Processo no. 2020/10406-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Pesquiso sobre a história do racismo científico e da eugenia (inclusive estudando propostas de seleção imigratória no século XIX) e como problematizar o tema para a formação de professores de Ciências. Trabalhei como formador de professores no NEER na frente de povos migrantes em 2022. Amante de cinema, política, história, cultura drag e passeios ao ar livre em meio à natureza. Também faço parte da equipe editorial da BALBÚRDIA. Nas redes sociais: @andersonr.carlos

Carolinne Mendes Silva

Sou professora de história, mestra e doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Pesquisei as relações entre cinema e história e as relações raciais e de gênero no cinema e na sociedade brasileiras e sou autora do livro O negro no cinema brasileiro, publicado pela Editora LiberArs em 2017. Atuo na educação básica desde 2013, sou professora da Educação de Jovens e Adultos no projeto social do Colégio Santa Cruz e já passei pela Rede Estadual. No município de São Paulo, estou no Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NEER) localizado na Divisão de Currículo da Secretaria Municipal de Educação. Toco djembê no bloco afro Ilú Obá De Min.

Nas redes sociais: @carolinndamendes

Tatiana Chang Waldman

Sou doutora e mestra em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP). Filha e neta de migrantes e nascida em São Paulo, com atuação voltada aos temas de migrações internacionais, educação e direitos humanos e experiência em diferentes instituições, como o Museu da Imigração, o Centro de Apoio ao Migrante e a ONU Migrações (OIM). Integrei a equipe responsável pela elaboração do documento Orientações Pedagógicas - Povos Migrantes da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e atuei como assessora do Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (NEER/SME). Atualmente, trabalho no Programa Escravo, nem Pensar! da organização Repórter Brasil. Sou, também, integrante do grupo de música andina Lakitas Sinchi Warmis formado por mulheres migrantes e filhas de migrantes internacionais.

Nas redes sociais: @tatianawaldman

20 de maio de 2024 | 10:00

Como diz uma música de Caetano Veloso: “São Paulo é como o mundo todo”. Na Região Metropolitana de São Paulo, a porcentagem de população originária de outros países representava, em 2019, aproximadamente 3% da população local, com cerca de 361 mil migrantes internacionais. Desse montante, há por volta de 11.213 estudantes migrantes matriculados na Rede Municipal de São Paulo em 2023, cujas origens somam mais de 100 nacionalidades, sobretudo de proveniência boliviana, venezuelana, haitiana e angolana. Dado esse panorama, políticas municipais para a população migrante, como um decreto de 2016 do Município de São Paulo, lidam com medidas para atendê-la no ensino público, ao introduzir conteúdos que promovam a interculturalidade e a valorização das culturas de origem de estudantes migrantes nas etapas educativas. As experiências de violências e a construção de estereótipos sobre determinados grupos étnicos podem marcar a trajetória de estudantes migrantes, repercutindo em traumas e, em muitas situações, evasão escolar. Em um país marcadamente desigual e permeado pelo racismo estrutural, a escola deve estar comprometida com uma educação antirracista e inclusiva (SÃO PAULO, 2021).     

Viabilizando a temática dos migrantes dentro das relações étnico-raciais para a formação de professores

Para viabilizar esta e outras reivindicações da educação básica, a Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de São Paulo instituiu o Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NEER). O Núcleo objetiva centralmente fomentar e viabilizar práticas antirracistas, inclusivas e acolhedoras, formando profissionais conscientes das desigualdades e engajados na sua superação, baseando-se em leis federais, como a 10.639/2003, que estabeleceu a obrigatoriedade da inclusão da história e cultura afro-brasileira no currículo das escolas brasileiras. Nessa perspectiva, se realizaram ações formativas que contribuem para práticas que tenham a equidade como premissa básica para o trabalho dos profissionais da Rede Municipal de Ensino. A promoção de seminários, cursos, palestras, encontros, grupos de trabalho, voltados à promoção de Igualdade Racial, são ações desse Núcleo.

O NEER também produz materiais curriculares a fim de potencializar e subsidiar práticas equânimes que valorizem a diversidade e rompam com o perigo de uma história única e eurocentrada. Seu trabalho busca dar visibilidade e protagonismo a três principais grupos, que representam as frentes do Núcleo: povos afro-brasileiros, povos indígenas e povos migrantes.     

 

Os cursos em relações étnico-raciais aplicados pelo NEER da SME-SP

Em especial, abordaremos aqui sobre dois dos cursos de formação continuada para educadoras(es) da Rede Municipal pública de São Paulo, propostos pelo NEER na frente de Povos Migrantes em 2022, tema da Educação para as Relações Étnico-raciais abordada na Revista BALBÚRDIA. De maneira geral, no módulo I do curso, foi proposto o estudo do material curricular “Orientações Pedagógicas: Povos Migrantes”. Nele, eram apresentados conceitos sobre a migração, sobre direitos da população migrante no Brasil, buscando o acolhimento de famílias e estudantes migrantes nas unidades educacionais. Em seguida, foram apresentadas propostas de práticas pedagógicas para a promoção da diversidade linguística e cultural no espaço escolar, compromissadas com uma educação antirracista e antixenofóbica, como feira de nacionalidades, rodas de conversas, oficinas para bonecas étnicas, rodas de músicas típicas, disponibilização de livros de histórias migrantes e traduções de bilhetes e letreiros da escola. As orientações também forneceram sugestões de redes de apoio e parcerias que a escola poderia estabelecer para promover essas práticas, como movimentos sociais e coletivos feitos para e com a população migrante. Todo o material foi permeado por ricos relatos de estudantes, familiares migrantes e educadoras(es) da Rede. Ao fim do curso, a proposta era que os(as) educadoras(es) propusessem um plano de ação para ser aplicado na escola, o qual seria acompanhado durante o Módulo II do curso.

Ao fim dos dois cursos, foi enviado um questionário, a ser respondido de forma anônima, para um feedback de educadoras(es) (professoras(es) - inclusive as(os) de Ciências da Natureza - além de diretoras(es), coordenadoras(es) pedagógicas(os) e auxiliares de educação) sobre os impactos da educação para as relações étnico-raciais vistos no curso sobre povos migrantes. Aqui você pode conferir relatos feitos pelas(os) próprias(os) educadores da rede pública municipal.

Acredito que sim [há uma lógica eurocêntrica na escola], pois, diante das reflexões do curso, pudemos analisar e discutir a maneira enaltecedora em que recebemos um migrante europeu ou dos EUA, por exemplo, e o distanciamento que se faz quando esse migrante é de países subdesenvolvidos ou que passam por situações de guerra. De fato, há distinção e preconceitos no grupo menos favorecido e uma valorização do outro grupo. (Educador A)    

Acredito que este curso foi fundamental para que pudéssemos ter uma base de conhecimento necessário para aplicar esta temática em sala de aula [...]. Minha sugestão é que sejam ofertados mais cursos com estas temáticas (migração, educação antirracista) e que possam ser ainda mais aprofundados [...]. (Educador B)

Acredito que um dos maiores desafios foi a questão da desmistificação da imagem estereotipada que os estudantes em geral tinham em relação aos migrantes. Desde a elaboração até a implementação do plano, foi necessário pensar em atividades que pudessem envolver a turma como um todo e ao mesmo tempo sensibilizá-los para esta questão tão importante que é a migração. Ao longo deste percurso, percebemos que à medida em que íamos explorando o tema e detalhando questões importantes como a história/cultura destes povos, era possível notar que alguns estudantes demonstravam um certo pensamento preconceituoso. Diante disso, fomos trabalhando mais a fundo estes questionamentos para fazer com que eles refletissem sobre determinadas falas e percebessem a importância do respeito ao próximo, seja ele o colega que mora no mesmo bairro ou um aluno migrante que possui outras vivências e outra cultura. Portanto, priorizamos a questão do acolhimento ao migrante e da conscientização dos demais estudantes através de atividades e materiais que mostravam a história por trás destes povos, que os levaram a buscar outro país para viver. (Educador C)

Os depoimentos [de estudantes e famílias migrantes, presentes nas Orientações Pedagógicas: Povos Migrantes] foram extremamente necessários para compreensão e para repensarmos que eles [estudantes migrantes] têm o direito de voz. (Educador D)

Por uma educação multicultural e antirracista

Percebemos pelos relatos que os(as) educadores, no geral, reconhecem que a perspectiva eurocêntrica é predominante em sua formação inicial e esperam que na formação continuada possam se apropriar de discussões teóricas e práticas que agreguem outras perspectivas e que subsidiem o trabalho de acolhimento a bebês, crianças, jovens e pessoas adultas que chegam nas escolas de regiões distantes de São Paulo. A formação é importante inclusive para provocar o estudo do documento (Orientações Pedagógicas) já existente nas unidades e promover mudanças de atitudes.

Para conhecer mais o trabalho do NEER, é possível acessar o site do núcleo: https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/nucleo-de-educacao-etnico-racial/

 

Referências

SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME-SP). Currículo da Cidade Povos Migrantes: Orientações Pedagógicas. São Paulo, 2021.