Em parceria com a Universidade do Texas, USP estuda violência contra a mulher negra

Por Iolanda Paz, Agência USP de Notícias: AUN, 17/5/2017

Charge: Latuff Cartoons

Da necessidade de abordar e pesquisar a violência contra a mulher negra, buscando entender melhor esse fenômeno e suas consequências, surgiu o projeto Mulheres negras e violência: a luta por justiça no Brasil e EUA em setembro de 2016. Desenvolvido pelo Instituto de Psicologia da USP, com colaboração do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), e em parceria com a Universidade do Texas em Austin (EUA), tem como objetivo investigar e comparar as experiências de mulheres negras com a violência nesses dois países. Com apoio da Fapesp e duração de dois anos, o projeto é coordenado pelo professor Alessandro de Oliveira dos Santos junto com a professora norte-americana Christen Smith. No Brasil, a equipe conta com três bolsistas da Fapesp e uma da Reitoria da USP.

A iniciativa da pesquisa está inserida no contexto mais amplo da Década Internacional de Afrodescendentes (de 2015 a 2024) declarada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em dezembro de 2013, com o propósito de promover e proteger os direitos humanos dos povos afrodescendentes. Para Christen Smith, entretanto, quando se fala da violência contra a comunidade negra, de maneira geral, o debate fica mais centrado nos homens. Ela ressalta a importância de se considerar especificamente a questão de gênero e as formas de violência que atingem as mulheres.

O projeto é pioneiro em diversos aspectos, a começar pela composição do grupo de pesquisa. A maior parte do corpo docente envolvido é composto por mulheres negras. Além disso, um recorte temático foi realizado e se definiram três divisões para o estudo: mulheres negras que frequentam a universidade, mulheres negras de comunidades de baixa renda e mulheres negras trans, ou seja, que se identificam com o gênero feminino. Para formar a equipe e preencher as bolsas disponíveis, foram selecionadas alunas negras que representassem cada um desses segmentos.

Compartilhando histórias e relatos, as mulheres negras que participam da pesquisa são entrevistadas pelas bolsistas. Alessandro diz que há uma “paridade” entre entrevistadora e entrevistada: é a aluna trans que conversa com as mulheres trans, e assim por diante. A importância disso está em conseguir um diálogo respeitoso e compreensivo, entre mulheres que passam por dificuldades similares. Segundo Christen, todas as mulheres do projeto têm uma experiência própria com o assunto e, quando vão a campo, levam-na para dividir com as entrevistadas, sem simplesmente “sugar” informações delas. “Essa pesquisa é, nesse sentido, tanto para elas quanto para nós, porque nossas vidas e sobrevivências também dependem dessa informação e desses dados”, afirma.

A metodologia utilizada também pode ser considerada pioneira, pois está voltada às análises de narrativas pessoais das mulheres negras que são entrevistadas, buscando fugir da tradicional abordagem do fenômeno da violência nessa população. Como explica Alessandro, em geral, são realizadas análises de dados demográficos e epidemiológicos coletados em bancos oficiais, como IBGE e Datasus. Diferentemente, o objetivo do projeto é descrever a exposição das mulheres negras à violência e como elas lidam com esse fenômeno, identificando estratégias pessoais e coletivas de luta por justiça.

Assim, a pesquisa está localizada no campo da psicologia social e na investigação dos efeitos psicossociais da violência na vida dessas mulheres. Uma outra decisão importante foi a adoção de um referencial teórico ancorado na teoria feminista negra, com autoras como Audre Lorde, Angela Davis e Lélia Gonzalez. “Na medida em que estamos estudando um grupo que é oprimido e que tem um recorte racial muito forte, não faz sentido usar um referencial teórico europeu”, explica Alessandro.

Além de se considerar gênero e raça, no projeto, os recortes sociais e de sexualidade também estão sendo realizados, por meio de uma abordagem que faz a intersecção entre diferentes opressões, na tentativa de compreender a complexidade da violência. A teoria da interseccionalidade – termo cunhado pela professora Kimberlé Crenshaw em 1989 – é baseada na visão de que as mulheres experimentam a opressão em configurações variadas e em diferentes graus de intensidade.

Nascida no movimento feminista negro norte-americano, a interseccionalidade veio para evidenciar que o feminismo não é apenas branco, classe média, cisgênero e heterossexual. Ilustração: Bobis

O projeto está dividido em quatro etapas: análise de documentos sobre a população em estudo; revisão sistemática de artigos sobre a violência em sua interface com as relações de gênero e raciais; entrevistas qualitativas e posterior análise; e criação de oportunidades para compartilhar os dados coletados junto à população em estudo. Para o último tópico, por exemplo, serão realizados três seminários sobre o tema na USP e mais três na Universidade do Texas. O primeiro deles já aconteceu no IPUSP, de 13 a 15 de março deste ano, e o próximo será em agosto, em Austin.

Fora os seminários, serão realizadas oficinas com as mulheres negras que concederem entrevistas para o projeto. Elas serão abertas para todas que quiserem participar e terão como objetivo discutir os principais resultados da pesquisa, assim como dar repertório a essas mulheres sobre como agir no futuro se passarem por situações semelhantes. “Então, é uma pesquisa social que tem um caráter de intervenção”, afirma Alessandro.

Neste momento, o projeto está na fase de entrevistas: a meta é realizar ao menos 80 – metade em cada lugar de pesquisa –, sendo que 20 já foram feitas em São Paulo. Por enquanto, o que Alessandro pôde adiantar foi quanto aos obstáculos para se conduzir uma pesquisa sobre um tema delicado e silenciado. Como dificuldade, por exemplo, ele cita localizar mulheres negras dispostas a falar sobre a violência.

Segundo Alessandro, essa tarefa requer uma postura solidária e ética por parte dos pesquisadores, além de estratégias discursivas para que as narrativas das mulheres não sejam tomadas como um reavivamento de memórias dolorosas, mas como uma interpretação da experiência de violência vivida. As bolsistas recebem treinamento para fazer as entrevistas e trabalham com uma lista de locais para onde é possível encaminhar as mulheres, caso precisem de atendimento psicológico, policial ou jurídico. Tanto no Brasil quanto nos EUA, a pesquisa foi aprovada pelos comitês de ética.

Mulheres negras e violência: a luta por justiça no Brasil e EUA faz parte de uma ação maior, como conta Alessandro, que inclui a realização de um convênio de pesquisadores entre a USP e a Universidade do Texas. Ele está em tramitação no momento e, caso seja aprovado, terá duração de 5 anos. A ideia é criar uma troca entre as universidades, com pesquisadores trabalhando sobre o tema das relações étnico-raciais.

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