Poder x estereótipos: a saga da heroína no mundo machista

heroinaÉ perceptível que a representação da mulher em comerciais, livros, filmes, novelas e até em desenhos sofre constantemente a influência de esteriótipos patriarcais que, infelizmente, permanecem na sociedade. Até mesmo em produções que visam, num primeiro momento, a desconstrução destes preconceitos sociais, é possível observar que certas ideias do que é “ser” mulher e “feminina” para a sociedade permanecem.

Percebendo esta constante abordagem estereotipada da mulher no universo artístico, a aluna de Educomunicação Natália Rosa Sierpinski decidiu estudar, em Iniciação Científica pelo IPUSP, a representação feminina em um outro tipo de arte: as histórias em quadrinhos. Seu projeto buscou analisar como a construção do feminino foi feita ao longo da história da arte, qual a posição ocupada pela mulher na sociedade capitalista e, também, como isto é representado nas heroínas das histórias.

Como estudo de caso foi analisada “A Saga da Fênix Negra”, que integra a narrativa em quadrinhos dos X-Men, grupo de super-heróis que apresentam, desde sua criação, um viés de combate ao preconceito e defesa das minorias, aspecto que influenciou as escolhas da graduanda. A intenção de Sierpinski era entender como foi feita a representação da mulher dentro de um grupo que se propõe a desconstruir preconceitos pelo fato de serem mutantes, considerados, portanto, “diferentes” na
sociedade criada por Stan Lee e Jack Kirby. A personagem feminina escolhida pela pesquisadora foi Jean Grey, também conhecida como Garota Marvel ou Fênix Negra, a depender do livro. Nesta história em quadrinhos, Jean Grey foi a primeira personagem feminina criada e recebeu diversas problematizações acerca de sua personalidade e de seus poderes.

Com base nisso, a pesquisa mostra que a elaboração das histórias em quadrinhos sempre esteve atrelada à sociedade e ao período político a que elas estão sujeitas. De forma semelhante, estes fatores são os responsáveis pela criação do imaginário popular sobre o “ser humano perfeito”, representado nas histórias pelo herói. Embora ao longo do tempo este personagem tenha perdido as características físicas padronizadas do cinema americano (homem, branco, forte, inteligente), o mercado editorial ainda não consegue encaixar a figura da mulher no papel central do enredo, de forma igualitária ao homem e livre de preconceitos de gênero.

A pesquisadora cita como exemplo a roupa de “combate” das heroínas que é sempre hipersexualizada, com decotes e saias justas que nada influenciam em seus poderes. Os motivos desta construção estão, principalmente, na noção de que o público dessas histórias era majoritariamente masculino, e que a exposição da figura feminina como ícone sexual atraía mais leitores. Essa característica, juntamente com a percepção de que a heroína dificilmente é a personagem principal na série, é reflexo do machismo institucionalizado, que coloca o protagonismo feminino em um patamar inferior ao masculino. Embora alguns destes problemas de gênero persistam, hoje, diferentemente das décadas de 70/80, quando esta HQ foi criada, a representação feminina já possui grandes avanços. Além disso, o público feminino cresceu significantemente ao longo dos anos.

Jean Grey, foco da pesquisa de Sierpinski, ganhou destaque por representar uma quebra na construção feminina dos autores. Com grandes poderes e extremamente inteligente, a personagem atraía principalmente leitoras meninas, que se identificavam e se sentiam representadas pela heroína. Porém, ao longo da série, a Garota Marvel ficou mais conhecida por integrar um triângulo amoroso com Wolverine (Logan) e Ciclope (Scott) do que realmente por suas batalhas. Afora isso, como explica a pesquisadora, toda a trama da saga trabalha em cima de como Jean foi corrompida pelo poder e não conseguiu lidar com isso, o que a levou ao suicídio.

A pesquisa ainda aponta que só existiam dois finais possíveis para Jean Grey na série: ou desistir de seus poderes e viver com Ciclope, ou a morte – que foi a opção escolhida pelos autores. “Temos um final que leva Jean à morte e outro que a leva a ser dona de casa. Não temos um final em que ela consiga  manter e controlar seus poderes […]. Isso simboliza o quanto a mulher tem que se podar, se controlar, se reprimir, pensar e repensar suas ações em todos os ambientes”, argumenta a pesquisadora.

Em todo caso, no que se refere ao desenvolvimento da personagem feminina, “A Saga da Fênix Negra” conseguiu ser superior a outras histórias. No entanto, a pesquisa evidencia que o retrocesso relacionado ao gênero persiste, pelo fato de a personalidade da personagem não ser complexa a ponto de permitir sua completude em si mesma, em vez de dividi-la entre amor/poder, bondade/maldade, pudor/sexualidade. Afinal, as mulheres são muitas, podem muito e precisam de uma representação feminina condizente com essa profundidade.

Por Fernanda Giacomassi
Edição e revisão por Islaine Maciel e Maria Isabel da Silva Leme

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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