Por um ensino de evolução humana antirracista

Exibição sobre evolução humana no Museu Chichiri, no Maláui, África Oriental. De acordo com estudos evolutivos, já apontados por Darwin em The Descent of Man, em 1871, a origem de toda a humanidade se deu na África. Fonte: Wikimedia Commons.

Através da abordagem da História das Ciências e permeando a Educação para as Relações Étnico-raciais, o artigo publicado na Revista Brasileira de História da Ciência (RBHC) traz uma abordagem teórica para subsidiar a construção de propostas didáticas no ensino de evolução humana.

Anderson Ricardo Carlos

Sou biólogo e professor de Biologia pela Unesp Botucatu, com período sanduíche na Radboud University (Holanda), mestre em Ensino e História das Ciências (UFABC) e doutorando pelo PIEC-USP, com bolsa FAPESP (Processo no. 2020/10406-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Pesquiso sobre as ideias evolutivas, imersas no racismo científico, do pesquisador brasileiro João Baptista de Lacerda (1846-1915) e estudo como problematizar o tema para a formação de professores de Ciências. Trabalhei como formador de professores no Núcleo de Educação para as Relações Étnico-raciais da Secretaria Municipal da cidade de São Paulo em 2022. Atualmente sou assessor curricular de Ciências na Escola Bilíngue Builders. Amante de cinema, política, história, cultura drag e passeios ao ar livre em meio à natureza. Também faço parte da equipe editorial da BALBÚRDIA.

Perfil do Instagram: @andersonr.carlos

25 de março de 2024  | 10:00

Promulgada em 2003, a lei 10.639 propõe a introdução da história e cultura africana na educação básica. Embora medidas importantes tenham sido desenvolvidas nesse sentido, ainda há uma carência de estudos da temática para abordar as Ciências da Natureza. No contexto da pandemia entre 2020 e 2022, discursos contra o racismo ganharam destaque. Imerso no movimento Black Lives Matter, que se tornou mundial, o racismo científico também foi alvo de intensa discussão no período. Isso porque notaram-se maiores taxas de mortalidade por COVID-19 em regiões periféricas das cidades, sobretudo em países desiguais e miscigenados como o Brasil. Nesse sentido, houve uma seleção racial e social, na qual pobres e negros seriam o alvo preponderante da doença. Somado a isso, no início da pandemia em 2020, alguns cientistas defenderam que o continente africano deveria servir como campo de testes contra o coronavírus, o que foi fortemente criticado pela OMS1. Questões sociocientíficas atuais justificam que a educação escolar possibilite a formação de cidadãos críticos para tratar temas atuais. Para isso, a História das Ciências (HC) pode ser utilizada como ferramenta crítica oportuna para a formação cidadã dos estudantes, resgatando estudos de caso históricos a partir de perspectivas teóricas bem direcionadas.

O encontro entre os aportes da História das Ciências e da Educação para as Relações Étnico-raciais para o ensino de evolução humana

Nesse contexto, o artigo, publicado em 2022 na Revista Brasileira de História da Ciência, intitulado História das ciências e relações étnico-raciais no ensino de evolução humana: aportes para uma educação antirracista contempla essas demandas ao articular diferentes aportes teóricos. Escrito por Juan Manuel Sánchez Arteaga e Thiago Leandro da Silva Dias, respectivamente, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), o trabalho pretende criar um alicerce para o diálogo entre a Educação para as Relações Étnico-raciais (ERER) e a HC na educação científica. Os autores delimitam que temáticas como o racismo científico, visto historicamente ao se tratar de teorias evolutivas no contexto humano, pode ser problematizado em sala de aula. Para isso, os autores constroem um quadro teórico para fundamentar a sistematização de princípios de planejamento (design) para a implementação de propostas didáticas no Ensino de Biologia, dentro da temática do ensino de evolução humana.

A pesquisa em design educacional para a temática

Buscando contemplar princípios da lei 10.639 no ensino de ciências, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e promover uma educação antirracista, o trabalho em questão apresenta a primeira fase da investigação do design educacional – a pesquisa preliminar. Para representar a proposta teórica, os autores apresentam no artigo uma representação gráfica com a integração de abordagens, associando ERER e HC para o ensino de evolução humana. Conceitos como a origem africana da humanidade e a compreensão da distribuição da melanina como produto da seleção natural, dentro do ensino de evolução humana, podem ser ensinadas ao abarcar controvérsias científicas, englobando dimensões procedimentais e atitudinais. 

Ancorado como base na perspectiva da HC, a ERER poderia ser tratada em seus três objetivos principais: a consciência política e história das relações étnico-raciais (CP), a construção e o fortalecimento das identidades positivas (CF) e o combate ao racismo (CR). A partir de recortes históricos, a associação do processo evolutivo como sinônimo de progresso, vistos sobretudo em trabalhos de naturalistas como Herbert Spencer (1820-1903), ou a hierarquização de raças, vista tanto em europeus como em brasileiros, conforme propunha Ernst Haeckel (1843-1919) ou Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), podem servir como estudos de caso. Neles, se estimularia a crítica às visões estereotipadas sobre as falsas ideias de superioridade ou inferioridade biológica de certos grupos étnico-raciais, como negros e indígenas, frente a brancos. 

Como outro objetivo da ERER, a História das Ciências poderia auxiliar em proporcionar condições para o questionamento e rompimento de ideias negativas contra os negros ou os indígenas, também se afastando de perspectivas eurocentradas e brancas. Uma das propostas dos autores é usar os princípios de evolução biológica para analisar a história humana sob o olhar africano fundamentado nas ideias do senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1983). O antropólogo reconfigurou o Egito Antigo, roubado historicamente, recontando-o na história da ciência, valorizando também o arcabouço científico produzido por povos africanos ou afrodiaspóricos. Ao aliar esses dois tipos de recortes históricos, condições são promovidas para o terceiro eixo da ERER ao combate ao racismo. Assim, busca-se superar a indiferença, a injustiça e desqualificação com que os negros e os povos indígenas foram tratados ao longo da história da humanidade.

Por um novo olhar para o ensino de evolução humana

Os autores alertam para que a proposta do artigo não se confunda com duas medidas comuns no ensino. Ao se tratar da HC ou da ERER, respectivamente, a proposição apresentada não é propor o acréscimo simplesmente de conteúdo de História nos currículos de Ciências nem a simples recordação da temática racial através de abordagens pontuais em datas comemorativas. Os temas devem ser articulados – e não somados – aos objetivos do ensino de evolução humana a partir da educação como prática de liberdade através do reconhecimento das opressões feitas pelo sistema. Vista a mais de metade de nossa população brasileira caracterizada como não-branca, o acréscimo dessas temáticas, ancoradas numa ciência antirracista, multicultural e coerente historicamente, é algo emergencial.

1Agência de notícias francesa. Carta Capital. OMS critica cientistas que defendem África como campo de testes contra coronavírus. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/saude/oms-critica-cientistas-que-defendem-africa-como-campo-de-testes-contra-coronavirus/.

 

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DIAS, Thiago Leandro da Silva; ARTEAGA, Juan Manuel Sánchez. História das ciências e relações étnico-raciais no ensino de evolução humana: aportes para uma educação antirracista. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 15, n. 2, p. 418-436, jul|dez 2022.