Por que o Brasil acerta ao rejeitar a ideia de desapropriação indireta nos tratados de investimento?

Treliça de Athos Bulcão - Sala de Tratados, Ministério das Relações Exteriores. Foto: Marcos Vinícius Bessa/AIG-MRE

A década de 90 vivenciou uma corrida brasileira aos tratados bilaterais de investimento. A ascensão de valores impulsionados pelo Consenso de Washington levou governos brasileiros a buscar a negociação de acordos que já haviam se proliferado em todo o mundo. Ao todo, 14 tratados bilaterais foram celebrados. O Congresso Nacional, contudo, rejeitou sua aprovação.[1]

Já na década passada, após sentir os efeitos da crise financeira de 2008, o governo brasileiro voltou a buscar a celebração desses tratados, agora guiados por um modelo inovador.

Analisando-se os 14 tratados bilaterais de investimento celebrados pelo Brasil nesta segunda fase, desde 2015, conclui-se que nenhum deles incorpora o controverso conceito de desapropriação indireta. A maioria deles, ao contrário, é explicita ao afirmar que a proteção contra desapropriação formal não abrange a modalidade chamada de indireta.[2]

Mas o que a trajetória de desenvolvimento do Direito Internacional dos Investimentos revela sobre o tema? Por que o Brasil acerta ao recusar a inserção desse conceito como proteção adicional a investidores estrangeiros?

Contexto geral

A proteção de investidores em face de desapropriações está presente desde as origens do Direito Internacional dos Investimentos. Já logo depois da II Guerra e no contexto da descolonização africana e da Guerra Fria, Alemanha, Reino Unido, Países Baixos, França e, posteriormente, EUA, lideraram o movimento de países desenvolvidos de impulsionar a celebração de tratados bilaterais de investimento (TBI’s) para proteger a propriedade de seus investidores em países em desenvolvimento, sobretudo nos países africanos e asiáticos recém-independentes.

Inicialmente, essa proteção se voltava contra a nacionalização da propriedade privada no exterior e depois alcançou situações em que governos não desapropriavam expressamente a propriedade estrangeira, mas adotavam medidas que causavam a deterioração de seu valor ou a impossibilidade de se beneficiar dos investimentos.

A maioria dos tratados contém uma cláusula de desapropriação como a, por exemplo, do TBI Japão-Uruguai (2015), art. 16.1: “Neither Contracting Party shall expropriate or nationalize investments in its Area of investors of the other contracting Party or take any measure equivalent to expropriation or nationalization …”.[3]

Enquanto a nacionalização alcança todos os investimentos de um determinado setor econômico, a desapropriação se refere a investimentos específicos. Para efeitos práticos, contudo, essa distinção tem pouca importância, já que ambas têm os mesmos requisitos de legalidade. Na prática, casos recentes julgam apenas episódios de desapropriação.

Desapropriação direta e indireta, por sua vez, distinguem-se porque, enquanto a primeira ocorre quando um órgão governamental adota uma medida formal de transferência ou de apreensão total de uma propriedade, na desapropriação indireta uma medida estatal produz efeitos equivalentes ao da desapropriação direta, mas sem a transferência ou apreensão total da propriedade.

De modo geral, os tratados aludem à desapropriação indireta quando se referem à adoção pelo Estado de “medidas equivalentes à desapropriação”, como na cláusula citada acima, ou simplesmente a “desapropriação indireta”. Não há muita diferença entre essas redações na prática.

Mais o que seriam “medidas equivalentes à desapropriação”?

Critérios de identificação da desapropriação indireta

Os tribunais esclarecem que há duas sub-categorias de desapropriação indireta:

  1. desapropriação por ato único com efeito equivalente a desapropriação, tida como desapropriação indireta não só no DI dos investimentos, mas no Direito Internacional Geral desde a jurisprudência da Corte Permanente de Justiça Internacional;[4]
  2. desapropriação progressiva (“creeping expropriation”): atos em série atribuíveis ao Estado que juntos tem efeito expropriatório.[5] Ou seja, cada medida isoladamente não tem efeito de desapropriação, mas ao se considerar todas juntas tem-se esse efeito, tornando-as, em conjunto, equivalente a uma desapropriação. Como destaca o tribunal de Siemens v. Argentina (2002), se a sequência de atos progressivos não culmina com a caracterização da perda de propriedade, ainda que tenham causado prejuízos ao investidor, não há desapropriação (Sentença, 2007).[6]

A maioria dos tratados prevê a desapropriação indireta. Há variações quanto à redação e isso gera insegurança jurídica, o que se constata a partir das visões conflitantes que os tribunais têm manifestado sobre o assunto. A redação genérica dessas cláusulas leva a dúvidas sobre que medidas estatais regulatórias são legítimas e que medidas, ao contrário, equivalem a uma desapropriação. Em razão disso, medidas que ensejam prejuízos ao investidor, diminuição de sua expectativa de lucros ou mesmo a deterioração do valor de mercado dos investimentos costumam ser questionadas em arbitragens.

O tema é muito polêmico porque a proteção de investidores contra atos tidos como equivalentes a desapropriação ameaça a legalidade de medidas regulatórias ou administrativas dos Estados, como a extinção unilateral de concessão pública por inadimplência contratual da parte privada, a denegação de licenças ambientais ou a mudança de regras que incidem sobre a atividade econômica.

Em razão dessas controvérsias e da redação superficial que se encontra na maioria dos tratados, os tribunais buscaram maior precisão do conceito a partir de dois fundamentos conflitantes entre si, a partir do que formulam várias posições:

  1. A doutrina do poder de polícia, considerada parte do DI costumeiro, analisa a medida no que diz respeito à finalidade da regulação governamental. Por ela, medidas i) não-discriminatórias, ii) voltadas ao interesse público e iii) tomadas mediante devido processo, ainda que afetem negativamente o investidor, não podem ser consideradas equivalentes a desapropriação. Essa foi, por exemplo, a posição do tribunal no caso Chemtura v. Canadá (2002), Sentença (2010);[7]
  2. A doutrina dos efeitos (sole effects), ao contrário, analisa o ato não quanto à finalidade da medida governamental, mas quanto à extensão dos efeitos causados ao investimento. Nesse sentido, a medida regulatória é considerada expropriatória se causa uma privação significativa do investimento. Tem-se exemplo dessa posição no julgamento do caso Metalclad v. México (1997), Sentença (2000).[8]
  3. O teste de proporcionalidade, por fim, pelo qual tribunais recentes combinam as duas posições anteriores. Essa posição reconhece o poder de polícia dos Estados para adotar medidas regulatórias, ainda que afetem negativamente investidores, mas entende que os efeitos negativos causados pela medida ao investidor devem ser proporcionais ao interesse público almejado, sob pena de ser ela tida como expropriatória. Foi inicialmente formulada no caso Tecmed v. México (2000), Sentença (2003),[9] e tem sido seguida por tribunais bem recentes, como em Phillip Morris v. Uruguai (2010), Sentença (2016).[10]

 

A desapropriação indireta em novos tratados

Considerando-se essa insegurança jurídica e os riscos de condenações por medidas regulatórias consideradas legítimas, alguns Estados tem adotado novas abordagens em tratados mais recentes.

Alguns decidiram positivar o teste de proporcionalidade adotado por alguns tribunais mais recentes, como visto acima, e com isso procuram esclarecer parâmetros pelos quais medidas regulatórias caracterizam desapropriação indireta.

Eles têm sido inspirados no TBI Modelo dos EUA, de 2012 (Anexo B.4).[11] De modo geral, tais tratados adotam soluções distintas a depender da finalidade da medida regulatória:

  1. medidas regulatórias não-discriminatórias que buscam a proteção legítima de objetivos de bem-estar público, como saúde, segurança e meio ambiente, não constituem desapropriação indireta, salvo circunstâncias excepcionais. Para essas medidas, portanto, eles adotam a doutrina do poder de polícia, já que não se considera os efeitos da medida para o investidor;
  2. demais medidas regulatórias poderão ser caraterizadas como desapropriação indireta a depender, em cada caso: i) do caráter discriminatório da medida; e ii) dos efeitos causados ao investidor, especificamente o impacto econômico da medida e a extensão da interferência da medida estatal nas expectativas razoáveis/legítimas do investimento. Para essas outras medidas, nota-se, eles adotam um teste de proporcionalidade que combina a doutrina do poder de polícia com o teste de benefícios econômicos da doutrina dos efeitos.

Já o CETA Canadá-UE (2016, Anexo 8.A), embora com uma redação confusa, parece adotar posição semelhante para as medidas regulatórias que visam a proteção legítima do bem-estar público, mas insere no mesmo dispositivo uma análise de proporcionalidade com os efeitos da medida sobre o investimento (art. 3). Para as demais medidas ele reflete em linhas gerais o teste de proporcionalidade do modelo americano.[12]

De qualquer modo, nota-se que a positivação do teste de proporcionalidade ainda deixa margens consideráveis para que julgadores privados condenem medidas de interesse público. A posição brasileira, para além de se alinhar com novos modelos que buscam proteger o espaço regulatório do Estado, evita sua condenação por árbitros não necessariamente comprometidos com mudanças na política econômica que orienta o Estado brasileiro.

 


 

[1] Para uma análise do processo que culminou com a rejeição desses instrumentos, cf: MOROSINI, Fabio; JÚNIOR, Ely Caetano Xavier. Regulação do investimento estrangeiro direto no Brasil: da resistência aos tratados bilaterais de investimento à emergência de um novo modelo regulatório. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 12, n. 2, 2015 p. 420-447

[2] Estes 14 tratados foram celebrados com Moçambique (2015), Angola (2015), México (2015), Maláui (2015), Colômbia (2015), Chile (2015), Países Membros do Mercosul (2018), Etiópia (2018), Suriname (2018), Chile (2018), Guiana (2018), Emirados Árabes Unidos (2019), Marrocos (2019), Equador (2019) e Índia (2020). Os textos estão disponíveis na Plataforma Concórdia do MRE. Disponível em: https://concordia.itamaraty.gov.br/. Acesso em: 30 out. 2021.

[3] https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-agreements/treaty-files/3284/download

[4] Como, por exemplo, no caso “Certos interesses alemães na Alta Silésia Polonesa” (1926). Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/pcij-series-a. Acesso em: 30 out. 2021.

[5] Caso Generation Ukraine v. Ucrânia (2000), Sentença, 2003. Disponível em: https://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0358.pdf. Acesso em: 30 out. 2021.

[6] Disponível em: https://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0790.pdf. Acesso em: 30 out. 2021.

[7] Disponível em: https://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0149_0.pdf. Acesso em: 30 out. 2021.

[8] Neste caso, o Estado foi condenado porque não concedeu uma licença ambiental à empresa, ainda que a medida atendesse ao interesse público. Disponível em: https://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0510.pdf. Acesso em: 30 out. 2021.

[9] Disponível em: https://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0854.pdf. Acesso em: 30 out. 2021.

[10] Disponível em: https://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/italaw7417.pdf. Acesso em: 30 out. 2021.

[11] Disponível em: https://ustr.gov/sites/default/files/BIT%20text%20for%20ACIEP%20Meeting.pdf,. Acesso em: 30 out. 2021.

[12] Disponível em: https://www.international.gc.ca/trade-commerce/trade-agreements-accords-commerciaux/agr-acc/ceta-aecg/text-texte/08-A.aspx?lang=eng#a. Acesso em: 30 out. 2021.

Autor

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