O (não) olhar da educação

 

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Ilustração: Freepik

Pesquisadora analisa como as esferas que cuidam do desenvolvimento da criança lidam com o tabu diante de projetos de lei que impedem o ensino do gênero na escola

Desde o nascimento a criança é bombardeada com diversas demonstrações culturais de gênero: seja o quarto azul ou rosa ou os brinquedos “de menina” ou “de menino”, essas manifestações, que reforçam a dicotomia feminino/masculino, vêm para impor um gênero ao sujeito em formação. Anos depois, já na escola, outras imposições são feitas. É muito comum observar casos de preconceito e despreparo profissional em relação às questões de gênero. Nas práticas de sala de aula, nos livros didáticos, nos procedimentos de avaliação e em tantas outras situações é possível verificar uma clara demarcação de lugares sociais de “meninas” e/ou de “meninos”.

A questão do gênero, sua discussão e uma abordagem em defesa da diversidade encontra o preconceito sempre foi polêmica, tanto no Plano Nacional da Educação, o chamado PNE, como nos Planos Estaduais e Municipais. Mas, desde junho de 2014, o debate ganhou nova força, quando se estabeleceu um prazo de um ano para que estados e municípios aprovassem documentos de seu plano de educação para os próximos dez anos. Nesses documentos prevê-se a proibição de quaisquer assuntos relacionados a gênero e sexualidade nas salas de aula. Com o prazo de um ano esgotado, a polêmica retomou com força total.

O complexo de Édipo é o momento em que as crianças vão se deparar com a
masculinidade, com a feminilidade e com os papéis de família

Procurando entender esse ambiente de formação da criança como indivíduo e a importância do tratamento dos assuntos de gênero no plano educacional, a pesquisadora Danielly Passos de Oliveira está desenvolvendo um projeto de pós-doutorado trabalhando a questão do gênero no que concerne à educação, seja em casa ou na escola, procurando entender a percepção da criança sobre família e gênero. Ainda que a pesquisa esteja em desenvolvimento, já foi possível verificar importantes dados para ampliar e aprofundar a discussão.

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A pós-dutoranda Danielly Passos de Oliveira explica seu projeto “(Re)invenções do masculino e do feminino: percepções de crianças sobre famílias e gênero”

Édipo e as crianças

O projeto de Danielly prevê uma análise acerca das novas constituições familiares e o modo como as crianças percebem e aprendem as questões de gênero, como definem o que popularmente chamamos de papel de cada indivíduo. Saindo da família nuclear, tida como tradicional, a pesquisadora busca compreender como os indivíduos em formação enxergam os papéis de “masculino” e “feminino”, e como analisam a “família” sob novos contextos. Isso tudo por meio do método de intervenção, onde crianças de 7 a 8 anos, em uma criação conjunta, produzem arte e, consequentemente, uma história com suas ideias sobre os papéis – sem que pesquisadora, portanto, se colocasse na difícil posição de uma entrevista, por exemplo.

A escolha não foi aleatória. Segundo Oliveira, as crianças nessa faixa etária “ainda estão presas em um contexto familiar de formação, distantes da influência dos amigos e da internet. Porém, como já alfabetizadas, já têm capacidade de falar e simbolizar”. Ainda de acordo com a pesquisadora, a escolha também é importante psicanaliticamente, porque as crianças nessa idade já “atravessaram o Édipo”. “Se a gente pensar do ponto de vista psicanalítico, o complexo de Édipo é o momento em que as crianças vão se deparar com a masculinidade, com a feminilidade e com os
papéis de família”, completa.

A segunda casa

Depois do ambiente familiar, a escola se configura como o mais importante espaço de formação das crianças, uma vez que é o lugar em que elas passarão uma grande e fundamental parte da vida. Os pequenos veem na escola uma continuidade do lar, estabelecendo laços com os colegas e professores, e criando bases para sua constituição social. Por isso se faz necessário prestar atenção no discurso escolar, visto que lá se pode tanto reproduzir os muitos e distintos preconceitos da sociedade quanto tornar-se um espaço de conhecimento e reflexão sobre os assuntos.

Em se tratando do gênero, é comum observar profissionais da educação promovendo um ambiente que reforça essas desigualdades. Ligada à problemática do fracasso, a sala de aula costuma direcionar os meninos a uma postura mais agressiva. Eles estão ali para criar grupos de dominância, estabelecendo ligações de poder. Já às meninas fica reservado um segundo patamar, mais à parte, um mundo “de meninas”, mais frágil e delicado.

É muito importante ser verdadeiro, até porque as crianças são muito sensíveis à mentira

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Ju Bernardo

Esse tratamento díspar pode gerar uma série de estereótipos, como aquele que postula que meninos são mais capacitados que meninas nas ciências exatas, por exemplo. Procurando desmitificar o preconceito, pesquisadores de Tel Aviv, em Israel, acompanharam meninos e meninas da terceira série até o final da escolaridade. Cada aluno fazia duas avaliações idênticas sobre uma série de matérias: uma que seria corrigida com o nome exposto e outra seria uma prova anônima. As respostas eram iguais, mas as correções diferentes. O grupo de professores que recebeu as provas nomeadas e, portanto, sabia quem era menino ou menina, deu notas maiores para os meninos. O grupo que recebeu as provas anônimas, porém, deu notas maiores para as meninas, porque analisou simplesmente o desempenho. Essa divergência entre os gêneros se deu nas provas de matemática e ciências; em outras matérias as correções, felizmente, foram parecidas.

A pesquisa evidencia um problema grave de preconceito internalizado entre os professores. Ainda que tenha sido feito em outro país, no Brasil também se nota uma superestimação das capacidades dos garotos e subestimação das habilidades femininas. Não por acaso, é comum notar um maior desinteresse das meninas nas áreas de ciências e exatas no final da educação básica.

No vídeo de Neil deGrasse Tyson, “A mulher e o negro na Ciência”, o famoso astrofísico dá um depoimento acerca de uma pergunta feita numa coletiva de imprensa: será que há alguma característica genética que faz com que as mulheres sejam menos capacitadas em ciências, e é por isso que elas estão em menor quantidade nesse meio? O cientista, que é negro e encontrou muitos obstáculos no âmbito profissional, finaliza sua fala dizendo que “antes de começarmos a falar sobre diferenças genéticas, nós temos que chegar a um sistema onde existam oportunidades iguais, então poderemos ter essa conversa”.

Para assistira ao vídeo clique na imagem acima

A escola tem o papel essencial de proporcionar chances iguais para meninas e meninos, e muitas vezes não o faz. E não são só as garotas as vítimas de uma generalização simplista. É muito comum o fracasso escolar dos meninos ser ligado a certos referenciais de masculinidade, como agressividade e atitude física. Quando as individualidades são encobertas por estereótipos, a criança pode se sentir desamparada e sem vontade de frequentar aquele ambiente.

O professor, muitas vezes a maior referência escolar da criança, precisa estar muito bem preparado para conviver com as diferenças e trabalhá-las em sala de aula. Sendo formado em uma sociedade em constante mudança e adaptação de “papéis” cada vez menos fixos e determinados, talvez falte em sua formação profissional um estudo mais aprofundado dessa problemática. Porque, infelizmente, o que se vê com frequência são profissionais que não têm as questões de gênero trabalhadas sequer consigo mesmos, tendo muitas vezes, aliás, problemas pessoais mal resolvidos, que atrapalham o desenvolvimento do assunto com os alunos. Embora exista, no discurso, um aparente entendimento, o despreparo dos professores a respeito da problemática da sexualidade acarreta grandes dificuldades quando as questões ligadas à sexualidade dos alunos aparecem no cotidiano escolar.

E quando os pequenos questionam o gênero?

Lara Naloto tem cinco anos e perguntou para a mãe o que era “ser gay”. Depois da explicação, a mãe, Mayra Santos Naloto, percebeu que ela, brincando com suas bonecas, criou um casal gay. Essa postura não é corriqueira na sociedade, mas é possível perceber que hoje algumas crianças, vivenciando toda a polêmica do gênero e considerando que não são meros repositórios de informação, percebem e refletem o que acontece no mundo que as circunda. Antigamente, quando a dicotomia homem-mulher era inquestionável e a família se constituía essencialmente em pai, mãe e filhos, era simples passar para os pequenos esses conceitos conservadores, mas hoje muitos pais já conversam com os filhos sobre a diversidade e a relação homoafetiva.

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Brincadeira séria: enquanto brincam, Lara e a mãe conversam sobre gênero e diversidade

Atualmente o assunto se tornou mais complexo, as limitações do feminino/masculino são contestadas, o gênero já não corresponde essencialmente e apenas ao sexo biológico e a família tomou diversos novos contornos. Com isso, muitos pais ficam confusos e apreensivos na hora de tratar desses temas com seus filhos, e a falta de informação pode ser extremamente prejudicial. “Estamos numa época carente de conceitos estáveis, eles estão se desestabilizando”, explica Oliveira. E muitos desses conceitos, ainda em consolidação, são muito novos, portanto não existiam – ou pelo menos não eram tão disseminados – na época de juventude dos pais. “Diante de coisas que os próprios pais não simbolizaram, como eles vão passar para a criança?”, questiona a pesquisadora.

Para completar a bagunça, as crianças de hoje em dia são bombardeadas com informação dos mais diversos meios: televisão, sites, redes sociais, os próprios colegas de escola, professores e família. Por isso é possível pensar numa diversidade de discursos com os quais elas têm contato. Segundo hipótese da pesquisadora, “essas crianças vão espelhar essa contradição porque há um convívio entre o tradicional e o novo. Embora a gente fale numa época de grandes mudanças, ainda existem valores muito conservadores que permanecem”.

A mãe de Lara, que coordena projetos de medicina preventina, é adepta do amplo diálogo com a filha. “Eu tento mostrar para ela que não existe somente um padrão de ‘homem’ ou ‘mulher’, não existe apenas uma definição do que cada um pode ou deve fazer. Do mesmo modo, explico que não existe um modelo padrão de família, já que nem sempre ela é constituída como a nossa, com a ideia de ‘papai’ e ‘mamãe’. Explico que existem outras formas e modos de se relacionar e de se constituir como família, o que importa é o amor e o elo que existe entre os pares”. Para Mayra, a escola seria fundamental nesse processo; apesar disso, ela não percebe esse envolvimento na escola da filha, por isso faz sua parte na promoção do diálogo sobre a diversidade.

Essa atitude coincide com a opinião da Profa. Dra. Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP. Em entrevista à psico.usp, ela falou sobre a importância de se estar atento às necessidades de diálogo e compreensão das crianças, não necessariamente falando sobre tudo, mas, pelo menos, sobre aquilo que satisfizer a curiosidade e a necessidade de compreensão do outro. “Não existe ‘o jeito’ de falar, cada situação é uma situação, cada criança é uma criança. É muito importante estar atento e escutar o que a criança quer e precisa saber, e de alguma maneira poder conversar com ela levando em consideração essas demandas e curiosidades e sendo sensível àquilo que ela pode e tem elementos para entender. É muito importante ser verdadeiro, até porque as crianças são muito sensíveis à mentira”, defende Belinda.

A esfera pública

Recentemente, teve destaque outra polêmica envolvendo o assunto “gênero”, dessa vez no tocante ao poder público. Muitos planos estaduais e municipais da educação foram obrigados a eliminar o termo “gênero” e tudo o que se refere a ele. Além de São Paulo, cidades como Bauru, Uberlândia, Curitiba e Campinas também sofreram os custos dessa polêmica.

O receio de quem apoia a exclusão é que a “ideologia de gênero” eduque as crianças para serem assexuadas e escolherem sua identidade de gênero e orientação sexual apenas quando maiores. O que eles esqueceram é que esses dois aspectos não são escolhas, mas, sim, parte da essência do indivíduo, da formação de sua identidade pessoal. “O sexo de cada um tem muito a ver, dentre outras determinações próprias do desenvolvimento psíquico da criança, com as atribuições que a família dá àquela criança que nasce, desde o próprio nome, que já é um marcador de gênero. Além das roupas, do tipo de atividade que a família propõe quando é um menino ou quando é uma menina”, explica Mandelbaum. Ela ainda lembra que, em alguns países, famílias já utilizam pronomes neutros para coibir uma obrigação dos pais. “Muitas pessoas acreditam que os pais deveriam deixar isso (o direcionamento sexual) como uma opção da criança, então tem até essa questão que pode soar curiosa como não se optar por chamar crianças de ‘ele’ ou ‘ela’, inventar um pronome como o “it”, do inglês, que é um pronome neutro, porque essa predefinição promoveria a identificação da criança com uma certa identidade sexual e não outra”, complementa. Isso já acontece na Suécia. Na língua escandinava, além do pronome de gênero masculino han e do feminino hon, será adicionado o pronome hen, para pessoas que não revelaram ou não assumiram um gênero.

Dessa forma, esses recentes projetos de lei sobre gênero desconsideram a importância de se trabalhar um assunto que, mesmo não devendo ser, é tratado como tabu, excluindo a discussão da sala de aula de muitos estados e municípios. Além de já parecer absurdo à primeira vista, não discutir gênero vai contra diversos tratados internacionais assinados pelo Brasil, como a Carta das Nações Unidas, a Declaração dos Direitos Humanos, a Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis às Mulheres, entre outros. É uma contradição que atinge – um preocupante e alarmante – nível mundial.

Os planos municipais e estaduais foram aprovados em junho de 2015 e têm validade de 10 anos. Eles não têm força de lei e atuam apenas como uma orientação, uma vez que não há sanções ao administrador que deixar de cumpri-los. Mesmo assim, ele mostra a negligência e o atraso da esfera pública brasileira num assunto de extrema importância e que está em discussão no mundo todo. Enquanto não se fala disso nas escolas não só as crianças, mas a sociedade em geral sai perdendo, porque, segundo a Profa. Dra. Belinda, deixa-se de avançar em relação a discussões necessárias sobre a temática de gênero. “De fato é bastante positivo que a sociedade se abra para a diversidade, porque diversidade é a palavra do momento. É fundamental para diminuir o preconceito e a violência, já que é esse preconceito, que vem da falta de orientação, o grande causador da violência, seja ela física ou verbal”, finaliza.

Por Aryanna Oliveira e Sofia Mendes
Colaboração de Tatiana Iwata

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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