Ensino Médio: um campo em disputa

Esta é a publicação do editorial do número 6 da Revista BALBÚRDIA. O número 6 completo está disponível para baixar aqui.

02 de outubro de 2023 | 10:00

Vivemos em um período marcado pela ausência do Estado em relação aos serviços mais essenciais, e sua consequente mercantilização, o chamado neoliberalismo. Nesse cenário, direitos fundamentais (educação, saúde, trabalho, previdência social, lazer, segurança, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados) que deveriam ser resguardados pelo Estado, no cumprimento de seus deveres constitucionais, são cooptados por grandes empresas privadas (holdings).

Sobretudo no Brasil, a Educação se tornou um campo de intensa disputa entre as classes burguesa e trabalhadora. Ao longo de nossa história, a burguesia conseguiu impor seu projeto e direcionar os recursos educacionais para atender seus objetivos, formando uma pequena elite intelectual e impedindo o acesso da maior parte da população a este serviço. Decorre disto, a dificuldade de universalizar a Educação Básica e de se erradicar o analfabetismo em nosso país.

O projeto de universalização da Educação Básica é uma conquista recente, ganhando  destaque na agenda política após a redemocratização, principalmente com a promulgação da Constituição Federal, de 1988, e a Lei de Diretrizes de Bases, de 1996. Entretanto, é somente em 2010 que se estabelece a obrigatoriedade e gratuidade da Educação Básica para a faixa etária de 4 a 17 anos, por meio da Emenda Constitucional nº 59/2009. Esses resultados mostram o esforço da classe trabalhadora de assegurar uma educação pública e de qualidade, porém, desde a gestão Temer, há dificuldades no cumprimento dessa meta (conforme apontado nos indicadores da Meta 3 do Plano Nacional de Educação).

A disputa pelo Ensino Superior se assemelha a da Educação Básica. Na maior parte da nossa história, há uma ausência deste nível de ensino, sendo criadas as primeiras escolas superiores após a vinda da família real portuguesa para o Brasil. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, este nível de ensino se concentrou em poucas instituições, tendo uma mudança brusca a partir da década de 1950. A partir dos anos 1990, entretanto, inicia o processo de privatização do Ensino Superior brasileiro, destacando-se a possibilidade da criação de instituições em diferentes formatos (Universidades, Centros Universitários e Faculdades) no Governo de Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2002), o que ocasionou um aumento expressivo de Instituições de Ensino Superior privadas.

Nos Governos de Luiz Inácio Lula da Silva (de 2003 a 2011), houve um avanço na financeirização do Ensino Superior brasileiro, com a abertura do capital, em 2007, de grupos educacionais na Bolsa de Valores. Esta ação possibilitou a criação de grandes conglomerados educacionais fomentados por diversos programas de financiamento público para o setor privado-mercantil, dos quais os principais foram o ProUni e o Fies.

O fortalecimento desses conglomerados educacionais possibilitou sua inserção, cada vez mais acentuada, nos últimos governos, pressionando legisladores e executivos do governo com poder de decisão a proporem e votarem em medidas a seu favor e contra a educação pública universal e de qualidade. Se inicialmente, essas empresas concentram suas garras para o Ensino Superior, com o seu respectivo fortalecimento, voltam a atenção para a Educação Básica, setor com potencial lucrativo muito maior. Um dos desdobramentos deste fenômeno é a institucionalização da reforma do Ensino Médio, Lei nº 13.415/2017, pelo governo golpista de Michel Temer, e a progressiva implementação do Novo Ensino Médio (NEM), do qual o estado de São Paulo é pioneiro.

Tal reforma concentra os esforços de mudança no currículo, alegando que a sua rigidez nas disciplinas tradicionais é o motivo do desinteresse e do fracasso da juventude na escola. Assim, o currículo deveria ser reformulado, de forma a incluir também a possibilidade de escolha dos jovens de estudarem o que quisessem nos chamados Itinerários Formativos. Essas mudanças criam a ilusão de melhoria, pois, de fato, precarizam ainda mais a educação, principalmente das escolas públicas, e ampliam as desigualdades educacionais do país. Ainda, abrem margem para a criação de materiais e cursos específicos para capacitação de professores por parte dessas empresas educacionais. 

Enquanto setores privados da Educação orientam políticas públicas para o Ensino Médio, reivindicações históricas das(os) profissionais da Educação e de pesquisadoras(es) da área são ignoradas, entre elas: a melhoria na infraestrutura das escolas de todo o país; a ampliação das oportunidades de formação inicial e continuada docente e a valorização salarial e de condições de trabalho dos profissionais da educação. 

Essas constatações, os estudos e as vivências em relação à Educação Básica fomentaram a delimitação do nosso novo número da Revista BALBÚRDIA, que abordará o tema Ensino Médio: um campo em disputa. Além dos textos temáticos, esse número conta com diversos outros textos organizados ao longo das seções da Revista: Texto de Divulgação Científica, Espaço Aberto, Espaço do Egresso, Espaço do Docente, Divulgação de Grupos de Pesquisa, BALBÚRDIA Indica e BALBÚRDIA Informa.

Na seção Homenagem, recolhemos e apresentamos relatos dos professores de Ciências (Química, Física e Biologia) acerca dos impactos da Implementação do Novo Ensino Médio e da onda de violência da escola que vem se tornando mais comum na realidade brasileira. In memorian a Elisabeth Tenreiro, professora de Ciências da Zona Oeste de São Paulo, vítima da cooptação de jovens pelas ideologias da extrema-direita que promove o terror nas escolas brasileiras.

Para enriquecer o debate, nas próximas páginas são apresentadas duas entrevistas. Na primeira entrevista, o professor e pesquisador Fernando Cássio (UFABC) destaca a naturalização da desigualdade e o cerceamento do direito à educação gratuita ocasionados pelo NEM. Já na segunda entrevista, o professor, militante da Educação e Deputado Federal Tarcísio Motta menciona os desafios e as limitações do NEM, além de desvelar sobre o que é preciso para realizar uma verdadeira reforma na Educação Básica brasileira. Ambos os docentes se colocam contra a Reforma e destacam a necessidade de sua revogação.

No Espaço do Docente somos contemplados com a contribuição da Prof.ª Dra. Maria Regina Dubeux Kawamura, a qual desenvolve um texto reflexivo sobre a relação com o Novo Ensino Médio, a importância do currículo e seus impactos na formação das novas gerações. A partir de perguntas norteadoras, Kawamura tece questionamentos e elaborações teóricas, fruto de décadas de estudo, pesquisa e reflexão sobre a Educação em nosso país. Ao final do texto, ela também recomenda diversas obras para quem quiser se aprofundar no tema.

A seção Espaço Aberto conta com dois textos que contemplam a temática deste número. Preocupados com as consequências do NEM na educação paulista, um grupo de estudantes, professores e pesquisadores fundaram o Observatório Paulista de Ensino de Ciências (OPEC), um coletivo que se destina a estudar e monitorar a Educação Básica, principalmente na rede estadual e municipal de ensino. Nesta edição, há uma carta de fundação do grupo, seus objetivos, alguns dos resultados obtidos e um convite, para o público interessado, para integrar esta comunidade. A intensificação da desigualdade como resultado do NEM também foi identificado pela professora e pós-graduanda Anike Arnaud, que se dedicou, nos últimos quatro anos, de 2019 até 2023, a compreender como as políticas curriculares do NEM se materializam na prática e no cotidiano escolar paulista. O texto sintetiza seu estudo, suas vivências e reflexões sobre o NEM.

A Educação sempre foi e sempre será um campo em disputa. Para conseguirmos arrancar conquistas do Estado é necessário que estudantes, professores, educadores, ativistas e simpatizantes se organizem em coletivos em prol de uma educação escolar pública, gratuita, laica, de qualidade e socialmente referenciada. Não podemos esmaecer, ainda é possível revogar o NEM, a título de exemplo mencionamos o Projeto de Lei 2601/2023 que visa alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, revogando a Reforma do Ensino Médio e apresentando um modelo considerado coerente com o direito à educação.

Boa leitura!

Balbudie-se!


Referência:

CÁSSIO, Fernando (Org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019.