Modos de ler livros no Brasil

Pesquisa do IPUSP analisa a maneira como os brasileiros leem livros.

Com o progressivo aumento nas vendas de leitores digitais, como e-readers, tablets, computadores e celulares, profissionais de diversas áreas têm questionado a qualidade da leitura realizada por meio destes aparelhos. Partindo desta reflexão, Luciana Dadico, doutora em Psicologia pelo IPUSP, procurou conhecer como os jovens e adultos leem livros no Brasil. O resultado de sua meticulosa pesquisa deu origem à sua tese de doutorado, orientada pela profa. Dra. Iray Carone.

Movida pela questão “como lemos livros hoje?”, Dadico desenvolveu um método fisiognômico (em analogia à fisiognomia, método de leitura facial) de pesquisa com objetivo de descrever as características do livro em papel que configuram modos próprios de leitura. Como parte essencial de seu projeto, ela entrevistou dez leitores, homens e mulheres entre 18 e 74 anos, em dois encontros individuais. Em uma conversa aberta, os entrevistados contavam sobre seus hábitos e histórias de leitura, e escolhiam um livro para ler e discutir em um segundo encontro com a pesquisadora.

Após a análise dos relatos gravados, a pesquisadora procurou caracterizar como cada leitor lia o livro que tinha escolhido. “Eu queria saber que tipo de imagem [os leitores] construíam a partir da leitura da obra, do livro-texto, porque entendo que é a partir daí que se revela como os leitores brasileiros leem, analisando as imagens que se cria a partir da própria experiência, simultaneamente coletiva e individual”, explica Dadico.

A fisignomia de Adorno

O método usado pela psicóloga foi inspirado nos estudos realizados por Theodor Adorno, Walter Benjamin e Roger Chartier. Em seus estudos de Fisiognomia, Adorno analisou o rádio como meio de comunicação, preocupado em descobrir como a mediação do aparelho afetava a escuta musical do ouvinte. Para isso, era necessário saber como o ouvinte percebia não apenas a música transmitida, mas, principalmente, o próprio rádio. Como na época o rádio parecia possuir um rosto, Adorno denominou seu método de descrição do rádio de “fisiognômico”. Dadico explica que “o ouvinte […] via os alto-falantes à semelhança de uma de boca em uma face humana. O que ele não sabe, e é forçado a pressentir com os instrumentos que têm à mão, é o que vai por detrás do rádio. Retira-se do ouvinte a imagem – viva – do intérprete e daquele que diz, e se lhe põe uma fantasmagoria no lugar, cuja face ‘real’ ele deve apenas supor, imaginar, na verdadeira acepção do termo.”

A ideia de fisiognomia é como eu vejo a face desse objeto
e como esse objeto aparece para mim como sujeito.
Então a minha pergunta com relação ao livro era como
esse objeto aparece para o leitor de livros

Mas qual seria a relação entre esses estudos sobre rádio e os modos de leitura do brasileiro? A pesquisadora explica em sua tese de doutorado que, embora pareça neutro, também o livro é um objeto mediador: “É o livro quem torna a leitura possível. Como objeto, ele também tem características próprias, que limitam ou favorecem certos modos de ler”. Segundo a pesquisadora, com base no método criado, foi possível descobrir como as características espaciais e temporais do livro – suas características imanentes – são percebidas pelos leitores de hoje. Também se percebeu como a experiência do leitor é afetada pelas características do objeto: “Como o livro é portátil, parece que ele pode ser levado e lido em qualquer lugar. Mas a pesquisa mostrou que isso não é totalmente verdadeiro. A ilusão de que qualquer livro pode ser lido facilmente, associada à escolha de um ambiente inadequado para ler, interfere na qualidade dessa leitura”. E completa: “A ideia de fisiognomia é como eu vejo a face desse objeto e como esse objeto aparece para mim como sujeito. Então a minha pergunta com relação ao livro era como esse objeto aparece para o leitor de livros”.

O livro promove o que Dadico chamou de “ilusão de proximidade”, pois o livro “leva o leitor a sentir-se próximo ao autor/narrador da obra, como se o texto tivesse sido escrito exclusivamente para ele”. E também está ligado a uma “conservação temporal”, que, segundo a pesquisadora, “diz respeito à duração do livro, à possibilidade que o livro oferece de chegar aos mais diversos e inusitados lugares, de ser lido por muitos leitores e repetidas vezes”. Ela acrescenta: “Esse atributo torna o livro muito potente, capaz de provocar experiências individualizadas, independentes das relações pessoais próximas ao leitor, e em épocas as mais variadas”.

A identificação do leitor

Analisando os dados levantados pela pesquisa, Dadico descreveu os modos como os leitores leem no Brasil. Ela explica, por exemplo, que há um jogo entre o que ela chama de “identificação subjetiva” e “ponto de fuga”. “A identificação subjetiva é o modo como os indivíduos se identificam com a obra, e elas usam esse termo ‘eu me identifico’, ‘eu me identifico com uma passagem, com um personagem, com o livro’. Essa identificação é aquilo que permite uma imersão na obra literária”, explica. Entretanto, essa identificação não é estanque, ou seja, o leitor normalmente não se fixa em um ponto de vista e o segue de um mesmo modo até o fim da leitura, “hoje em dia é mais comum que as pessoas saltem de uma perspectiva para outra, se identifiquem, se aproximem ou se afastem de um ou de outro personagem durante a leitura”, explica. A essas diferentes perspectivas ela chama “ponto de fuga”, que corresponde ao modo como o sujeito percebe os objetos e elementos da obra a partir de um ponto exterior. É um momento de distanciamento em relação a um personagem da obra ou um ponto de vista, por exemplo. Esta alternância entre identificação e ponto de fuga é o que proporciona ao leitor uma experiência ainda mais profunda, deslocando-se na obra, usufruindo a experiência literária de forma tão rica, diversa de outras formas de arte.

Esse dado é bastante positivo porque, segundo a pesquisadora, um dos grandes riscos do processo de identificação é que o leitor adapte a obra à sua realidade, tomando a ficção como um relato de sua vida. “Isso faz com que, na contramão daquilo que se espera por meio da experiência estética, o sujeito se mostre incapaz de abrir-se para o novo, de entrar no universo da obra e assumir um lugar diferente do seu”, afirma Dadico.

Leitura em tela

Um dos objetivos de Dadico em sua pesquisa de doutorado era levantar dados que permitissem uma comparação entre o modo como lemos livros no papel e o modo como lemos livros em dispositivos digitais. Deste modo, torna-se possível compreender melhor as mudanças em curso nesses modos como lemos livros: é este o principal objetivo do projeto de pós-doutorado da psicóloga. A pesquisa, ainda em curso, envolveu novas entrevistas, realizadas agora com usuários de dispositivos digitais. Segundo a pesquisadora, os computadores já estão presentes em 34,7% dos domicílios e são utilizados como meio para leitura por 9% dos leitores entrevistados por ela. Esses dados foram importantes para o desenvolvimento do novo projeto, em que ela analisará as leituras feitas em computador (diretamente em um site ou em arquivo pdf), pelo celular e por meio de e-readers com a leitura de ebooks.

O novo projeto analisa a questão das novas mídias, buscando identificar como as novas tecnologias digitais afetam a mediação do livro, promovendo modos próprios de leitura em tela. Conforme analisa Dadico, a forma de entender esses objetos mediadores é distinta do livro comum, já que o livro em papel aparece como um objeto concreto e unitário, que se conserva no tempo. Com os dispositivos digitais, por outro lado, é difícil até mesmo afirmar que se tratam de objetos, uma vez que “seus elementos não são diretamente manipuláveis”. Desse modo, Dadico relata que “é como se os objetos digitais realmente aparecessem, feito a aparição de uma entidade sobrenatural, que acontece apenas quando clicamos em um botão ou ligamos o computador”.

Embora a pesquisa em curso venha exigindo da pesquisadora a formulação de um novo método de pesquisa, do ponto de vista teórico, seus referenciais permanecem ligados àqueles da chamada Teoria Crítica da Sociedade, proposta por autores como Walter Benjamin e Theodor Adorno. Sob essa perspectiva, a psicóloga tem procurado compreender como a mediação digital afeta o livro, a leitura, as obras literárias e a própria experiência do leitor de forma dialética, tendo em vista as peculiaridades da cena histórica, cultural e tecnológica atual.

Há novas características a serem estudadas na leitura do livro em suporte digital. No seu doutorado, Dadico verificou que, em meio ao “circuito de distrações” gerado pelo livro, a leitura distraída pode ser apontada como um modo de ler característico, que dificulta ao leitor o controle de seu próprio ritmo e qualidade da leitura, mas que também se faz necessária para a compreensão e a experiência da obra. Este fenômeno assume aspectos diferentes na leitura em tela, pois a luminosidade do aparelho eletrônico funciona como um ininterrupto estímulo visual: “o leitor não consegue se distrair do meio como deveria para alcançar a imersão na obra que a experiência estético-literária requer. O dispositivo nos chama o tempo todo, exige que estejamos conectados, em rede. A distração do leitor é capturada por outros objetos dentro do próprio dispositivo, como o e-mail, o site de vídeos, a rede de relacionamentos”, elucida.

Dadico, que havia realizado anteriormente um estágio na Scuola Normale Superiore di Pisa, concluiu no início de 2015 um novo estágio de pós-doutoramento no Programa de Teoria Crítica da Universidade da Califórnia, em Berkeley, sob supervisão do prof. Martin Jay, um dos maiores especialistas mundiais em Teoria Crítica. Estes estudos proporcionaram, entre outros benefícios, acesso a uma vasta bibliografia ainda indisponível no Brasil, tanto sobre a história do livro e da leitura quanto sobre Teoria Crítica, além do contato com aquilo que de mais recente vem sendo desenvolvido no campo de estudos das Novas Mídias – material que tem contribuído proveitosamente para a análise dessas pesquisas, em especial para a análise da leitura digitalmente mediada.

Por Aryanna Oliveira
Edição e revisão por Islaine Maciel

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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