Reconciliar é decolonizar

Legenda: As técnicas de escultura em cerâmica e entalhamento para representações do humano já eram conhecidas dos povos mesoamericanos desde o século XIV antes da era comum. Créditos: Colagem montado no Canva por Luciene Silva a partir de imagens do wikicommons e do autor.

O egresso Carlos Mometti, atualmente pesquisador visitante da Concordia University do Canadá e membro do EDILab (Equity, Diversity and Identity) - Concordia University, descreve formas de decolonizar visões pré-estabelecidas. 

Carlos Mometti

Educador, Professor, Pesquisador, Feminista, Não bolsonarista e, sobretudo, amante da escrita. Atuo nas seguintes linhas de pesquisa: Decolonização cultural, Currículo, Ensino de Física e Educação Matemática nos Anos Iniciais.

Contato: carlosmometti@usp.br 

22 de abril de 2024 | 10:00

Nos últimos vinte anos os debates e discussões acerca do processo de colonização ocorrido nos países do continente americano, especialmente nas Américas Central, Caribe e do Sul, têm sido cada vez mais intensos. Tal fato se deve às mudanças paradigmáticas que vimos sofrendo no campo epistemológico, bem como às necessidades de "reconciliação" com nossas próprias identidades culturais e, por que não dizer, sociológicas.

Nesse sentido, quando utilizamos o termo reconciliação queremos dizer não apenas um reencontro com nossas identidades originárias ligadas ao território em que nascemos, mas também a uma descoberta daquelas, uma vez que apesar de sermos um resultado do processo colonizador, carregamos conosco nossa ancestralidade cultural-sociológica. 

Assim, tomamos contato com quatro pontos essenciais e que merecem nossa atenção: i. O processo de colonização como uma invenção europeia do século XV; ii. A destruição de culturas em detrimento da ocupação de territórios outros; iii. A escrita da própria história assumindo como foco uma identidade específica; iv. A ideia de sujeito e de conhecimento válido. Desse modo, o primeiro ponto refere-se àquilo que Quijano (1992; 2019) traz como a necessidade da Europa central, especialmente os reinos da França, Castilla e Leão (atual Espanha), Portugal e Inglês, de expandir seus mercados para além do continente e buscar formas outras para produzir e acumular riquezas.

A expansão ultramarina iniciada no final do século XV pelo reino de Portugal teve consequências importantes no campo econômico, social e político. Nenhum reino europeu gastaria tanto para uma empreitada como aquela se não tivesse como agente propulsor a própria crise interna dos seus mercados. Pode-se dizer que no final do século XV a Europa central passava por um processo de desestabilização financeira, no qual os bancos italianos - destaque para o da família florentina Médici - assumiam controle daquilo que antes era próprio das tesourarias dos reinos ou do papado.

Diante do desenvolvimento do conhecimento científico e das possibilidades que a inclusão de um "método" trouxeram para o campo epistemológico, a apropriação de novos horizontes seria não apenas possível, como necessária e urgente. Assim, lançando-se aos mares "nunca de antes navegados" (Camões, 2014, p.5) puderam tomar contato com outro território, ainda natural e livre de qualquer forma de "civilização" - na perspectiva deles, claro!

Esse contato, muito relatado pelos livros de História do Brasil como amigável e baseado no escambo de mercadorias, possibilitou a tomada de um território imenso como o Brasil, dando status e poder no caso do reino português. Ao mesmo tempo, quase que na mesma região, o reino de Castilha e Leão ocupava de modo agressivo e aniquilador um território já dominado por civilizações milenares, "avançadas" em termos sociais, políticos e epistemológicos. 

Tal ocupação, seguida do estabelecimento político de subsedes e "abençoada" pelo papado de Alexandre VI (Rodrigo Borgia) via tratado de Tordesilhas, deu carta branca aos reinos português e da futura Espanha de "entrar" e chamar de seu mais de 70% do continente americano. 

Ademais, não bastava ter um território sem que dele se extraísse algo de "bom" e, principalmente, lucrativo. Desse modo, a partir do século XVI e impulsionado pelo lobby inglês, inicia-se a compra e venda de seres humanos que na visão europeia eram desprovidos de "humanidade", ou seja, dá-se início ao tráfico negreiro no Atlântico. De acordo com Quijano (1992;2019) o processo de colonização só foi possível graças a dois fatores fundamentais: 1. A ideia de existência de raças entre os humanos; 2. A falência econômica da Europa central. 

Desta maneira, não havia como subordinar indivíduos para um trabalho forçado, desonroso e, sobretudo, que anulava sua própria existência se não houvesse a "criação" e os "respaldos" tanto epistemológico quanto religioso de que aqueles indivíduos negros localizados num continente vizinho da Europa eram, na verdade, raças distintas e inferiores. Uma vez que a própria ciência do período estabelecia isso e a instituição epistolar, a força de lei se instaurava. De acordo com literatura específica, foram trazidos forçadamente ao Brasil do século XVI ao século XIX (proibição do tráfico negreiro) aproximadamente 4 milhões de pessoas para serem escravizados. 4 milhões!

Se analisarmos sob a perspectiva cultural, percebemos que a quantidade de culturas, línguas, religiões, modos de ser e estar no mundo que foi deslocada somente ao Brasil - não estamos considerando os demais países das Américas - é imensa. Todas estas foram anuladas mediante um etnocentrismo branco e europeu que foi capaz de construir por meio da colonização um império econômico e, sobretudo, epistemológico.

O segundo ponto decorre do primeiro, pois na medida em que uma nova ocupação se dava no território já ocupado por civilizações outras, o choque de culturas era inevitável. Uma das características que podemos observar ao longo da história antropológica europeia é exatamente isso: sua incapacidade de coexistir com outras culturas no mesmo território. Isso, infelizmente, o Brasil traz como herança cultural e explica, em partes, os motivos pelos quais diferentes grupos étnicos são marginalizados, refutados e até anulados por outros em pleno século XXI. 

Assim, de posse das "autoridades" epistemológica e religiosa, os europeus ao dominarem os territórios viram-se na obrigação - o que chamam nos livros de descoberta! (risos) - de destruírem toda e qualquer cultura que discernia daquela considerada como cristã e "civilizada". Aqui nasce uma ideia de cultura que carrega consigo um conjunto de valores e tradições específicos que define uma ética própria, ou como Ribeiro (1998) costuma chamar, estabelece uma etiqueta europeia.

No entanto, os povos aqui existentes e que atualmente chamamos na literatura de autóctones (originários do local em questão) foram submetidos a várias tentativas de extermínio cultural, social, religioso e epistêmico. Um exemplo canônico e que também é estudado pelos livros de História como um marco da literatura brasileira são os sermões do Padre Antônio Vieira. A cada dia, Padre Antonio subia ao parlatório de sua igreja - já construída com as riquezas locais, importante destacar! - para "dar humanidade" àqueles não humanos. Uma de suas missões era a de catequizar os indígenas para que assumissem a "civilização" europeia como a única verdadeira e existente. Este é um dos exemplos marcantes de anulamento epistêmico que encontramos em nossa história.

Além desse, podemos citar a destruição completa das cidades - sim, cidades, uma vez que já tínhamos urbanização nos povos autóctones! - incas nas regiões dos atuais Peru e Chile, como as da civilização Maia, no México. O campo da arqueologia tem nos mostrado a potência cultural, social e política que tais civilizações haviam construído nas Américas! A cidade de Potosí, localizada na atual Bolívia, por exemplo, foi saqueada por mais de um século pelos espanhóis em busca de prata. O reino espanhol teve seu auge no século XVII com a extração de toneladas de prata das regiões que hoje são Chile, Bolívia e Argentina.

Obviamente, quando em um livro didático se traz tais assuntos o destaque quase sempre vai para o aspecto econômico e da descoberta, como se 22 de Abril de 1500 um imenso território tivesse emergido no Atlântico Oeste com uma plaquinha escrito "terra brasilis". 

Na verdade, isso foi uma invenção da modernidade e só foi possível mediante as tecnologias desenvolvidas pela ciência europeia, tais como armamentos de alto potencial. Além desses, cabe destacar que muitas doenças também foram trazidas pelos europeus e os povos originários não as conheciam a ponto de tratá-las. 

Outrossim, de acordo com o crítico literário Gérard Genette, as narrativas possuem momentos diversos com sentidos diversos. Isso significa que quem descreve - ou nos conta algo - acompanha seu próprio momento histórico, bem como utiliza-se de partes que não são reais de modo a dar ênfase naquilo que se quer transmitir. Diante disso, pode-se dizer que as narrativas que utilizamos acerca do processo de colonização do continente americano segue a perspectiva daqueles que executam, isto é, os próprios europeus. Assim, segundo Giraldo e Fernandes (2020) há um outro lado dessa história, lado este que conta as Caravelas que foram avistadas, e não os povos que foram vistos por elas.

Desse modo, quando assumimos uma perspectiva em específico, definida na literatura decolonial por Mometti (2022) como lente, um modo também específico de narrativa passa a ser operado. O texto de Pero Vaz de Caminha datado de 22 de Abril do ano "da graça" de 1500 descreve o Novo Mundo como resultado de uma descoberta e não como um lugar que já poderia existir e conter seres humanos como uma sociedade própria. Aqui, percebemos uma escala verticalizada de comparabilidade, que na Sociologia chamamos de etnocentrismo. Se analisarmos, para fins de julgamento de valor, de uma cultura assumindo outra como ponto de referência, estamos a operar com o etnocentrismo.

Não só, o processo inicial que permitiu a colonização de civilizações e, principalmente, a invasão de seus territórios e apropriação de seus bens materiais e imateriais deu-se na psique (Abdi, 2011; Mometti, 2022). Com isso queremos dizer que na medida em que um sujeito é anulado no que diz respeito à sua identidade e ontologia, sua ideia de existir no mundo passa a ser vista a partir do outro. Se este outro se apresenta como "único, verdadeiro e forte", no sentido de dominação, com total certeza teremos o caminho livre para a colonização. Por tal razão Abdi (2011) e Mometti (2022) afirmam que antes da força a colonização se dá pelo psicológico aliado ao epistemológico.

Nesse sentido, relacionado à ideia anterior temos o último ponto essencial que nos cabe discutir: a ideia de sujeito e de conhecimento válido. Inicialmente, a definição do que é ou não um sujeito perpassa as relações sociais estabelecidas por um dado agrupamento social. Assim, os aspectos ontológicos são definidos mediante uma ética social. Citemos um exemplo: nos anos 1950' era inimaginável que uma mulher no Brasil pudesse votar, pois suas funções estavam totalmente restritas aos cuidados da família e do lar. Seu papel ontológico era o de ser "um auxiliar para o homem". Atualmente, essa concepção patriarcal foi desconstruída - embora ainda existam aqueles que a pregam! - redistribuindo os papéis de cuidado da família e do lar entre os indivíduos (independente de identificação com esse ou aquele gênero). Além disso, todos podem e são obrigados a votar a partir da idade de dezoito anos (no caso do Brasil). Nota-se que o estabelecimento de uma ética social constrói padrões que serão seguidos e remodelados conforme a história se constrói. A isso Giddens (2013) chamou de estrutura social e influencia sobremaneira o papel dos agentes sociais.

 Dessa forma, quando temos um grupo de maior poder sobre outro de menor poder dizemos que a ética do primeiro sobressairá sobre o segundo, desconstruindo a ontologia do grupo colonizado e impondo condições estruturais para que uma nova seja formada. Consequentemente, nessa nova ontologia, a ideia de "inferioridade", "fraqueza" e "inexistência" para a operar como um cadeado "epistemológico", impedindo que novas perspectivas sejam construídas. 

Quando alguém diz a uma menina preta que seu cabelo é ruim a sua ontologia está a se modificar, pois a palavra "ruim" na linguagem simbólica significa para a menina algo não bom, que não traz coisas boas, que não é o certo. Até meados de 2010, no Brasil, era preponderante nas campanhas publicitárias a presença de mulheres loiras, olhos azuis ou verdes e cabelo liso. O chamado "padrão" de beleza é, na verdade, um cadeado epistemológico que opera na desconstrução de uma ontologia própria.

Assim, o anulamento sociocultural estabelece, mediante as condições já citadas da colonização sobre povos de menor poder uma nova ontologia. A isso Mometti (2022) chama de reontologização e pode ser utilizada no sentido de inverter tal desconstrução. 

Aliado a isso, temos a ideia de "verdade" e "validade" para um dado conhecimento. Pois, acredita-se naquilo que é "verdadeiro", mesmo sem saber se é ou não válido. A epistemologia europeia só foi possível mediante o estabelecimento de um critério de validade baseado no método cartesiano do século XVII. Obviamente, não nos cabe invalidá-lo neste texto, uma vez que seus resultados foram satisfatórios e permitiram a criação de muitas tecnologias essenciais à nossa sobrevivência. No entanto, seu questionamento faz-se importante na medida em que a reconciliação com nossa identidade foi invocada.

Desta maneira, Descartes (1977) ao escrever as Regulae ad directionem ingenii (Regras para a direção do espírito, tradução nossa) publicado em 1701 em Latim na França, dá-nos um conjunto de doze regras (passos) através dos quais devemos seguir para chegarmos àquilo que chamou de "verdade absoluta". Aqui, cabe um ponto de atenção e que foi interpretado de várias maneiras ao longo dos séculos pela ciência: em nenhum momento Descartes diz que aquelas são as únicas regras possíveis para se construir um conhecimento, mas apenas estabelece um percurso metodológico para tal. 

Deste modo, ao relacionar a ideia de "verdade" com o "bom" e "único", Descartes aproxima-se da filosofia aristotélico-tomista, que era a base teológica da instituição católica. Portanto, sem sombra de dúvida que seu "método" seria incorporado por aqueles que buscavam compreender a natureza e deu origem àquilo que chamamos de Ciência Moderna. Claramente, não foi a única obra que transformou o pensamento científico europeu, pois anos antes, em 1661, o inglês Robert Boyle havia publicado The Sceptical Chymist (O Químico Cético), transformando as metodologias de classificação e estudo das substâncias químicas, que até então seguiam o método da ingestão

Isso tudo para dizer que a ideia de verdade que chegou ao continente americano é exatamente aquela definida ainda no século XVII e, ao tomar contato com formas outras de conhecer e explicar o mundo, desconsiderando-as. As técnicas de escultura em cerâmica e entalhamento para representações do humano já eram conhecidas dos povos mesoamericanos desde o século XIV antes da era comum, como pode ser visto na figura que ilustra esse texto. Isso significa que não foi uma novidade grega, nem muito menos romana!

Finalmente, retornando ao termo anunciado inicialmente neste texto, reconciliação, podemos entendê-lo agora como o processo de desconstrução dos aparatos epistemológicos, ontológicos, políticos e sociais que foram sobrepostos àqueles anteriormente existentes. Assim, desconstruímos o que nos foi imposto para não apenas valorizarmos o que é nosso por "natureza", como também para compreendermos nosso papel enquanto sociedade. 

Ademais, o termo reconciliação pode ser encontrado na literatura por decolonialidade (Mignolo, 2018; Quijano, 1992, 2019; Walsh, 2013), embebido de inúmeros outros aspectos que, por vezes, faz-nos perder de vista o que realmente importa: abrir os cadeados e liberarmos epistemologicamente dos colonizadores. 

Referências bibliográficas

Camões, L. (2014). Os Lusíadas. Coleção clássicos. São Paulo: Melhoramentos.

Abdi, A. A. (2011). Decolonizing philosophies of education. Rotterdam: Sense Publishers.

Descartes, R. (1977). Règles utiles et claires pour la direction de l’esprit en la recherche de la vérité, tr. Marion, J-L. Costabel, P. Paris: The Hague.

Giddens, A. (2013). A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.

Giraldo, V., & Fernandes, F. S. (2020). Caravelas à Vista: Giros Decoloniais e Caminhos de Resistência na Formação de Professoras e Professores que Ensinam Matemática. Perspectivas da Educação Matemática, 12(30), 467-501. https://doi.org/10.46312/pem.v12i30.9620.

Mignolo, W. D. & Walsh, C. E. (org). (2018). On decoloniality: concepts, analytics and praxis. Duke University Press.

Mometti, C. (2022). Epistemic colonization in the Brazilian scientific curriculum. International Journal of Studies in Education and Science (IJSES), 3(1), 32-53. https://www.ijses.net/index.php/ijses/article/view/26

Quijano, A. (1992). Colonialidad e Modernidad/Racionalidad. Revista Perú Indigena, 13(29), p.11-20.

Quijano, A. (2005). Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Dossiê América Latina, Revista do Instituto de Estudos Avançados da USP. Vol. 19 (55). p.9 – 31.

Quijano, A. (2019). Ensayos en torno a la colonialidad del poder. First ed. Buenos Aires: Ediciones del Signo.

Ribeiro, R. J. (1998). A etiqueta no antigo regime. 1 ed. São Paulo: Moderna.

Walsh, C. (Ed.). (2013). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala. 553 p.