Ensina-me a odiar

Na terça-feira 11, um aluno de uma escola em Santa Tereza de Goiás, norte do estado, esfaqueou três colegas. Foi o terceiro ataque em duas semanas, incluído o cruel assassinato a machadadas de crianças de uma creche na catarinense Blumenau. O pânico toma conta de pais e alunos e as autoridades encontram dificuldades para lidar com um fenômeno que  começa a se tornar corriqueiro. O governo federal anunciou 150 milhões de reais em um plano de prevenção e o início da Operação Escola Segura, concentrada na investigação e repressão de possíveis atentados. Entre 27 e 31 de
março, a Polícia Civil de São Paulo registrou 279 ameaças. Não é preciso ir muito fundo na internet e nas redes sociais. Em pouco dias, a Escola Segura pediu a remoção de 430 contas no Twitter
suspeitas de estimular ataques a escolas. Por que o Brasil se tornou um polo desse tipo de crime, comum em outros países, especialmente nos Estados Unidos? Para Christian Dunker, professor do Institutode Psicologia da USP e pós doutor em Psicologia Clínica pela Manchester Metropolitan University, as causas de entrelaçam.

Na entrevista a seguir, Dunker alerta para o fato de os grupos neonazistas, mais ativos no País, promoverem uma “interseccionalidade dos ódios”, e para os efeitos da perseguição ideológica às escolas promovida durante o governo Bolsonaro.

CC: O que significam esses episódios de violência em escolas? Importamos uma forma de violência?

CD: São vários fatores que acabaram convergindo para isso. Existe um processo que eventualmente chega de fora, pela globalização da cultura, e agora se instala no Brasil. Devemos, no entanto, associar o fenômeno a um discurso que passa pelas armas, pelo tratamento da violência pela violência, e pela criação de inimigos. Acredito que o período bolsonarista conseguiu colocar a escola como um lugar socialmente problemático, um ambiente de convergência de conflitos. Houve perseguição contra professores, e essa figura do inimigo foi bastante concentrada na escola, ora era o professor de História, ora o que dá aula de Educação Sexual, ou o professor de Biologia. Se fosse uma espécie de ódio difuso indeterminado, há muitos outros lugares onde a concentração de indivíduos é maior. Mas há algo de simbólico em um ataque à escola no momento em que a gente tem esse refluxo do que eu chamaria de teoria social brasileira sobre a transformação. Nos anos bolsonaristas, os professores personificaram a ‘figura do inimigo’

CC: O que significa essa teoria?

CD: Durante anos, o principal argumento da ascensão social esteve ligado à educação. Eram momentos em que o Brasil tinha altos índices de analfabetismo e pouca distribuição de alunos nas universidades. O País atravessou um processo que começou a transformar isso. Hoje temos a maior parte das crianças na escola e muitas vezes não nos atentamos para o fato de isso ser muito recente, inclusive se compararmos com outros países da América Latina. Foi preciso melhorar muito para chegar nesse ponto. E chegamos a esse ponto juntamente com outro processo de que se fala pouco, que é a inclusão. A inclusão produziu o aumento da diversidade subjetiva e cognitiva na escola.

CC: E a sociedade não sabe, ou não consegue lidar com essa diversidade?

CD: A partir desse processo de inclusão, aumentou o nível de conflitos e, paralelamente, diminuiu o suporte para tratar os conflitos. Nesse caldo, podemos incluir ainda a linguagem digital, o aumento do consumo das redes sociais e a elevação do sofrimento dos professores. São alarmantes os dados sobre o nível de tensão e de conflitos que os professores precisam viver e administrar.
Essa teoria de que o que há para transformar no Brasil passa por gente engajada num incremento de educação refluiu. Hoje nós temos outra teoria dominante, ou várias teorias, que passam pela
eliminação dos improdutivos, dos corruptos, daqueles que são diferentes. É outra maneira de olhar para o conflito, e a escola ficou no meio desse tiroteio.

Discurso e prática. Ofensas e ameaças foram normalizadas sob Bolsonaro. E deram vazão à violência física que vitima estudantes e professores – Imagem: Carolina Antunes/PR

CC: É o colapso de uma sociedade frustrada?

CD: Sim, uma sociedade frustrada. Mas, se compararmos o momento atual com outros Brasis, ou seja, outros momentos do Brasil, já passamos por períodos de mais alta frustração, de empobrecimento mais dramático, de desarmonia social. Vivemos o período hiperinflacionário. Olhamos para trás e não sabemos dizer como sobrevivemos àquilo. Eu penso que temos agora um momento de profunda insatisfação, também derivado do incremento das nossas expectativas. A frustração não é só pelo que você não tem, mas é relativa ao que você apostou que teria. Existia um horizonte de expectativas de felicidade, podemos dizer, e isso foi seriamente abalado com esse período de convulsão social e política, o período do lulopetismo e o período Temer-Bolsonaro.

CC: Durante o período Bolsonaro, houve um discurso muito pautado na violência. Não que o Brasil não fosse um país violento antes, mas a violência escalou outro nível, não?

CD: Sim, porque, durante o governo do Bolsonaro, a sociedade se acostumou a conviver sobretudo com uma violência discursiva. Eram ameaçadas, brincadeiras jocosas, e claro sempre existiu uma violência endêmica no País, uma violência em comunidades mais empobrecidas. Mas o que aconteceu de diferente nessa situação toda? Passamos a ter mais um discurso propriamente fascista do que instituições que de fato perderam sua dimensão democrática. Isso tudo foi alterado com o 8 de janeiro. Esse episódio foi surpreendente. Foi uma ação violenta e generalizada. E isso fica nos indivíduos. Independentemente do tratamento que se dê agora, deixa marcas profundas. É realmente como se tivesse mudado o patamar da violência. O Brasil é um terreno fértil para o radicalismo

CC: E como o senhor analisa o surgimento de grupos neonazistas no Brasil? Parece que eles têm ganhado espaço.

CD: Eles estão mais organizados e têm tido mais visibilidade. Muitos autores desses ataques passam a ser idolatrados nos fóruns de internet, inclusive os que morrem, esses “santos”. Por isso é importante ter cuidado ao disseminar esse tipo de notícia. Estou participando do grupo de trabalho contra o discurso de ódio no Brasil, tentando avaliar por onde cresce, do que ele é composto, e de fato uma das surpresas é como há uma espécie de interseccionalidadedos ódios. O ódio religioso parece ter dado liga para o ódio de gênero, o ódio de raça, o ódio de classe, o ódio contra transexuais, e em comum há uma ideia de que ‘nós estamos numa situação de injustiça’. Veja que esse era um discurso mais à esquerda, lutar por igualdade, pelos direitos humanos, e agora tem essa deriva de que nos atentados à escola a gente tem o absoluto predomínio de homens brancos. Isso tem a ver, em certa medida, com o fato de que aquilo que só acontecia na deep web, agora acontece no Discord, nas redes sociais, nos chats de jogos de videogame. A violência verbal tornou-se um meio tolerado pela sociedade brasileira. O xingamento, a inconsequência com o que é dito no anonimato, acusações, cancelamentos, tudo ajuda, de uma mesma maneira, a entendermos o quanto podemos ser agressivos com o outro. Esse limiar em que você se autoriza à linguagem daagressividade compõe zonas de sobreposição. O caso dos nazistas é um bom exemplo da convergência desses ódios todos. O Brasil, não nos esqueçamos, teve o maior partido fascista do Hemisfério Sul. O integralismo tinha mais de 1 milhão de adeptos, isso nos anos 1950, 1960. Essa cultura se reproduz , ela pode não estar visível, mas fica nas entranhas, nas obras de arte,
nos nossos modos de tratamento, nos preconceitos arraigados. E quando a gente dá chance, quando alguém resolve se valer disso, vai aproveitar um fundo politicamente fácil de ser
explorado, porque o terreno é fértil. Não estamos acostumados a olhar o Brasil como um terreno fértil para radicalismos.

 

Insegurança. O ataque à escola em São Paulo espalhou o medo. As autoridades ainda aprendem a lidar com o problema – Imagem: Fernando Frazão/ABR

CC: De que forma o discurso de ódio de Bolsonaro afetou o imaginário das crianças e adolescentes?

CD: Penso que há um caldo que talvez tenha polarizado as coisas se aproveitando da ideia de segurança. Porque, para enfrentar a Covid-19, a gente precisou mobilizar um imenso discurso em torno de segurança sanitária: “use máscara, use álcool, não faça isso, não faça aquilo, mantenha distância”, ou seja, a gente concordou, e foi muito bom que fizéssemos, e foi parte da luta contra a pandemia, mas veio com um brinde, a partir disso, pois também começamos a olhar para o outro como um possível transmissor de doenças, começamos a olhar a rua como um lugar perigoso, a tratar aqueles com quem não concordamos como potenciais pessoas letais. Imagine isso na vida de crianças e adolescentes? Não ir para a escola não significa só deixar de aprender novos conteúdos, significa não aprender que, na hora que você é contrariado, não deve puxar o martelo e dar na cabeça do seu colega. O impacto foi imenso, principalmente para crianças pequenas. É difícil mensurar esse prejuízo, mas claramente está aí e faz parte da equação. Assim como o discurso da segurança sanitária, que vira o discurso do perigo, que desagua no discurso de que alguém está atrapalhando e que inspira a ideia de resolver a injustiça pelas próprias mãos.

CC: Será possível combater o discurso de ódio e reverter essa situação?

CD: Hoje, vemos um engajamento reativo contra esse discurso de ódio, há gente interessada em discutir e investigar os casos de violência. A questão é que aumentou o abismo entre aqueles que querem cuidar, enfrentar e transformar a situação e aqueles que estão interessados em aumentar o ódio e a violência. Encontrar um caminho para o diálogo será o grande desafio, mas a sociedade está tentando. Esta nossa conversa é um bom exemplo.

Por: Mariana Serafini, Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.

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