NICÉA QUINTINO AMAURO: Modupé por suas inspirações, muito além da sala de aula

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A professora Nicéa Quintino Amauro recebe uma homenagem póstuma de Paulo Vitor Teodoro no número 7 da Revista BALBÚRDIA.

Paulo Vitor Teodoro

É professor do Instituto de Ciências Exatas e Naturais do Pontal e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, da Universidade Federal de Uberlândia. A foto com a professora Nicéa é um registro do dia 02 de março de 2023, durante os trabalhos de organização do Encontro Nacional de Ensino de Química (Eneq), realizado em Uberlândia/MG.

Contato: paulovitorteodoro@ufu.br

 

 

 

29 de abril de 2024 | 10:00

Para iniciar, algumas breves considerações

Eis uma importante responsabilidade, incumbida a mim neste momento, com um honroso convite da Revista BALBÚRDIA: elaborar um texto sobre uma pessoa que contribuiu imensamente para minha formação e a de tantas outras, por meio de um processo de resistência contra qualquer mecanismo excludente, na democratização do processo educacional. É impossível, neste breve texto, abarcar todos os ensinamentos e legados deixados pela Professora Doutora Nicéa Quintino Amauro. Portanto, este não é o objetivo! No entanto, é reconfortante afirmar que, mesmo em uma tese a nível de doutoramento, não seria possível dimensionar a potência de Nicéa Amauro nos espaços acadêmicos formais, e também fora deles, assim como todas as batalhas que ela resistiu para se tornar essa grande mulher. Sim, Nicéa enfrentou o racismo, a misoginia, o sexismo e o machismo. Chegar ao patamar que ela alcançou, após tantas tentativas de ser forçadamente colocada às margens, a torna uma poderosa inspiração para todos nós!

Uma mulher negra, professora, cientista, ativista intelectual, mãe, filha, tia e amiga, que se engajava, em todas as suas importantes atribuições, em uma busca comum: a incansável luta por uma sociedade antirracista, anti-homofófica, anti-machista, em qualquer espaço, para além das salas de aula. É assim que me recordo desta potente Mulher. Primeiro, Nicéa foi minha professora durante a graduação. Com o tempo, nossa relação foi se fortalecendo e se transformando em uma sólida amizade fraternal. Essa amizade ultrapassou os limites da Universidade. Certamente, não posso esquecer das aprendizagens nos ambientes acadêmicos formais, como nas aulas, nas orientações, nas pesquisas, nas viagens para congressos pelo Brasil afora, nos projetos de extensão, na organização de eventos, dentre outros. Aliás, alguns desses momentos estão registrados, e faço questão de apresentá-los na Figura 1 deste escrito, como memórias em viagens, construídas ao lado dessa grande mulher.

Figura 1: registros de aprendizagens, em diferentes conferências Brasil afora.

Fonte: arquivos pessoais (2024).

Porém, seria injusto de minha parte não mencionar as aprendizagens que ocorreram para além dos espaços acadêmicos. Nossa convivência se deu em diversos momentos de lazer, como em cafés, parques, bares e restaurantes, assim como em passeios familiares, como em aniversários, cachoeiras, roças e rodas de samba. Na Figura 2, compartilho alguns desses momentos singulares. Nicéa foi uma grande amiga! 

Figura 2: registro de quando Nicéia ainda foi minha professora na graduação.

Fonte: arquivos pessoais.

Figura 3: registro de um momento ímpar: confraternização de aniversário.

Fonte: arquivos pessoais.

Tive a oportunidade, talvez por obra do destino, de conhecer a professora Nicéa em 2010, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Na ocasião, eu era estudante de graduação no curso de Licenciatura em Química. Já percebia que sua bandeira de luta era a Educação para as Relações Étnico-Raciais, com belíssimas contribuições no ensino, na pesquisa, na extensão e na gestão. É importante destacar algumas dessas contribuições: em relação à gestão, Nicéa foi Presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), editora-chefe da Revista ABPN, Coordenadora Executiva na área da Educação do Fórum Permanente pela Igualdade Racial (FOPIR) e Conselheira no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR). 

Na extensão, Nicéa coordenou importantes projetos, como ‘Crespura: beleza negra sem química’, ‘LINGUAFRO - formação de professores’ e ‘Lendo Mulheres Negras - encontros com a palavra’, entre outros. Na pesquisa, teve produções acadêmicas robustas são (e continuarão sendo) parte do arcabouço teórico para aqueles/as que investigam a Educação para as relações Étnico-Raciais, como: a obra ‘Trajetórias de descolonização da escola: o enfrentamento do racismo no ensino de Ciências e Tecnologias’ (Benite; Camargo; Amauro, 2019); e o artigo publicado na revista Debates em Educação (Amauro; Silva, 2021), intitulado ‘Química ancestral africana’, entre tantos outros. No ensino, Nicéa trabalhou com diferentes disciplinas na graduação e na Pós-Graduação que tratam desse assunto, como ‘Introdução à Ciência e Tecnologia de Matrizes Africanas’, ‘Tópicos Especiais em Educação em Química I: Educação para as Relações Étnico-Raciais’ e o Ensino de Química’; entre outras. Cabe destacar também suas importantes atuações nas orientações, desde o Ensino Médio, por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior (Pibic – Jr), até a graduação e pós-graduação. 

É indiscutível, portanto, a brilhante atuação da Profa. Nicéa nesse campo de atuação: a Educação para as Relações Étnico-Raciais. No entanto, Nicéa foi uma potente cientista também em outras áreas do Ensino de Química e Ciências. Podemos mencionar o campo da experimentação, das práticas pedagógicas (além dos experimentos) no contexto da educação básica, do currículo e avaliação, e da Educação de Jovens e Adultos, entre outros. Em todas essas áreas, Nicéa teve uma significativa contribuição: pensar e repensar a Educação em Ciências e Química. Tive a oportunidade de trabalhar com ela em alguns desses assuntos, como a experimentação e outras atividades de natureza prática para o Ensino de Química. É nessa direção que este texto caminhará: no objetivo de apresentar e refletir alguns dos importantes legados no campo da experimentação e de outras atividades de natureza prática deixados pela inspiradora Nicéa Quintino Amauro, uma potência representativa na Educação em Ciências.

Para além da Educação para as relações Étnico-Raciais: outras importantes contribuições de Nicéa Quintino Amauro.

Uma das principais áreas de atuação da professora Nicéa foi no campo da experimentação no Ensino de Química. Nicéa apresenta diversas produções nessa frente de pesquisa, como artigos (Souza; Silva; Amauro, 2013; Souza et al., 2015), trabalhos completos em conferências científicas (Souza; Oliveira; Amauro, 2012; Amauro; Souza; Mori, 2015), resumos simples (Segatto et al, 2013; Souza; Silva; Amauro, 2012), capítulos de livros (Paula et al., 2019), e outras atividades, que demostram seu envolvimento com essa área de investigação. De fato, ao consideramos o ensino de Química, é imprescindível refletir sobre a natureza experimental dessa ciência. A Química, por sua própria essência, é uma ciência experimental. Isso significa que a experimentação é intrínseca e condição sine qua non no ensino de Química. Não podemos conceber o ensino dessa Ciência sem a prática experimental. Nesse sentido, Nicéa dedicou-se a buscar, orientar e pesquisar ações que promovam a Educação em Química por meio da experimentação, mantendo o foco na busca por uma educação mais democrática em todas as suas dimensões: social, cultural, econômica, política, ambiental, religiosa, dentre outras. 

Um exemplo disso é um dos trabalhos publicados na Revista Química Nova na Escola (QNEsc), intitulado ‘Densidade: uma proposta de aula investigativa’ (Souza et al., 2015). Nesta aula, é apresentada uma abordagem em que estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) podem compreender o conceito de densidade, fundamentados na Pedagogia de Paulo Freire. Nesta atividade, desenvolvida a partir de uma pesquisa orientada por Nicéa, é apresentado um pequeno texto motivador que aborda uma problemática baseada na medicina legal e na sucessão de bens. O texto apresenta uma personagem fictícia e inicia da seguinte forma: “Ana é uma linda mulher, independente e empreendedora” (Souza et al., 2015, p. 121). 

Neste extrato, é possível perceber o reconhecimento da mulher em uma posição de destaque profissional, que transcende os espaços nos quais o machismo tenta confiná-la, como no papel de dona de casa, submissa às ordens do homem. Nessa proposta, os/as estudantes aprendem conceitos de ciências (densidade), articulados com outras áreas do conhecimento, como medicina legal, direito civil e bioética, além de discutirem e incorporarem valores. Afinal, qual seria o propósito da Educação senão torná-la uma prática de liberdade? Precisamos, dessa forma, criar mecanismos que reconheçam as mulheres em espaços diversos, para além da maternidade e do papel de dona de casa. Dessa forma, as produções de Nicéa buscavam ter dimensões mais amplas, para além do conteúdo científico, contribuindo para a formação de indivíduos/as em uma sociedade menos desigual e excludente. É nessa direção que suas produções se orientavam: rumo a uma educação mais democrática, justa e inclusiva.

Outra produção, inclusive de destaque no próprio currículo Lattes da profa. Nicéa, se refere ao texto ‘Modelizações Astronáuticas na Perspectiva da Educação CTS: Proposta de Atividade Integradora ao Ensino de Ciências’, também publicado na QNEsc (Souza; Amauro; Fernandes-Sobrinho, 2018). Neste trabalho, orientado por Nicéa, é demonstrado que a atividade prática de manipulação de artefatos, como a construção de modelos de foguetes, pode ser mobilizada por uma Educação que inter-relaciona Ciência, Tecnologia e Sociedade (Educação CTS), contribuindo para a formação de estudantes mais críticos em relação aos impactos sociais e econômicos que as tecnologia, sem criticidade, podem gerar na sociedade. 

Souza, Amauro e Fernandes-Sobrinho (2018) mostraram que os modelos de foguetes, em consonância com os pressupostos da Educação CTS, podem envolver os/as estudantes em momentos de reflexão de situações-problema, tomada de decisão crítica e responsável, além de fornecer elementos para superar a visão compartimentada dos conhecimentos científicos e tecnológicos. No trabalho, Nicéa e os autores exploram possibilidades de incorporar discussões em diversas áreas do conhecimento, como Química, Física, Matemática, Artes e Geografia, inclusive com reflexões dos lixos nucleares gerados, bem como seus impactos no ambiente. Com o objetivo de democratizar a proposta, Nicéa e os autores ainda disponibilizam um breve tutorial didático, explicando o passo a passo para a construção dos modelos de foguetes. De fato, a partir dessas produções, integradas à divulgação de abordagens específicas de conceitos científicos nas escolas de educação básica, Nicéa habitou e ampliou espaços que repensam as práticas no ensino de Ciências, mantendo também a preocupação com as dimensões sociais e ambientais.

Algumas considerações: Modupé por suas inspirações, profa. Nicéa!

Neste texto, foi apresentado um breve compilado de caríssimas contribuições da Prof. Nicéa Quintino Amauro ao longo de parte de sua trajetória no campo acadêmico. Nessas poucas páginas, é impossível abarcar tudo o que Nicéa representou para nós, tanto na Educação para as relações Étnico-Raciais quanto em outras áreas, como experimentação, interações discursivas para a produção de significados, Educação de Jovens e Adultos, currículo, avaliação, Educação Ambiental, entre outras.

O fato é que Nicéa dedicou-se à luta contra o racismo, o sexismo, o machismo, a homofobia e qualquer outra forma de preconceito. Adicionalmente, ela teve valiosas contribuições em outras áreas para a Educação em Ciências. Nicéa deixou importantes legados, que continuam a fornecer inspiração e orientação para as futuras gerações, tanto no campo da Educação para as Relações Étnico-Raciais quanto em outras áreas. Nicéa percorreu as cinco regiões do Brasil, deixando ensinamentos e legados para promover uma educação mais justa, igualitária, democrática e acolhedora. Obrigado pelos seus ensinamentos, profa. Nicéa. Gratidão por suas inspirações, para além da sala de aula. Sua falta é profundamente sentida entre nós. Modupé! 

REFERÊNCIAS

AMAURO, Nicéa Quintino; SILVA, Gustavo Henrique Costa da. Química ancestral africana. Debates em Educação, v. 13, p. 171–185, 30 nov. 2021. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/debateseducacao/article/download/13051/9227/51454 Acesso em: 24 fev. 24.

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BENITE; Anna Maria Canavarro; CAMARGO, Marysson Jonas Rodrigues; AMAURO, Nicéa Quintino (Org.). Trajetórias de descolonização da escola: o enfrentamento do racismo no ensino de Ciências e Tecnologias. 1. ed. Minas Gerais: Ed. Nandyala, 2020. v. 1. 386 p.

PAULA, Adriângela Guimarães de; AMAURO, Nicéa Quintino; RODRIGUES FILHO, Guimes; SOUZA, Paulo Vitor Teodoro de; MORI, SOUZA, Paulo Vitor Teodoro de. Gestão de resíduos químicos em aulas experimentais: proximidades e distanciamentos da Resolução 02/2012 - CNE/CP. O Ensino de Química 2. 1ed.: Atena Editora, 2019, p. 129-141.

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SOUZA, Paulo Vitor Teodoro de; AMAURO, Nicéa Quintino; FERNANDES SOBRINHO, Marcos. Modelizações Astronáuticas na Perspectiva da Educação CTS: Proposta de Atividade Integradora ao Ensino de Ciências. Química Nova na Escola, p. 10, 2018. Disponível em: http://qnesc.sbq.org.br/online/artigos/RSA-42-17.pdf Acesso: em 24 fev. 24.

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