Os meus, os seus, os nossos

Com as novas estruturas familiares, torna-se cada vez mais evidente a necessidade de fornecer as mesmas garantias legais e visibilidade que as famílias tradicionais já têm como direito

Em 2011, era comum ver colado nos vidros ou nas traseiras de automóveis, por todo o país, os adesivos da “família feliz”. A “febre” durou um bom tempo, havendo quem adorasse a ideia e quem a achasse “brega” ou mesmo perigosa, porque os membros da família ficavam demarcados onde quer que se fosse. De qualquer modo, era muito simples montar sua família: bastava comprar os adesivos em papelarias, bancas de jornal ou ambulantes. E assim a “família feliz” podia rapidamente ser constituída por apenas alguns trocados.

Todavia, para além dos modismos nossos de cada dia, havia incutido no singelo adesivo o desejo de representatividade: “essa é a minha família”. Ela podia ser do jeito que fosse. Casais com filhos e animais de estimação; grandes famílias com tios e avós; casais sem filhos; mãe (ou pai) com filho(s); casais homossexuais; pessoas sozinhas com animais de estimação; muitas pessoas sem laço sanguíneo; entre outras tantas formações. Cada carro ilustrava uma, que podia ser parecida ou totalmente diferente da família representada no carro ao lado.

Os primeiros adesivos vendidos vinham com uma estrutura padrão: pai, mãe, alguns filhos e animais variados. Mas, algumas famílias “fugiam à regra” e, então, os “membros” puderam ser comprados individualmente, para que cada um montasse a sua família completa, sem padronizações, sem modelos, porque é assim que as coisas são. No adesivo destacado da tira, são infinitas as possibilidades de combinações e todas atendem pelo mesmo título: família.

Essas famílias não-tradicionais foram as que se sentiram especialmente desrespeitadas quando, em setembro do ano passado, a Comissão Especial do Estatuto da Família, da Câmara dos Deputados, divulgou o resultado – bastante polêmico – de uma votação acerca da definição conceitual de “família”. Segundo o parecer do projeto de lei que cria o Estatuto, do deputado Diego Garcia, a família brasileira é reconhecida como a “entidade familiar formada a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. O resultado foi visto como excludente, hipócrita e claramente preconceituoso, uma vez que suprimia da definição do que é família toda e qualquer formação que fuja ao tradicional modelo brasileiro (casal heterossexual com filhos).

Como resposta à decisão da Comissão surgiram manifestos e campanhas com o intuito de representar a multiplicidade que, hoje, está por trás da definição votada. O Grande Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, por exemplo, lançou neste ano a campanha #todasasfamilias, em que pessoas comuns podiam encaminhar suas próprias definições para o conceito, até então definido no dicionário como “grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (especialmente o pai, a mãe e os filhos), que têm ancestralidade comum ou provêm de um mesmo tronco, ou ligadas entre si pelo casamento e pela filiação, excepcionalmente pela adoção”.

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A campanha, elaborada pelo Houaiss e pela agência NBS, em parceria com a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio e a Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas, contou com a participação ativa dos internautas que puderam acessar um site especialmente criado para o projeto e responder à frase “para mim, família é.…”. Foi possível, também, assistir aos vídeos de outras pessoas que apresentavam suas concepções. E, com o somatório das sugestões o Houaiss decidiu então criar um significado diferenciado, mais democrático e abrangente, a ser colocado nas próximas edições do dicionário.

Do instituído ao construído

 

Ilustração: Freepik | Layout: Natalia Belizano e Fernanda Giacomassi

Ainda que campanhas como essa não tenham o poder de alterar as definições feitas pela Câmera dos Deputados, são valiosas porque procuram dar significância às transformações sofridas pela sociedade, não só atualizando um verbete, mas possibilitando o debate através do privilégio da mobilização popular. A redefinição do conceito abraça aos milhões de brasileiros excluídos, especialmente os casais homoafetivos, na votação de uma comissão que propõe a defesa da família, mas acaba apenas por supervalorizar uma imagem unilateralmente patriarcalista e retrógrada, ainda que cada vez menos majoritária.

Era uma vez a família tradicional brasileira… 

No chamado “modelo tradicional” ou “modelo nuclear” de estrutura familiar há, obrigatoriamente, a presença, como casal, de um genitor feminino e um masculino, que originariam filhos, estabelecendo-se assim, a família. Em tempos remotos esse padrão não se quebraria. Nem mesmo a morte ou a separação dos cônjuges – oriunda da infelicidade, do desgaste ou do fim do amor – poderia (ou deveria) interferir na estrutura.

Em psicanálise, essa visão tradicional encontra consonância em Freud, que permitiu a criação de um modelo de identificação sexual triangular. Na teoria do psicanalista desenvolveu-se o conceito de família à luz do Complexo de Édipo, pelo viés da realidade psíquica. Aqui destaca-se a figura do pai (do sexo masculino), como o alicerce da família, detentor do poder do triângulo e dirigente das leis da família.

Para a Prof. Dra. Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família (LEFAM), do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, algumas formulações de Freud estão fundamentadas em uma concepção de família datada historicamente. “O modelo de família nuclear é composto por um par heterossexual que forma com os filhos uma unidade domestica independente. Nela, o pai é a figura do provedor, o representante da família perante a sociedade e a mulher é aquela mais próxima aos filhos e aos cuidados da casa”, explica.

Ainda segundo Mandelbaum, “esse modelo tradicional burguês do final do século XIX e início do XX é muitas vezes tomado na psicanálise de maneira acrítica”. O que de certa forma, explica como nos dias de hoje parte da sociedade não legitima qualquer estrutura que fuja a esse modelo, ainda que haja uma pluralidade de novos.

No último Censo (2010), do IBGE, pode-se perceber a dimensão das mudanças sofridas nas estruturas familiares. Os dados apontam, por exemplo, um decréscimo de famílias constituídas por um casal heterossexual com filhos (54,9%) em relação ao Censo anterior que registrava de 63,6%.

O aumento (e a facilidade) do divórcio e das separações fez aumentar a diversidade de arranjos menos tradicionais, com expressivo aumento de crianças vivendo em famílias monoparentais ou pluriparentais, com os avós, por exemplo. Além das famílias reconstituídas, formações que se dão após morte de um dos pais, ou após a separação, com formação de novos núcleos: pais com filhos de um antigo casamento (ou filhos de apenas um dos cônjuges) vivendo juntos sob o mesmo teto. Até então, não se havia ainda uma análise mais aprofundada dessas extensões familiares que juntas representam os outros 45,1% das famílias analisadas no Censo, comprovando que o novo retrato da família brasileira é cada vez menos evidente e mais plural.

O Censo Demográfico 2010 constatou ainda que no Brasil existem mais de 60 mil casais homoafetivos. Nunca antes haviam sido contabilizados os casais de mesmo sexo que residem sob o mesmo teto como cônjuges. A região sudeste do país representa mais da metade desse número, com registrados 32.202 casais.

As relações de casais homoafetivos ganharam maior estabilidade com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que em 2011 passou a reconhecer a união estável para casais do mesmo sexo; e, com a determinação feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2013, de que os cartórios do país deveriam realiza a união civil entre eles. Desde então o número de casamentos só aumentou. Segundo dados mais recentes do IBGE, em 2014 foram registrados 4.854 casamentos entre cônjuges do mesmo sexo, representando um aumento de 31,2% em relação ao ano de 2013, primeiro ano em que essa pesquisa foi feita com casais de mesmo sexo.

Com as relações efetivadas ampliou-se o anseio desses casais por uma continuidade, de um “contar a nossa história” pelos filhos, e, a legalidade das relações possibilitou o caminho para a construção da família homoparental, um caminho que se outrora era utópico, hoje é possível, mesmo que ainda labiríntico e por vezes burocrático.

De certa forma, essas novas lutas dos casais homossexuais pelo direito do estabelecimento de uma família, e a possibilidade real – após muitas conquistas judiciais – de um compartilhar da vida com filhos, fizeram aumentar as pesquisas e estudos sobre as novas formas de ser família. Teóricos das ciências humanas e biológicas tem se desdobrado na compreensão das relações que se estabelecem, sobretudo, em uma família formada por um casal homossexual com filhos. Entre esses estudiosos estão pesquisadores e doutores do IPUSP, que apresenta uma rica contribuição tanto no campo da psicologia social e clínica, como na da psicanálise.

E afinal, o que é a família?

Em artigo publicado para o Boletim da Psicologia, a pesquisadora Brunella Carla Rodriguez, analisou, em parceria com a Prof. Dra Isabel Cristina Gomes, do Laboratório de Casal e Família: Clínica e Estudos Psicossociais do IPUSP, as novas formas de parentalidade, que se diferenciam da paternalidade e da maternidade, mais associada ao vínculo biológico.

Segundo elas, a parentalidade está para além do modelo de família tradicional e biológica, “de configuração heterossexual, monogâmica, hierárquica e nuclear”. Há, como já se citou, que se considerar, a fim de uma abrangência da família como totalidade, os muitos arranjos monoparentais por opção (ou não), pluriparentais e homoparentais. Esses últimos, hoje, são alvo de grande parte dos preconceitos em relação às novas estruturas, assim como outrora as famílias que se dividiam após a separação já foram preteridas pela sociedade.

E essa dificuldade em se aceitar o diferente, de tempos em tempos, estaria no fato de que há sempre um modelo tradicional instalado como norma no imaginário coletivo. Se antigamente pensar uma criança criada sem o pai ou a mãe em casa era absurdo, pois essa criança poderia apresentar defasagens em relação à completude da vida diante de um casal, hoje, pensar uma criança educada por dois pais ou duas mães, é ainda inaceitável para grande parte da população, vista como prejudicada pela falta de um dos “papéis” desempenhados, ou com a sexualidade influenciada. E isso muito tem a ver com o papel da criança nessa pequena sociedade que é a família.

Ilustração: Freepik | Layout: Natalia Belizano e Fernanda Giacomassi

A ideia de infância surgiu apenas no século XVII, já em uma transição para a sociedade moderna. Antes vista apenas como um adulto em miniatura, a criança passa a ser vista como um indivíduo social, com quem os pais passam a exercer laços mais fortalecidos, responsabilizando-se por sua educação e o direcionamento do futuro.

Para a psicóloga, escritora e doutora em psicologia pela FFCLRP-USP, Ana Laura Martinez, podemos pensar essa relação da criança com os pais recorrendo às ciências sociais. Segundo ela, “a antropologia designa que uma família é um agrupamento específico de pessoas constituído por uma tríade formada pela mãe, pelo pai e, no mínimo, por um (a) filho (a). Ou seja, um homem e uma mulher sem filhos não é uma família, tratando-se, neste caso, simplesmente de um casal”, resume. Dessa forma temos que uma família não existe sem uma prole, ou invertendo a ordem dos valores e rememorando Lévi-Strauss, sem uma criança, uma família não existe.

Todavia, essa criança, nasce despreparada e, diferente do que ocorre no mundo animal, necessita do amparo e criação dos genitores para sobreviver. “Na psicanálise, dizemos que o ser humano é um ser desamparado desde suas origens”, nos fala Martinez. E aqueles que forneceram o material genético criador desse fruto – a criança – contraem uma dívida, que em psicanálise é chamada de dívida simbólica. “A dívida é a de que estas duas pessoas, que concederam seus materiais genéticos diferentes para a geração de um terceiro, diferente de ambos, serão responsáveis pelo longo trabalho de inserção deste ser no universo simbólico”, explica a psicóloga.

Entretanto, nem sempre essa criança prossegue sua jornada ao lado daqueles de quem herdou seu material genético. Muitas vezes, por inúmeros motivos, essa criança é criada por outros pais, adotivos, que passam então a desempenhar a função do casal parental, que entre outras deve “promover a inserção da cria humana que ele gerou no universo simbólico, sem o qual o homem não se funda enquanto sujeito. Observe o seguinte: antes da criança nascer, o mundo falante já estava estruturado, antes dela. E mais, esse mundo falante, no qual ela será inserida, tem um impacto sobre ela e sobre quem ela será, sem que ela tenha menor noção disso. ”, elucida Martinez.

A abordagem psicanalítica, atribuindo importância à família de origem e à capacidade de o ser humano de vincular-se, passa a ganhar destaque. E com as mudanças de concepção da criança e das funções do casal parental, surge a ideia de parentalidade. Segundo Rodriguez e Gomes, esse termo “destina-se à noção de vínculos de parentesco e processos biológicos decorrentes destes, sendo fruto da junção dos termos paternidade e maternidade”. A diferença é que a parentalidade não está relacionada ao modelo tradicional da “família Doriana” – biológica e perfeita nos comerciais. O novo conceito “retira a ênfase do vínculo biológico e dos papéis sociais, enfatizando o processo de construção psíquica e vincularidade”, explicam.

Vínculo que pode naturalmente ser estabelecido em uma família homoparental – situação na qual um indivíduo homossexual (ou casal) assume a responsabilidade por uma criança. Essas famílias podem ser construídas a partir de um relacionamento heterossexual anterior; pelas tecnologias reprodutivas; ou, pela adoção. E grande parte do preconceito que sofrem se direciona à dúvida em relação à diferenciação sexual em uma família formada por pais de mesmo sexo. Quem vai ser a “mãe”? Quem vai ser o pai?

“Essa composição familiar é marcada pela ausência de papéis fixos entre os membros; inexistência de hierarquias e pela circulação das lideranças no grupo; pela presença de múltiplas formas de composição familiar e, consequentemente, de formação dos laços afetivos e sociais, o que possibilita distintas referências de autoridade, tanto dentro do grupo como no mundo externo”, consideram Rodriguez e Gomes.

Ideia comprovada pela psicóloga Ana Laura Martinez, que em seu trabalho pesquisou o psicodinamismo de famílias homoparentais femininas, pela visão da psicanálise, verificando que as divisões de funções são estabelecidas caso a caso, de acordo com a personalidade de cada indivíduo que compõe o casal.

Com um dos casais entrevistados ela percebeu que elas naturalmente tinham jeitos diferentes, nada era imposto. “Enquanto um dos membros sentia-se mais capaz de maternar, de aconchegar e acolher (importante frisar que esta capacidade não tinha correlação direta com o fato dela ser mãe biológica ou não), a outra, por questões próprias dela, acabava por assumir funções dita mais masculinas como trabalhar fora e trazer dinheiro para a casa.”. Ou seja, em relação à divisão de funções parentais, os papeis “materno” e “paterno” podem ser desempenhados por qualquer um dos membros do casal.

Martinez localizou e convidou alguns casais homoafetivos femininos para participar da pesquisa psicanalítica realizada com atenção flutuante. “Trata-se do exercício de nos tornarmos cegos para podermos ver aquilo que, quando estamos repletos de desejo, não enxergamos”, explica a psicóloga, que com o uso do método pode analisar as motivações e desejos da escolha pela maternidade.

Com base nessa escuta analítica foi possível perceber “as idiossincrasias entre o desejo inconsciente e os imperativos da necessidade”, apontando alguns motivos pela vontade de ser mãe. “A necessidade imperiosa de ser mãe é aquilo que muitas mulheres dizem quando chegam aos trinta e cinco – “Preciso ser mãe”- sem se questionarem, verdadeiramente, se querem ser mãe, sem têm condições internadas, desejo mesmo de serem mães. Precisar é uma coisa, querer é outra. Precisar é um imperativo categórico, que não perdoa, não questiona, não tolera a frustração, que não respeita os próprios limites. Querer, desejar é de outra ordem. Desejar é algo que emana do inconsciente como uma chama vital que nos impele para algo do qual não podemos fugir, sem deixarmos de sentir que, com isso, não estamos sendo nós mesmos”, explica a pesquisadora.

Esse desejo de ser mãe, diferente de um “preciso ser”, sempre foi presente em Lorrany Figueiredo, mãe dos pequenos Benício, Samuel e Vicente. Casada com Lidiane Faria há 6 anos por união estável e há 2 anos por união civil, Lorrany contou em entrevista à psico.usp, que ser mãe era um sonho particular, mesmo antes de conhecer sua esposa. Isso não pela idade ou outro motivo que não por um desejo do exercício da maternidade. Por isso, quando casadas, começaram a planejar a formação do que ela chamou de “família completa”, depois de estabilizadas no trabalho e na vida.

“Minha esposa desejava ser mãe, mas só eu tinha esse sonho de gerar as crianças, por isso tudo aconteceu como as duas esperavam”, conta Lorrany, enquanto se desdobra em cuidados aos trigêmeos de apenas 1 mês de vida. Sonho esse sempre fora apoiado e compartilhado pela família do casal. “Nossa família foi fundamental desde o início. E, se temos o apoio dela, não precisamos do apoio de mais ninguém. Apenas nossa família é o que importa e graças a Deus temos o apoio de todos”, comenta Lorrany.

Retomando à pesquisa de Ana Laura Martinez, a pesquisadora conta que após as entrevistas psicanalíticas foi aplicado às entrevistadas o instrumento projetivo Desenho de Famílias com Estórias, com o objetivo de avaliar a personalidade global dos entrevistados. Pelos desenhos foi possível verificar alguns significados inconscientes ao desejo de ser mãe, assim como projeções feitas em cima da família que se teve: normalmente um desejo – inconsciente – de suprir as ausências e traumas do que se viveu em família.

Por detrás da parentalidade, o medo dos novos pais

Sempre existiu o mito, justaposto a uma concepção machista, de quem cuida da casa e das crianças é a mulher. A mulher teria um instinto natural – o famoso instinto materno – de cuidados. Diante dessa polêmica dilemática, relacionada ao binarismo de gênero, a pesquisadora e psicóloga do IPUSP, Brunella Rodriguez, dedicou-se desde o mestrado a estudar a representação parental, exclusivamente em casais masculinos, justamente para tentar investigar os pressupostos de que o homem não estaria apto à criação e educação dos filhos.

Rodriguez, hoje em pesquisa de doutorado pela USP, observou que existe uma relação muito intensa com a família de origem nas relações parentais masculinas. “Questões internalizadas e preconceito afetam e influem a própria relação parental, além da relação conjugal, que se mostra cheia de entraves”, explicou a pesquisadora em entrevista à psico.usp.

Essas observações são feitas com base na psicanálise vincular que se diferencia da psicanálise clássica freudiana. Se essa última é intrapsíquica, com relações profundas do inconsciente; na vincular tudo é questão de vínculo. “Há um outro olhar, um foco relacional. Não dá, por exemplo, para pensar em um atendimento clínico, sem pensar em como esse indivíduo se relaciona não só com o analista, mas com o namorado, marido, tio… Como ele constrói esse laço, esse vínculo”, nos conta Rodriguez que vê na psicanálise vincular um modo de entender e interpretar alguns medos apresentados pelos casais que entrevistou.

“quando se adota uma criança, se adota a família biológica, a família estendida, é preciso integrar os legados geracionais – filiativos e afiliativos”

“Na psicanálise vincular o que ganha muita força é pensar nas influências que a gente sofre inclusive por segredos, traumas, questões que permanecem em grande parte transgeracionalmente, são conteúdos tão pesados e não inteligíveis, que eles ficam inconscientes”, elabora a psicóloga. Uma perda, um incesto, um sentimento não elaborado, coisas perdidas no passado ou em outra geração podem influenciar as escolhas e os entraves dos casais na adoção ou durante o exercício da parentalidade.

A psicóloga desenvolveu em sua pesquisa o termo “parentalidade reparatória”, que seria a tentativa de reparar as faltas que os pais sentiram enquanto filhos, por meio da atualização do exercício parental. “Eles querem criar uma reparação daquilo que não tiveram, se ele é parte minha eu quero dar para ele o que eu não tive”, explica.

Rodriguez buscou para sua pesquisa casais de homens em união estável ou casados que tivessem adotado conjuntamente. Nos participantes da pesquisa, ela encontrou pretendentes para a adoção que aceitavam perfis excludentes de crianças, como, por exemplo, crianças com mais de 7 anos. A escolha foi feita para que nenhum dos pais tivesse vínculo biológico e, ao mesmo tempo, estivessem ambos com direitos igualitários diante dos filhos.

Ainda que no discurso da maioria dos entrevistados esteja presente uma ideia de aceitação, de “estou bem comigo mesmo e me aceito como sou”, ela notou que o preconceito e a homofobia aparecem do modo inconsciente, via atos falhos.  “E aí eu percebi essa questão de identificação com o excluído, o preterido, com o que está à margem da sociedade, que é o lugar em que eles se encontram ainda hoje”, observou a psicóloga.

Outro ponto importante da pesquisa de Rodriguez foi a constatação de uma certa tentativa de padronização em casais homossexuais. Os homossexuais que são conhecidos pela luta por direitos nas décadas passadas, especialmente se tratando do desvincular-se das algemas da família, hoje estão cada vez mais se normatizando através do direito ao casamento e aos filhos. Mas, isso que em um primeiro momento parece ser uma manutenção de um certo “status quo”, é, segundo Rodriguez, um desejo de transmissão de valores, ou, mais simplesmente, de pertencimento, de dar netos aos pais e ser então parte dessa família que pode tê-lo renegado por ser homossexual. “As famílias de origem acabam muitas vezes se aproximando dos filhos homossexuais por causa das crianças”.

Os medos dos pais homossexuais masculinos aparecem com maior clareza em relação ao receio diante do futuro das crianças. Por isso, notou-se uma grande preocupação em perguntar se essas crianças querem ser adotadas por pais homossexuais, já que elas terão de lidar com essa aceitação socialmente. “Há um medo de que eles possam colocar as crianças em sofrimento, especialmente em relação à homofobia escolar”, percebeu Rodriguez, para a qual os casais passar a buscar uma integração na normatização hetereossexual nos cuidados e na apresentação dos papeis sociais.

Um dos casais entrevistados pela pesquisadora encontrou na escola e na presença da empregada a manutenção do papel feminino para os filhos pois acreditavam que a elas faltariam esse “cuidadinho de mãe, que pensa em mandar uma mudinha de roupa a mais, essas coisas…”, comenta Rodriguez que vê nessa atitude um medo escondido no preconceito sofrido, de não suprir as funções parentais.

Para a pesquisadora, mesmo em famílias mais tradicionais se observa que muitas vezes a mãe é mais enérgica até por conta dessa questão histórica que vê na mãe a figura da educadora, da criadora, mas essa característica não é inata, não é atribuída por gêneros, podendo ser engendrada. “O quanto um homem não pode dar conta de cuidar de um bebê sem a presença feminina? Eles precisam entender que essa não é uma característica biológica”, aponta a psicóloga.

As crianças precisam entender apenas que existem gêneros diferentes, que as pessoas são diferentes com características diferentes e isso basta porque nenhuma criança participará só de um núcleo familiar, ela perceberá o mundo e as pessoas à sua volta formando sua identidade e as próprias características. E isso, segundo Rodriguez vem do contato com o outro, com a família para além do casal parental. “A família de substituição, que seria aquela formada pelos laços de amizade duráveis, em grande parte devido à disponibilidade e energia que eles têm para se dedicar a essas crianças, criando um vínculo de confiança, uma responsabilidade e acabam que continuam a fazer parte porque quando se adota uma criança, se adota a família biológica, a família estendida, é preciso integrar os legados geracionais – filiativos e afiliativos”, considera a pesquisadora do IPUSP.

Homoparentalidade e legalidade: a problemática da adoação

A palavra adoção vem do latim “adotare”, que significa “optar ou decidir-se por, escolher, preferir”. Quando um casal, tanto homoafetivo como heteronormativo, adota ele opta pelo amor, ainda que não oriundo da biologia.

No Brasil ainda não existem leis específicas sobre a adoção homoparental, todavia, com a aprovação da união estável de casais homossexuais pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 2011, abriu-se a prerrogativa de que os juízes reconhecessem o desejo dos casais e julgasse favorável o pedido de adoção, o que vem acontecendo, felizmente, com cada vez mais frequência.

Todavia, o entendimento dos pedidos é feito caso a caso e julgado juiz a juiz, ou seja, ainda que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) estabeleça que qualquer pessoa, maior de vinte e um anos e dezesseis anos mais velha que o adotando possa adotar, independentemente de seu estado civil, não há uma unanimidade em relação aos pedidos de adoção por casais homossexuais. A adoção por apenas um dos pais não possibilitava as vantagens do direito da dupla filiação.

Em meados de 2007 a adoção de filhos por casais lésbicos já era um tema bastante comum na sociedade norte-americana. Mas, em fevereiro do citado ano um caso envolvendo um casal lésbico, ganhou as páginas dos jornais com muita repercussão.  O que tornava o caso insólito não era a adoção em si, mas sim o fato de que uma mulher ter adotado a própria companheira. O casal foi para o estado do Maine regularizar a adoção, não por capricho, mas por amparo legal. Isso porque Olive Watson e Patricia Spado dividiam da casa à conta bancária, mas não podiam desfrutar dos direitos mínimos garantidos aos casais heterossexuais, como benefícios previdenciários e herança.

Casos assim como esse, indiretamente motivaram o pesquisador do IPUSP, Luiz Toledo a trabalhar “A família no discurso dos membros de famílias homoparentais”, sua tese de doutoramento. Ele conta que durante suas pesquisas iniciais lembrou das lutas das paradas gays, da reinvindicação dos direitos de adoção, de transmissão de herança, de união estável e passou a olhar para tudo de uma outra maneira, que não a simples observação. “Quer dizer então que eu posso me casar, ser pai, dividir um plano de saúde, deixar bens quando morrer, mas esses direitos não valem para as outras pessoas? Me chocou perceber esse absurdo em pleno século XXI”, contou Toledo em entrevista à psico.usp.

Segundo o pesquisador, que também é membro filiado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto, é importante que se trabalhe o tema, que se discuta a homoparentalidade para que se encoraje outros colegas a também estudarem, para que assim se reconheça os direitos dessas famílias não só como ato de civilidade, mas um exercício de tolerância da diferença. O psicólogo, que analisou o discurso, vê no termo “homoparentalidade” apenas um nome provisório, que nos Estados Unidos é substituído por “gays families”, sem prejuízo pejorativo. “Enquanto durar a luta pelos direitos, será útil usar um nome que identifique especificamente as famílias”, falou-nos Toledo, para o qual essa terminologia – que ainda assusta as pessoas como muitas outras – se tornará em breve menos relevante quando houver avanços jurídicos e sociais, o que está acontecendo. “Falar em homoparentalidade hoje pode ser útil como um aglutinador provisório uma ‘inversão estratégica’, mas não como um diagnóstico ou algo do tipo”, completa.

Maurício Ribeiro de Almeida, pesquisador do IPUSP, também trabalhou a formação da família por casal homoafetivo, especialmente nas questões subjetivas que tangem a adoção. Com experiência como psicólogo judiciário, e, com isso, com ampla experiência em questões da legalidade, Almeida optou por estudar a problemática da adoção, tendo desenvolvido trabalhos importantíssimos dentro dessa temática, como a colaboração de um capítulo sobre a adoção homossexual na cartilha “Adoção: um Direito de Todos e Todas”, organizada pelo Conselho Federal de Psicologia.

Em sua tese de doutoramento pelo IPUSP, Almeida estudou a questão do vínculo na constituição subjetiva da família, analisando especificidades a fim de compreender de que modo essa nova configuração estabelecida pela adoção “engendra novos paradigmas de família e retoma processos e valores já incorporados nos modelos tradicionais de família”, explica o pesquisador em seu trabalho, que assim como o de Rodriguez verificou que a história de perdas e processos emocionais do passado ou não resolvidos na infância podem influenciar o sofrimento psíquico na fase adulta, assim como desencadear problemas emocionais no desenvolvimento da parentalidade.

Almeida corrobora com o pensamento de Toledo no sentido de que acredita dever haver uma maior discussão da temática, que não só sofre com a falta de regulamentação política, como com ideias que se propagam no ideário social. “Romper a barreira do silencia visando à discussão mais qualificada dos aspectos sociais, psíquicos e legais, envolvidos nessa demanda, pode ser uma primeira tarefa”, na opinião do pesquisador. As incipientes discussões, normalmente pautadas no preconceito, no senso comum e no fervor religioso, continuam apenas a perpetuar opiniões populares como a de que “a formação moral e psíquica da criança será prejudicada caso ela seja criada por pessoas do mesmo sexo”, completa Almeida.

Todavia, muitos casais ainda acreditam que o “optar ou decidir-se por”, do latim, vale mais do que os preconceitos arraigados na sociedade. Quando se opta pelo amor, pelo cuidado do outro, dá-se passos para uma sociedade mais humana e igualitária, principalmente porque se entende que os “preteridos” são dignos de amor, de atenção de família.

Esse é o pensamento de Carlos Alberto Júnior e Ivson Rodrigues casados há 11 anos e pais de Carlos Eduardo, Ivson José e João Lucas, todos frutos das chamadas adoções tardias, termo que incomoda muito Carlos Alberto. “Não considero adequado hoje, depois de tanto ler, estudar e ouvir depoimentos de adoções bem-sucedidas, caracterizar tarde a capacidade afetiva de crianças mais velhas amar, até porque elas são desejosas para terem uma família e não sendo piegas, o amor é a ferramenta poderosa para esta construção afetiva se concretizar”, explicou em entrevista à revista psico.usp.

O processo para a primeira adoção se iniciou em 2012 quando Carlos Alberto foi surpreendido positivamente pelo esposo com a documentação para a adoção. Depois disso realizaram o CNA (Cadastro Nacional de Adoção), adequando as características das crianças que desejavam adotar. Por sorte e felicidade do casal, ficaram a fila por apenas 23 dias.

Família é a união de pessoas por laços afetivos que vivem muitas vezes no mesmo espaço e que se amam e respeitam. Carlos Alberto afirma ainda que, embora tenha ciência da existência de grande preconceito e saiba que eles e os filhos podem ainda ser vítimas da intolerância do próximo, durante o processo de adoção ele e o esposo foram muito bem tratados o que os fez conhecer um lado da justiça que não conheciam, um lado em que forças são unidas em prol da família e do bem-estar das crianças. Mas, ele sabe que nem todos os processos são assim, assim como a sociedade, de uma maneira geral.

Para Carlos Alberto, não existem prejuízos na criação de crianças por casais homossexuais. Ele acredita que o acompanhamento psicopedagógico é importante na educação dos filhos, até para maior compreensão da própria origem, do processo e do reconhecimento dos dois pais como família, mas, acredita que as bases essenciais são encontradas dentro de casa, como família. “Família é a união de pessoas por laços afetivos que vivem muitas vezes no mesmo espaço e que se amam e respeitam, cujo papel é de apoiar em todos os momentos, mostrando a valorização da diversidade humana”, opina o pai Carlos Alberto que traduz de forma emocionada a importância dos filhos na vida do casal. “Meus filhos são a personificação da potencialização do amor, antes achava que o amor era uma conta de somar e multiplicar, com eles sentimos um amor nunca imaginado antes, a vida só tem sentido com eles”.

Preparando humanos para o mundo

Bela Magalhães estava desenvolvendo seu projeto final de graduação em Design Gráfico, em 2012, mesma época em que a união homoafetiva estava em tramitação no Congresso. Militante da causa LGBT desde o começo da faculdade ela viu no projeto uma possibilidade de fazer algo pelos filhos da causa.  “Pensando nas novas famílias LGBT que seriam formadas decidi fazer um livro para que seus filhos se sentissem representados na literatura e tivessem uma maneira de contar a história de sua família para seus colegas. ”, contou Bela em entrevista à revista psico.usp.

O projeto de graduação, escrito em 2012, foi publicado em livro em 2015, com financiamento conseguido através do Catarse. O Tenho Dois Papais, é “um livro infantil para estimular pequeninos e grandões a pensarem sobre família e diversidade. Afinal de contas, o que importa é o amor! ”, avisa a chamada no site do livro que tem recebido um feedback animado de pessoas que, segundo Bela, contam que seus filhos estão lidando melhor quando questionados sobre família porque ganharam identificação e representatividade.

“Família é uma formula simples onde somamos pessoas + amor. Família é onde a gente prepara humanos para o mundo” Para a escritora e designer gráfico as pessoas precisam destruir esses preconceitos que inserem no discurso, por exemplo, no que diz respeito à ideia de disseminação da homossexualidade por meio da parentalidade, o que para ela é facilmente rebatido já que “a maioria dos homossexuais foram criados por pais heterossexuais”, compara.

Para ela, e toda equipe do Tenho Dois Papais, uma criança precisa de coisas básicas como “amor, carinho e atenção”. “Nós do Tenho Dois Papais brincamos que família é uma formula simples onde somamos pessoas + amor. Desde os primeiros estímulos até a criação de laços afetivos mais fortes, família é onde a gente prepara humanos para o mundo”. Além disso, a designer pondera que a criança precisa saber desde cedo sobre sua origem, já que esse conhecer a própria história é um compartilhamento do amor, uma das funções da família. “Se você explicar para a criança desde cedo todas as peculiaridades e diferenças entre as famílias ela crescerá segura de que não falta nada na sua”, opina Bela.

Para Ana Laura Martinez, psicóloga e doutora pela FFCLRP-USP, conhecer sua história é fundamental para a criança. “Em algum momento eles (os pais) vão ter que explicar à criança que dois pênis ou duas vaginas não geram uma criança. Que ela veio ao mundo de outro jeito: ou pela doação de um esperma anônimo, situação que pode causar o incômodo desta criança vir a querer conhecer o seu pai biológico; ou por uma relação heterossexual anterior (neste caso, a criança tem um pai biológico real com quem jogar seu jogo imaginário); ou por adoção (neste caso também há pais que se deitaram para que ela viesse ao mundo)”, explica a psicóloga.

Isso porque as funções parentais se vinculam, em última instância, ao nosso mito de origem, ou seja, de onde viemos e como e quem nos deu existência. Essa é uma problemática humana tão premente que anima, desde as nossas origens, os mitos de criação do mundo. Assim, a criança, tal como um pequeno investigador cientista, busca construir o seu próprio mito individual para responder às questões que a intrigam desde sempre: “Como é que eu vim ao mundo, mamãe? Quem é meu pai? Para que serve um pai? ”. É disso que se trata a problemática da sexualidade humana”, elucida Martinez.

Bela Magalhães acredita, assim como o psicólogo e pesquisador Luiz Toledo, que a causa LGBT precisa de luta, uma luta que favoreça sobretudo a família homoparental, relegada à obscuridade do preconceito, que muitas vezes advem da ignorância. Ela reconhece que essa luta por direitos é exaustiva, mas não pode ser abandonada. “A cada nova reportagem sobre empoderamento feminino, a cada família homossexual feliz que acompanho faz valer a pena todo esforço e stress. Nós não temos outra opção se não lutarmos para existirmos, para sermos felizes”, elucida a escritora.

Por Aryanna Oliveira
Colaboração de Tatiana Iwata
Edição e revisão por Islaine Maciel e Maria Isabel da Silva Leme

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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