Caminhos da docência contra o negacionismo científico

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Em entrevista concedida à Revista BALBÚRDIA, a professora e pesquisadora Tatiana Roque fala de medidas de combate ao negacionismo, com a importância de lutarmos para manter as conquistas obtidas na recente democratização das Universidades e de avançarmos no fortalecimento das instituições públicas de Ensino e de Pesquisa.

 

17 de setembro de 2021 | 10:00

 

A professora Tatiana Marins Roque é graduada em Matemática (1991), mestre em Matemática Aplicada (1994) e doutora na área de História e Filosofia das Ciências (2001), todos pela UFRJ. Obteve o doutorado sanduíche durante os anos de 1998 e 1999 na equipe REHSEIS – CNRS (Recherches Épistémologiques et Historiques sur les Sciences Exactes et les Institutions Scientifiques). Foi Jovem Cientista na FAPERJ e directrice de programme no Collège International de Philosophie (Paris). Atualmente é professora titular do Instituto de Matemática da Pós-Graduação em Ensino e História da Matemática e da Física e da Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ. É membro dos Archives Poincaré (Histoire et Philosophie des Sciences) da Université de Nancy. Tem experiência nas áreas de História e Filosofia da Ciência e da Matemática e de Filosofia Francesa Contemporânea. Seu livro “História da Matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas” (Zahar, 2012) foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti 2012. Atualmente é, também, Coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.

Bate-bola da Balbúrdia

Uma referência pessoal.
Meu pai foi assassinado pela ditadura militar quando eu tinha 3 anos. Então ele é o meu herói. Ele era comunista, do comitê central do PCdoB, e foi torturado até a morte pela ditadura.
Lincoln Bicalho Roque, presente! *1
Uma referência profissional.
Maria Laura Mouzinho Leite Lopes, que é uma matemática, mulher, uma das primeiras do Brasil. Ela trabalhou muito com o Ensino de matemática e foi pelas mãos dela que eu entrei no Instituto de Matemática da UFRJ. Quer dizer, eu fiz concurso e etc., mas entrei pesquisando no grupo dela, que foi uma pioneira nessa área de ensino em história da matemática. E foi a área que eu trilhei depois.
Uma lembrança da vida de estudante.
Eu estudava numa escola religiosa aqui do Rio, Teresiano, e eu não me adaptava muito bem. Então eu fugia, eu tocava o terror na escola. (Risos) E essa é a lembrança: de ter sido muito boa aluna, que só tirava notas boas, mas também muito bagunceira.
Uma lembrança da vida de professora.
Quando começou a licenciatura noturna e que a cara dos estudantes mudou completamente. E a gente começou a ter mais estudantes negros, periféricos, que não eram só da elite. Foi realmente uma experiência muito gratificante. Eu vivi essa mudança dentro da universidade.
Uma série ou um filme.
A série mais recente que eu vi e adorei foi aquela Dix pour cent*2. Sobre cinema, francesa. Filme... Teorema*3, do Pasolini.
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*1 Conclusão da CNV (Comissão Nacional da Verdade)
“Diante das investigações realizadas, conclui-se que Lincoln Bicalho Roque morreu em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela Ditadura Militar, implantada no país a partir de abril 1964. Recomenda-se a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso, para a identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos.”

Por: Pina Elisa Di Nuovo Sollero

 

Com grande gentileza, a professora Tatiana Roque concedeu esta entrevista à Revista BALBÚRDIA para nos ajudar a elucidar algumas questões sobre o negacionismo, tema do nosso 3° volume. As perguntas enviadas em documento escrito foram inicialmente respondidas com áudios do Whatsapp. Depois, realizamos uma conversa por vídeo conferência, na qual esclarecemos alguns pontos das respostas obtidas e aproveitamos para fazer o bate-bola da BALBÚRDIA. A professora defende que, para combatermos o negacionismo, precisamos ampliar o debate com a população de modo a dificultar que a extrema direita se aproveite da crise da expertise que vivemos. Tatiana reforça, ainda, que nessa luta é imperativo fortalecermos as instituições públicas de Ensino e de Pesquisa

 

BALBÚRDIA - Em primeiro lugar, em nome de toda a equipe editorial, muito obrigada por aceitar colaborar com a Revista BALBÚRDIA! Professora Tatiana, em uma pesquisa rápida na internet é fácil encontrar que você recebeu o Prêmio Jabuti em 2013, tem um site, dá muitas entrevistas, é filiada ao PSOL, é ativa nas redes sociais... Mas como você se descreve atualmente?

Tatiana Roque - Eu me defino como professora, pesquisadora e ativista. Mas confesso que é difícil. Na Universidade eu trabalho em diferentes áreas; sou professora da Matemática, eu faço pesquisa em Filosofia e em História da Ciência. E tem ainda a política: eu fui presidente do sindicato e candidata a deputada federal pelo PSOL. Então essa trajetória é um pouco difícil porque, em primeiro lugar, a Academia ainda é muito disciplinar, ainda divide muito em áreas, em caixinhas. Segundo, porque essa relação entre Pesquisa, Pensamento, Reflexão e Ação Política também não é algo muito bem visto em alguns espaços. É, essa, acho que você foi no ponto. A minha biografia é difícil porque tem essas diferentes inserções, mas eu não consigo fazer de outro jeito porque são coisas que importam muito pra mim.

 

BALBÚRDIA -Estamos chamando de negacionismo a revisão de fatos da História e da Ciência para atender interesses de uma pauta política e ideológica. Sabemos que atualmente, no Brasil, o próprio Estado (representado pelo Presidente da República e seus ministérios) é o principal ator a inflamar e empoderar discursos fundamentalistas religiosos, conservadores e reacionários. Nesse contexto, como devemos dialogar com os negacionistas?

Tatiana Roque - Acho que essa é uma boa definição de negacionismo. Agora, eu acho que talvez a gente precise definir de modos distintos o negacionismo em diferentes áreas, porque não é tudo a mesma coisa. Eu acho que no caso das Ciências biológicas, naturais, o negacionismo tem muito a ver com uma crise que é mais profunda, da qual a extrema direita se aproveita, que é o que eu chamo de crise da confiança, ou crise da expertise, dos especialistas. Algumas áreas da ciência têm implicações mais diretas em políticas públicas, como é o caso da área de remédios, vacina, ambiental, poluição, agrotóxicos, transgênicos; em todas essas áreas a gente tem uma cultura desde o pós guerra de acreditar na opinião dos especialistas para embasar essas políticas sem muita participação do público nas decisões de um modo mais amplo. Então a gente vive essa crise da expertise sobre a qual o autoritarismo ganha força e que a extrema direita tem se aproveitado para as suas iniciativas conservadoras e autoritárias, mas, eu acho que ela tem razões mais profundas.

 

BALBÚRDIA - O professor progressista vive atualmente num ambiente de trabalho bastante hostil, impulsionado por ataques à liberdade de cátedra (como o movimento da Escola sem Partido, por exemplo), pelos seguidos cortes de verbas para Educação e Pesquisa e pela consequente desvalorização da docência. Qual você considera que seja um caminho de ação possível para os professores no combate ao negacionismo? E para a escola (como instituição)?

Tatiana Roque Acho que um dos principais problemas dos ataques mais recentes à ciência, e que é muito grave, é o desmonte das políticas de permanência e de assistência estudantil. Isso além do desmonte que a gente já tinha com a baixa do financiamento da Universidade e da Pesquisa. As nossas universidades vinham se tornando mais democráticas e é fundamental que esses estudantes possam permanecer na Universidade. Além disso tudo que já ocorre desde o golpe, agora a gente tem esses ataques à liberdade de expressão, à liberdade de cátedra que, eu acho, é uma reação conservadora aos avanços que nós tivemos na democratização das nossas universidades. Eu costumo dizer que, nesse sentido, piorou porque melhorou. Nossas universidades são mesmo focos de resistência, de coletivos, de lutas por direitos... Temos movimentos feministas, movimentos antirracistas, LGBTQIA+ e todo esse ambiente faz com que a juventude tenha mesmo mais possibilidades de fazer parte desses coletivos, desses movimentos... E isso assusta, isso traz reações, isso assusta as próprias famílias. A gente tem muitos jovens hoje que são os primeiros das suas famílias a entrar na universidade. E existe uma reação conservadora de famílias a esse avanço que faz parte de um movimento progressista.

 

BALBÚRDIA - Você tem toda razão, a Universidade tem se apresentado como resistência aos ataques conservadores e precisamos lutar para que isso se mantenha e se fortaleça. Mas e na Educação Básica? Um professor progressista pode se sentir completamente isolado e à mercê desse controle reacionário. Que ações você considera possíveis para esse professor combater o negacionismo?

Tatiana Roque - É muito difícil que o professor, sem apoio institucional, tenha força para reagir. Então é claro que o professor não deveria se submeter, mas a gente também não vai exigir do professor uma atitude de mártir. Se ele não tiver apoio institucional nenhum e ele estiver lidando com pais, que muitas vezes são violentos, ou mesmo membros da comunidade que são violentos, que ameaçam, que assediam, a gente não vai exigir que o professor seja um mártir. Essa resposta tem que ser do sistema escolar, ela tem que ser política, ela tem que ser da direção da escola, ela tem que ser do sindicato, ela tem que ser do conselho regional de educação, ela tem que ser da secretaria de educação. O professor, individualmente, tem muito pouco a fazer. Não é que ele vá se submeter, mas é que a gente precisa proteger esse professor, compreender a situação difícil em que ele se encontra. Essa resposta deve ser política e institucional, por isso é muito importante que o professor tenha apoio da própria escola, da direção da escola.

 

BALBÚRDIA - E você acha que os sindicatos têm apoiado os professores nessa luta?

Tatiana Roque - Eu acho que tem tentado sim. Muitas vezes o sindicato não tem força política para fazer valer mais a sua posição. Mas ele tem tentado apoiar, tem buscado apoiar sim, com certeza. Agora, precisa que isso tenha maior repercussão na sociedade.

 

BALBÚRDIA - Todo esse desmonte da Educação e da Pesquisa tem potencializado o surgimento de vozes individuais da Ciência na internet (como alguns cientistas youtubers, por exemplo). Como você avalia o uso da força política desses indivíduos (que assumem um papel importante de informação da população, mas que não têm amparo institucional) em relação ao crescimento da desconfiança na Ciência?

Tatiana Roque - Na verdade eu acho complicado que diante dessa crise da Ciência, com ataques às universidades e às instituições científicas, como a Fiocruz e o Butantã, a gente veja o crescimento de vozes individuais que não são de instituições públicas como vozes da Ciência. Eu acho que fazer divulgação científica é ótimo, qualquer um pode e deve fazer. É muito bom ocupar as redes sociais e etc., mas  agora estamos falando de políticas públicas de saúde, de recomendações gerais. Eu acho que nesse momento é muito importante fortalecer as instituições e sobretudo as instituições públicas. Por outro lado, as nossas instituições também precisam se comunicar melhor, incentivar mais essa área de divulgação científica, mas também as iniciativas que existem de recomendações oficiais à população e que não têm a escala necessária de alcance. Precisamos saber ocupar essas novas formas de comunicação, mas como alternativas adicionais e não como única opção.

 

BALBÚRDIA -  Com o crescimento do negacionismo científico e das fake news, que recado você deixaria para os leitores da Revista BALBÚRDIA?

Tatiana Roque - Eu acho que há uma questão muito importante envolvendo as nossas Universidades que é a compreensão da dimensão que ela ocupa hoje no Brasil. A democratização, a expansão das universidades públicas, principalmente federais porque a USP está muito atrasada nesse processo, estão gerando mudanças que são muito importantes. São ainda insuficientes diante de um país tão desigual, mas são muito estratégicas. Precisamos defender com unhas e dentes essas políticas de democratização e expansão das Universidades públicas, das cotas raciais, do combate às desigualdades. As universidades são hoje lugares muito estratégicos, então precisamos levar isso em consideração e defender com unhas e dentes essas políticas e a manutenção de estudantes cotistas, de estudantes que são os primeiros das suas famílias a cursar o Ensino Superior. Acho que essa é talvez a tarefa mais estratégica desses tempos para podermos preparar o Brasil para novos tempos, que nós todos esperamos que venham por aí, depois desse período autoritário, conservador, genocida, fascista, que estamos vivendo.